SEJA POR CONDIÇÕES FINANCEIRAS, pela busca da independência dos pais, ou até
mesmo para encarar novas oportunidades em outra localidade, poucos são os que
nunca se mudaram. Com clubes de futebol, a situação é diferente. Estádios
dificilmente são trocados; são persistentes e resistem aos sinais do tempo. A
Real Sociedad, no entanto, nunca temeu o amanhã*.
Meu nome é Iker Ayala e isso quase provocou um cisma na minha casa. Meu pai
queria a todo custo que eu me chamasse Ignacio. Ele idolatrava o Cholín e o fato
de eu ter nascido no dia em que ele faleceu, 30 de novembro de 1967, fez com que
vivesse dizendo que eu vinha para continuar a vida d’Ele.
Nunca
entendi os motivos de o meu pai ter tamanha simpatia por um jogador tão antigo.
Vindo ao mundo em 1935, ele não tinha como ter grandes lembranças. O que posso
garantir é que ele regurgitava, mais ou menos uma vez por dia, que ninguém havia
marcado mais gols vestindo nossas cores do que ele, Ignacio María Alcorta
Hermoso de Ordorica, o Cholín1. Minha mãe venceu, porém.
Ignacio não era nome apropriado para um basco. Iker era e, naquele 1967, isso
importava mais do que em outros momentos. Desconfio que se continuasse
descansando esta cebola, lágrimas poderiam surgir, então sempre engoli a
história como contada, mesmo sem descer suavemente.
Amatxo2
fez o necessário para garantir o nome por ela escolhido, o que me explicaram
mais tarde. Ela sabia que o responsável pelo cartório de registro civil, um tal
sr. Olartekoetxea, andava pulando a cerca. Sabia porque as escapadas furtivas
aconteciam com ninguém menos do que sua não tão apreciada irmã, com quem pouco
falava, embora morassem a 300 metros uma da outra. Não foi necessário muito
poder de persuasão. Mas por que era preciso convencê-lo? Porque as ordens de
cima eram expressas. Estávamos na Espanha, na Espanha falávamos apenas
castellano e nossas crianças precisam ter nomes espanhóis.
Ainda na infância, soube que meu avô conheceu o Cholín, que era seu
contemporâneo. Meu pai me contava as histórias do avô, que já conheci mais velho
e com a fala afetada pelas sequelas de um AVC, como se fossem épicos, repletos
de ação, idas e vindas. O ponto comum a quase todas elas era a presença da Real,
aquela constante que ia sendo transmitida entre gerações. O avô chegou a ver o
time jogar em Ondarreta3, mas dizia não se lembrar. Cresceu mesmo em Atotxa.
O estádio foi
inaugurado em 1913 e a circunstância não poderia ter sido outra: clássico contra
o Athletic. Donostia de um lado, Bilbo do outro4. O placar terminou 3 a 3 e o astro do jogo foi ninguém menos do que ele,
Rafael Moreno Aranzadi, o Pitxitxi5. O avô tinha 13 anos e, dizem, estava lá.
Já a estreia do pai
aconteceu muito tempo depois, passada a Segunda Guerra e já sob Franco. Ele
sempre me disse que não se lembrava — sim, aparentemente fui o primeiro homem da
família com boa memória — qual tinha sido o adversário, mas o time vivia as
agruras da segunda divisão, o que aconteceu na maior parte daqueles sofridos
anos 1940.
A primeira alegria de verdade que ele teve com a Real
aconteceu em 1948-49. Nosso time voltou à elite, impulsionado pelos gols de José
Caeiro — que segundo dizem não era grandes coisas com a bolas nos pés, mas de
bola na rede entendia. Foram 23 tentos naquele ano. Mais tarde, descobri que o
nome completo dele era José Ignacio Caeiro Igos6. Curioso.
Dentro de casa, falávamos euskara, mas meus pais, e mais enfaticamente meus
avós, diziam para não tagarelar na rua, só entre nós. Da porta de casa para
fora, siempre castellano, chico, siempre. Não era um grande problema, porque
na escola nós já não tínhamos alternativa mesmo e eu estava acostumado. Tive
colegas que, inclusive, ameaçavam nos delatar para os coordenadores. Para
todos os efeitos, Donostia nem existia, vivíamos em San Sebastián. Ponto.
Existia uma exceção permitida. Só uma, não mais do que uma, até
porque eu era jovem demais para frequentar outros espaços de emancipatória
conspiração.
Minha primeira visita à Atotxa aconteceu na última rodada da temporada
1974-75, quando finalmente minha mãe, contrariada, julgou que, aos sete anos,
cinco meses e vinte e cinco dias, eu já era adulto o suficiente para encarar a
multidão das arquibancadas. Dois jogadores me chamaram imediatamente a
atenção. O primeiro foi o goleiro Pedro Artola7, afinal vestia uma roupa diferente. O outro foi Inaxio Kortabarria8, pela imponência. Ele era jovem, mas tinha postura de capitão.
Vencemos
o Espanyol, de Barcelona, por 2 a 0 e me senti no paraíso. Então aquilo era
futebol e aqueles eram os suaves sabores da vitória e de falar euskara fora de
casa. Sempre que revisito minhas borradas lembranças, sinto o doce sabor da
liberdade. Naquele dia, ninguém me censurou e não me lembro de ter medo. Meu
pai conta, e disso realmente não me recordo, que meus olhos estavam vidrados e
que ele nunca tinha me visto tão concentrado até então. A chama dele, há
tempos fraquinha, reacendeu.
Em 1975-76, fomos a todos os jogos em
que a Real foi mandante. Ainda no início da campanha, uma coisa importante
aconteceu: Franco morreu e não acredito que tenha visto outra vez gente que
considerava boa comemorar a morte de alguém.
Três dias depois,
recebemos o Salamanca e empatamos por 1 a 1. Havia uma gente cabisbaixa, mas a
massa de exultantes não só era imensa como parecia incompatível com aquele
resultado decepcionante, ainda mais considerando que aquele ano ia mal. Toda a
alegria de jogar a Copa da Uefa, por exemplo, escorrera pelo ralo quando o
Liverpool nos enfiou 6 a 0 (no dia seguinte, corri para pegar o jornal
primeiro e ficar com o caderno de esportes. Não me lembro de sentir maior dor
com o futebol). Aquele ano não foi grande coisa mesmo, mas me lembro como se
tivesse acontecido ontem.
— Vou com vocês — anunciou, decidida, minha mãe. — No intervalo das aulas, o
sr. Oyarzabal comentou comigo que a cidade vai viver um dos dias mais
marcantes da nossa história.
Farta das aulas de História que dava
há quase 15 anos, com seus vieses definidos pelo arbítrio, emburrecido como
ela não cansava de repetir, dos inspetores que não faziam outra coisa senão
encher a paciência dos professores, ela queria sentir o gosto da ação. Foi a
primeira vez que vi, fora do nosso contexto familiar, os olhos da minha mãe
a cintilar. Meu pai sabia que não adiantava contra-argumentar, por menos que
gostasse da ideia de ter a esposa no espaço que lhe permitia uma dose de
trogloditismo, o qual me passava voluntária ou involuntariamente.
Recordo que o sr. Oyarzabal era, como nós, um dedicado torcedor da
Real — além de professor de Física. Faltavam alguns anos para eu ter aulas com
ele, mas o conhecia pela amizade com meus pais, na escola e nas arquibancadas.
Eu não entendia exatamente o porquê de ele tentar mobilizar os colegas de
trabalho, ao menos os que não pediam a benção aos inspetores e não andavam com
as caras assustadas o tempo todo (o que era comum).
Ninguém sabia
exatamente o que aconteceria naquele 5 de dezembro de 1976. O Athletic vinha
nos visitar para mais um dérbi e, dias após meu aniversário de 9 anos, eu só
conseguia pensar no difícil que seria vazar o gol defendido pelo Iribar9. Devo confessar que não sentia tanta confiança no Arconada10
— ainda — e tinha certa inveja dos nossos rivais por ter aquele pedaço de
goleiro debaixo das traves. Digressão à parte, na semana do jogo, os adultos
falavam baixinho e eu não entendia o que estava acontecendo, ainda que
estivesse claro: alguma coisa estava em marcha.
Foi quando meu pai
decidiu que eu não iria ao jogo que a situação ficou feia. Eu não era uma
criança mal-criada, mas aquele veto soou a traição. Usei todo o meu exíguo
cartel de xingamentos para tentar machucar meu pai, e também minha mãe, a quem
vi como a usurpadora dos meus direitos ludopédicos. Decidi que não ia mais
comer. A greve deve ter durado umas seis horas, mas resultou. Ou eu cresci
pensando que sim. A verdade é que eles reconsideraram a decisão quando
perceberam que boa parte das forças de segurança não estava disposta a
trabalhar pesado no jogo, pelo contrário.
Me escapavam as razões pelas quais se falou tanto e tão pouco sobre o jogo
durante a semana. Pelos cantos, me perguntava o que significava, mas não
ousava comentar. A primeira e mais importante lição que meus pais me
ofereceram foi a de não confiar nos outros. Só comecei a entender no caminho
para Atotxa. As mesmas camisas azuis e brancas de sempre caminhavam, lado a
lado, mas o clima era diferente, mais solene, respeitoso e, ao mesmo tempo,
repleto de olhares furtivos e dúvidas que a brisa carregava, tentando
distinguir quem estava de que lado; uma paz beligerante.
No fundo, sei que havia Franquistas, porque até hoje existem. Mas não
os vi. Mesmo que eu fosse uma criança, não era tão difícil notá-los, com sua
cara recalcada, cujas faces demonstravam valentia falsa ou covardia
verdadeira.
Acedemos ao setor de sempre e aguardamos. Em dado
momento, que para mim pareceu uma eternidade, irromperam os times, puxados
por seus capitães. Meu adorado Kortabarria entrou ao que me pareceu de mãos
dadas com Iribar. Levou pouco mais de uma dúzia de segundos para eu ver que,
na verdade, carregavam um pedaço de pano retangular que eu havia visto
poucas vezes e não fazia ideia do que significava. O ato instintivo de
perguntar à minha mãe do que se tratava foi rapidamente censurado pelas
lágrimas que lhe escorriam o rosto.
Ouvi apenas três palavras: —
É a Ikurriña.
Vencemos por 5 a 0. Foi um dia glorioso, mas só me inteirei do seu
gigantismo na adolescência, quando já sabia e podia falar que a Ikurriña era
a nossa bandeira, o símbolo do nosso povo, do nosso lugar, da nossa casa.
Não apenas da Real, mas de todos nós o povo basco. Tenho marcado na alma a
vivência do bicampeonato espanhol, no início dos anos 1980, mas entendi que
minha grande história como torcedor, membro da comunidade txuri-urdin,
aconteceu naquele fim de 76. Um mês depois, o regime começou a cair
oficialmente11.
Um pouco mais tarde, perto dos 13 anos, descobri que foi o
Josean De la Hoz12, nosso lateral esquerdo, que mobilizou as pessoas e pediu à irmã, Ane
Miren, que cerzisse a bandeira, impossível de ser adquirida no comércio. Foi
dele a ideia de mostrar que a transição de regime, que já estava em lento
curso desde a morte de Franco, era um movimento inevitável e que a nossa
história estava em vias de ser resgatada. Mesmo assim, a ideia teve de ser
transportada clandestinamente, dentro de seu Fiat 128.
— Iker! Confira se o Inaxio pegou sua jaqueta — me gritou Ainhoa. Fazia
três anos que vivíamos do lado de lá dos Pirinéus, em Bordeaux. Eu tentava
me consolidar como chef e ela como artista plástica. Voltamos a Donostia
pela primeira vez para comemorar meu aniversário de 29 anos. Nos
hospedamos na casa dos meus pais, que já se sabiam avós, mas não conheciam
o pequeno.
— Inaxio, deixe de bobagens e cumprimente seus avós — interpelei-o para
que saísse de trás das pernas da mãe dele. —Ande logo…
— Está tudo bem, Iker, o presente pode esperar — falou minha mãe,
como quem esfrega uma lâmpada mágica. Com sub-reptício interesse, Inaxio
se apresentou e puxou o embrulho das mãos da avó, que segurou com
firmeza. — Não, não, não. Não sem um abraço primeiro.
— Eskerrik asko, amona13
— falou rápida e protocolarmente Inaxio, hipnotizado pela beleza de
sua primeira camisa da Real Sociedad, e enfiando a cabeça no buraco da
manga, na tentativa de vesti-la. Em minha defesa, só posso dizer que
não encontrávamos camisas da Real em Bordeaux. O delito, ainda que
subentendido, está evidente.
— Tem outra coisa do saco — era a Ikurriña. Sem tomar
conhecimento do que se tratava, Inaxio a colocou nas costas como se
fosse a capa de um super-herói.
Uma das razões que me levou a partir para Bordeaux, ainda que só
tenha comentado muito tempo depois com Ainhoa, foi a substituição
de Atotxa. Tudo bem que Anoeta caberia mais pessoas, geraria mais
renda e seria mais moderna. Só que o futebol e a Real Sociedad,
para mim, eram o que eram por conta das memórias. O fechamento do
que eu entendia como minha segunda casa foi como um aviso de
“chegou a hora de você viver um novo capítulo na vida”. O futebol
acabou ficando em segundo plano, o que também foi motivado pela
decisão do time de admitir a contratação de atletas de fora do
País Basco14.
Eu apenas não contava que os instintos de Inaxio o
levariam a pedir para assistirmos a um jogo no campo.
A estreia de Inaxio, com mãe, pai, avô e avó, aconteceu no dia
1º de dezembro de 1996, contra o mesmo Espanyol que, 22 anos
atrás, me introduziu ao sentimento txuri-urdin. Com gol do sueco
Håkan Mild, vencemos por 1×0. Na saída, meu filho me perguntou o
que era um “sueco” e enfim me dei conta de como o mundo mudava
rapidamente, alheio à minha irresignação.
mas entendi que se eu pude me mudar de Donostia, me assumir
estrangeiro e fazer casa em Bordeaux, aquele estádio poderia ser
minha nova segunda casa e representar também um lar para
Inaxio.
e a Real Sociedad seria sempre a mesma, onde quer que viesse a
jogar. O que Atotxa foi para mim, Anoeta seria para Inaxio.
* Trata-se de uma narrativa histórico-ficcional.
[2] “Mãe” em euskara.
[3] Primeiro estádio da história da Real Sociedad, utilizado entre 1906 e 1913.
[4] Respectivamente, nomes bascos para San Sebastián e Bilbao.
[5] Rafael Moreno Aranzadi, o Pitxitxi (Pichichi em castelhano), nasceu em 1892 e foi um dos primeiros grandes artilheiros da história do futebol espanhol. Conseguiu a medalha de prata nas Olimpíadas de 1920 e, mais tarde, passou a dar nome ao prêmio anual concedido ao maior artilheiro da primeira divisão espanhola. Para mais informações, acesse: https://www.ofutebologo.com.br/2020/09/pichichi-goleador-Athletic-bilbao.html.
[6] José Ignacio Caeiro Igos nasceu em 1925 e foi jogador da Real Sociedad entre 1948 e 51.
[7] Pedro María Artola Urrutia nasceu em 1948 e foi goleiro da Real Sociedad entre 1970 e 75.
[8] Inaxio Kortabarria Abarrategi nasceu em 1950 e foi zagueiro da Real Sociedad entre 1971 e 85, tendo sido o primeiro capitão entre 1980 e 83.
[9] José Ángel Iribar foi goleiro do Athletic Bilbao entre 1962 e 80. É o jogador com mais aparições pela equipe, com 614 partidas. Defendeu a Espanha no Mundial de 1966.
[10] Luis Miguel Arconada Etxarri foi goleiro da Real Sociedad. Formado no clube, despontou em 1974 e permaneceu até 89. É o quarto jogador com mais partidas pela equipe, 551. Disputou os Mundiais de 1978 e 82.
[11] Em 4 de janeiro de 1977 foi promulgada a Lei para a Reforma Política, pedra fundamental para a publicação da Constituição Espanhola de 1978, que transformou o país em um Estado Social e Democrático de Direito. Foi, então, garantida a autonomia das Comunidades Autônomas, entre elas o País Basco.
[12] José Antonio de la Hoz Uranga nasceu na cidade de Getaria, em 1949. Defendeu a Real Sociedad entre 1972 e 78.
[13] “Obrigado, vovó”, em euskara.
[14] Em 1989, depois de perder vários destaques para outras equipes e se ver com dificuldades para formar novos talentos, a Real Sociedad contratou o irlandês John Aldridge, ex-Liverpool. Para mais informações, acesse: https://www.ofutebologo.com.br/2020/02/john-aldridge-real-sociedad.html.