É tempo de Matheus Cunha
TROCAR A TRANQUILIDADE de uma casa confortável e renovada, mas sem margem para expansão, pelo desafio de dar nova cara a uma imensidão carente de melhoramentos, com recursos para tal, não deve ser uma decisão fácil. Ruben Amorim levou tempo, deixou-se enamorar e, quando a temporada 2024-25 já caminhava, aceitou. Recebeu as chaves e trocou o Sporting pelo Manchester United.

Foto: imago/Arte: O Futebólogo
Desde o primeiro momento, aplicou o que sabia. Os Diabos Vermelhos começaram a jogar com três zagueiros, alas bem espetados pelos flancos — laterais de origem ou até mesmo pontas convertidos —, construção interior com meias e um centroavante na referência. No entanto, as ferramentas de que dispunha não eram as mais adaptáveis, não se mostraram afiadas o suficiente para os planos arrojados. Em especial, ficou evidente a falta do Pote.
Um dos mecanismos que tornou o trabalho de Amorim em Portugal tão autoral foi a capacidade de um de seus meias, no 3-4-2-1, ser um camaleão. Como referiu o Observador, Pedro Gonçalves, o Pote, tornou-se “uma espécie de musa inspiradora do mestre”.
O treinador destacou, em mais de uma ocasião, que a capacidade de chegar à área adversária e, ao mesmo tempo, apoiar os meio-campistas mais defensivos, o tornava um jogador único. Único talvez. Mas emulável.
Com os recursos financeiros necessários, terminada a decepcionante temporada de estreia na Inglaterra, Amorim foi ao mercado e não tardou a encontrar seu novo Pote. Ele é brasileiro, mas não dribla vertiginosamente, finaliza com a tranquilidade de quem bebe água de coco ou oferece os passes mais azeitados. Não propriamente, porque faz todas essas coisas bem feitas, com energia, comprometimento tático e, acima de tudo, inteligência. Seus diferenciais não são as coisas exuberantes, antes as sutilezas.

Foto: imago/Arte: O Futebólogo
Matheus Cunha é, em dados momentos, incompreendido. Não é um centroavante prolífico, também não é um ponta puro. Tampouco é o que se convencionou chamar de playmaker. À sua maneira, contudo, fez uma temporada de sonho com a camisa do Wolverhampton em 2024-25, resgatando um time fadado ao rebaixamento.
Foram 17 gols e seis assistências, em 36 jogos. Foi arco e foi flecha. Como quem? Pote, outro egresso dos Wolves. Em seus 201 jogos pelo Sporting, Pedro Gonçalves acumula 82 gols e 58 assistências. É como ter um jogador que cruza, faz o tempo parar, corre para a área e marca o gol.
Nos primeiros movimentos pelo United, Matheus já foi referência ofensiva, mas a tendência aponta a presença do esloveno Benjamin Šeško. Ocasionalmente, porém, se verá o brasileiro de 26 anos como uma espécie de “falso 9”, a exemplo do que Pote fez diversas vezes, sobretudo antes de o Sporting encontrar os gols de Viktor Gyökeres.
No mais das vezes, porém, o brasileiro deve vir de trás, com outro recém contratado, Bryan Mbeumo — o Trincão da vez.
Quem não conhece Pote tão bem, não está sozinho. Já foram dadas várias explicações sobre sua constante ausência entre os selecionáveis de Portugal. Ele foi incluído recentemente no grupo chamado por Roberto Martínez, mas já merecia há tempos. Falou-se muito sobre sua baixa estatura (1.73m) e o treinador espanhol chegou até a dizer que ele é “um jogador com azar” pela qualidade da concorrência que enfrenta.
Talvez pague o preço de não ser um fantasista, como, por exemplo, Rafael Leão. É possível que falte perfil de liderança, como sobra a Bruno Fernandes. Ele certamente não tem os dotes físicos de um Gonçalo Ramos. No fim das contas, é admissível que a seleção não lhe ofereça o melhor encaixe.
Jogadores especiais, não raramente, pedem interpretações específicas. Por essas e outras, Ruben Amorim não pode ser lido apenas como mais um treinador.
Matheus Cunha se encaixa na descrição. Enquanto a Seleção Brasileira se debruça sobre a possibilidade de ter, ou não, Neymar, e tenta compreender a melhor forma de extrair as grandes qualidades de Vini Jr., Rodrygo e Raphinha, o atleta mancuniano come pelas beiradas.
Já foi um segundo atacante ao lado de Richarlison, durante as Olimpíadas de 2020. Na demolição sofrida pela Canarinho contra a Argentina, em março de 2025, projetou-se como 10, marcou gol e foi o melhor dos brasileiros em campo. Nessa história de ter poucos holofotes, acumula boas aparições e se mostra preparado para desempenhar a função ofensiva que for pedida.
Segundo o italiano Carlo Ancelotti, Cunha ajuda o ataque brasileiro a ter mais a bola. Ele joga e faz jogar. Amorim, por sua vez, está convicto: “Matheus Cunha mostrou o que precisamos, que é um jogador que pode ser muito agressivo na direção dos oponentes quando recebe a bola entrelinhas”.
Depois de, ainda muito jovem, destacar-se na Alemanha, passando en passant pelo Atlético de Madrid e ganhando estatuto de grande jogador no Wolverhampton, Matheus tem a chance de se confirmar atleta elite em um Manchester United carente de boas notícias. O contexto é adequado e os 26 anos apenas confirmam: o auge está chegando.