Tommy Gemmell, um revolucionário da lateral

EM 1967, o Celtic se tornou o primeiro britânico a conquistar a Copa dos Campeões da Europa. O fato é notório. Os comandados do treinador Jock Stein viajaram a Lisboa e bateram a Internazionale, então treinada por Helenio Herrera. Menos falada é a ofensividade daquele esquadrão e, neste sentido, não há expoente melhor do que o lateral esquerdo Tommy Gemmell — autor do gol que devolveu a vida aos Hoops na final continental.

Tommy Gemmell Celtic

Foto: PA Images

Um lateral moldado para o ataque

Nos anos 1960, ainda não era comum a presença de laterais ofensivos. O ataque pelos lados costumava ser exclusivo aos meias, pontas e atacantes — conforme o estilo de jogo adotado por cada equipe. A eles, os laterais, incumbia a guarda e proteção dos atletas de frente. Porém, Gemmell e Stein não eram conformistas.

Os homens de Glasgow buscavam o ataque a todo custo, jogavam no esquema tático 4-2-4. O que parece suicídio, era tão bem treinado que subverteu a ordem do futebol europeu e permitiu feitos impressionantes, como vazar a Inter, consagrada pelo catenaccio, por duas vezes.

Pelos lados de seu ataque, Stein contava com o talento e a imprevisibilidade de Jimmy Johnstone, eleito o melhor jogador da história do Celtic, e Bobby Lennox. Mas, ainda que fossem jogadores extraordinários, pareciam insuficientes. Então, Gemmell se tornou peça fundamental.

O futebol nas Ilhas Britânicas sempre deu espaço a jogadores com perfil atlético e boa finalização. Tommy era uma dessas figuras. Um furacão pela esquerda — embora destro —, avançava sem pudor e chutava com potência e direção. Era o cobrador de pênaltis da equipe e tinha confiança em suas aptidões e crescia em momentos difíceis.

Gemmell não só marcou na final de 1967, como também o fez três anos mais tarde, quando o Celtic foi derrotado pelos holandeses do Feyenoord. Para seu ex-companheiro e meio-campista, Bertie Auld, a importância do lateral nunca poderá ser subestimada:

“Foi o Tommy [Gemmell] quem revolucionou sua posição defensiva no time. Antes do Big Man, o jogador dessa posição raramente ultrapassava o meio-campo. Tommy veio e mudou tudo isso. Jock Stein nunca precisou o encorajar a ir à frente, Tommy simplesmente fazia por conta própria. Ele era um atleta completo, podia subir e descer pelo flanco o dia inteiro, quase sem precisar parar para respirar”, revelou ao Scottish Sun, em 2017.

A relação com Jock Stein

Gemmell era um jogador de capacidades especiais, diferentes. Jock Stein sempre reconheceu isso e fez dele um de seus pilares. Entretanto, houve momentos em que craque e mestre entraram em rota de colisão. Nem sempre houve acordo. Nem tudo foi flores na relação.

Em 1969, o treinador deixou seu comandado de fora da final da Copa da Liga, contra o St. Johnstone. Segundo Gemmell, a opção jamais lhe foi explicada. Ele, uma das estrelas do time, foi colocado na reserva sem maiores explicações.

Pouco depois, o jogador, que representava o Celtic desde 1961, manifestou seu desejo de mudar de ares. Embora se fizesse de desentendido, Gemmell sabia que havia clubes atrás de seu talento. Nomeadamente, citou, em sua autobiografia, Barcelona, Leicester e Tottenham como potenciais destinos.

Jock Stein Celtic

Foto: Reprodução/Evening Times

Entretanto, sempre que o jogador perguntava ao chefe a respeito de propostas, a resposta era a mesma: “Nada, te mantenho informado”. Gemmell sabia que a falta de interesses era mentirosa; a realidade chegava por terceiros e também pela imprensa.

Essa relação desgastante durou até 1971 e, ainda assim, Gemmell não tratou os acontecimentos com rancor, mesmo não deixando o Celtic da forma como gostaria.

“Eu adorava aquele homem. Ainda que ele tenha me custado uma transferência para o Barcelona […] ele era um grande psicólogo”.

Stein e Gemmell foram fundamentais um para o outro, mesmo que a trajetória conjunta tenha sido acidentada. Depois de dois anos na lista de transferências dos Hoops, o lateral acabou negociado com o Nottingham Forest. Nos Forresters, permaneceu até 1973.

Depois de uma breve aventura nos EUA, passando pelo Miami Toros, voltou à Escócia para mais quatro anos no Dundee F.C. — clube que treinou por mais três anos, após sua aposentadoria definitiva, em 1977.

Pelo Dee, venceu o Celtic, ainda treinado por Stein, na Copa da Liga de 1973. Vingança?

O pontapé em Hemult Haller

Outro capítulo conflituoso e nada nobre da relação entre jogador e técnico aconteceu três dias antes da citada final da Copa da Liga da Escócia, em que o jogador foi sacado. A seleção nacional lutava ferozmente com a Alemanha Ocidental pela classificação para a Copa do Mundo de 1970.

O lateralrecebera um toque do germânico Helmut Haller, atacante da Juventus, quando ignorou tudo o que estava a seu redor e lhe acertou um pontapé. Foi expulso, não recebeu uma palavra de Stein no retorno à Glasgow e foi barrado no Celtic.

A Escócia foi derrota por 3 a 2, sentenciada a assistir o Mundial no sofá de casa.

 

Um legado tratado com serenidade

Apesar da personalidade forte, cheia de si, Gemmell não foi um personagem egocêntrico. Alegrava o vestiário, mais uma das revelações feitas por Auld: “Tommy era único, um grande jogador, e, ainda assim, era um dos chaps mais modestos que você poderia conhecer”. O ex-companheiro não está sozinho nessa história.

O repórter Alex Gordon, do Daily Record, tem relato similar. Certa vez, telefonou ao jogador, já há tempos aposentado: “Olá, Sr. Gemmell, meu nome é Alex Gordon e estou escrevendo um artigo […] posso roubar cinco minutos do seu tempo?”. A resposta foi tão franca quanto simpática: “Meu nome é Tommy e você não me rouba cinco minutos do meu tempo. Tome o tempo que precisar. Em que posso ajudar, filho?”.

Gemmell Scotland

Foto: Reprodução/Evening Times

Perguntado sobre a importância de seu legado, eternizado na história do futebol, o lateral respondeu, após um longo silêncio: “Você pensa assim? Bem, esse é um bom pensamento”.

Gemmell foi um revolucionário e um vencedor. Teve problemas na sua trajetória e é menos lembrado do que poderia. Ainda assim, fez-se um ícone acessível e gentil, nada amargo e sem grandes arrependimentos. Quando surgiu, já havia expoentes históricos importantes para a lateral esquerda, como Nilton Santos. Porém, ao menos no nível europeu, a posição nunca mais foi a mesma depois de Tommy, falecido em março de 2017.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

1 Resultado

  1. 14 de abril de 2025

    […] o Dunfermline Athletic, vencendo a Copa da Escócia. Aquele time já contava com jogadores como Tommy Gemmell, Bertie Auld e Bobby Lennox. No ano seguinte, na primeira campanha completa sob a direção de […]

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