Sevilha 86: a noite de Duckadam
A ROMÊNIA É UM PAÍS RELATIVAMENTE GRANDE. Ao mesmo tempo em que roça a União Soviética, toca a Iugoslávia. É um enclave entre dois regimes socialistas diferentes, fica no meio de duas supernações que, há uma década, romperam relações diplomáticas. Ela se dobra às ordens de Moscou, mas é peculiar. A começar pelo idioma, cujas bases remetem ao latim vulgar. É o dia 1º de abril de 1959 e, em meio às mentiras tipicamente contadas na data, uma verdade se erige. Nasceu Helmut Robert Duckadam.

Foto: Bob Thomas/Sports Photograhy/Arte: O Futebólogo
É Transilvânia o lugar em que o rebento respira suas primeiras lufadas de ar fresco. A cidade se chama Semlac e fica a mais de 600 quilômetros de Bucareste.
Faltam mais de 25 anos para que ele se torne famoso pelo mundo todo. Isso vai acontecer a mais de 3.591 quilômetros da capital romena, onde ele viverá a partir de 1983, quando já se transformou em goleiro. Ali, em Sevilha, o homem dará lugar ao mito e a Transilvânia já não poderá ser popular e mundialmente lembrada apenas por ser berço de Vlad, o Empalador, ou Vlad, o Drácula.
Duckadam fará capas de jornais, transformar-se-á em símbolo do impossível. Será cultuado para todo o sempre, porque é o nome que provará ao mundo que a Romênia é mais que um enclave.
É mais que o Drácula, que o país com a maior quantidade de Ciganos (ou Romani) do mundo. Vai além de ser uma terra por onde os povos passam, rumo a destinos insondáveis — ao longo dos séculos. Ela é um misto de uma infinidade de culturas e nela se pratica futebol. Para o jornalista Jonathan Wilson, como escreverá muitos anos mais tarde, é uma mistura do appealing and the appalling. Do atraente e do terrível.
Falta um pouco de tempo para o mundo todo se dar conta do talento de jogadores como Gheorghe Hagi ou Adrian Mutu. E, quando eles forem notados, já será possível identificar características do craque romeno. Ele é imprevisível, tecnicista. Finaliza bem e é temperamental. Pode ser apático ou explosivo, em diferentes momentos. Mas Duckadam será apenas um goleiro que, como tal, dedica-se a evitar gols — não a fazê-los.
Em 1983, o arqueiro será contratado pelo Steaua Bucareste, junto ao UTA Arad, da região em que ele nasceu. O novo time virá de uma sequência de resultados ruins, com cinco anos sem títulos nacionais e vendo o rival, Dinamo, que em breve será treinado por um homem de nome Mircea e sobrenome Lucescu, encher sua sala de troféus. Outra ameaça responderá pelo nome de Universitatea Craiova.

Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo
Na chegada à capital, Duckadam conhecerá Marius Lăcătuș, László Bölöni e Victor Pițurcă, entre outros. Em estágios diferentes de suas respectivas carreiras esportivas, estarão todos engajados na maior campanha já empreendida na história do futebol romeno. São todos mais famosos do que Helmut. Na chegada à capital, o goleiro ainda não saberá, mas já terá feito seus únicos dois jogos pela seleção romena.
O Steaua não é um clube como os demais.
“Cada um de nós sabia exatamente o que eram nossas funções. Tínhamos uma ideia tão perfeita de para onde passar a bola que se o treinador nos mandasse jogar com os olhos fechados, colocaríamos a bola onde ela precisava ir”, vai dizer o capitão Ștefan Iovan, muito tempo depois.
Em 1986, quando tudo vai acontecer, somente mil romenos estarão presentes. 200 pessoas da delegação do Steaua e mais 800 membros do Partido Comunista. A Romênia não poderá se dar ao luxo de ter desertores. Este ainda será um tema, ainda que não por muito mais tempo.
A saga começará em Vejle, na Dinamarca.
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Os locais são um time velho, velhíssimo. Fundado em 1891, já era quase sexagenário quando o Steaua foi fundado, em 1947. No entanto, não é um quadro tão forte assim — historicamente falando. Tem cinco títulos nacionais e enfrentará, em breve, um futuro marcado por uma escassez aterradora. Julian Barnett abre o placar, mas logo os romenos mostram uma de suas marcas, a resiliência: Marin Radu empata no último minuto do tempo regulamentar e a eliminatória será decidida na Romênia.
Pițurcă, Bölöni, Gavril Balint e Tudorel Stoica não estão para brincadeiras. E mandam Allan Simonsen, sim, o Ballon d’Or de 1977, de volta para casa de mãos abanando. Ele até faz um gol insuficiente. O 4 a 1 leva os romenos à vizinha Hungria, colocando-os em choque com um dos times mais históricos desse esporte.
O Budapest Honvéd já não é aquele de József Bozsik, Ferenc Puskás, Sándor Kocsis e Zoltán Czibor, mas ainda tem categoria. Lajos Détári logo deixa claro que na capital magiar é o famoso time que manda. Outra vez, caberá a Bucareste o protagonismo, o que não deixa de ser uma vantagem para o Steaua.
Pițurcă não gosta de brincadeiras. Isso está evidente. Como na eliminatória anterior, quando marcou aos oito minutos do primeiro tempo, ele mostra o cartão de visitas cedo. Desta vez, antes de o ponteiro dos segundos completar sua primeira volta. Lăcătuș aumenta e outros dois nomes dão as caras: Ilie Bărbulescu e Mihail Majearu. É outra vitória por 4 a 1, já que Détári pode até perder, mas não deixa a honra para trás.
O que se poderia esperar de uma viagem à Finlândia? Frio. Apesar de já ser março, as temperaturas mínimas em Helsinki ainda são negativas. Dessa vez, o primeiro desafio é em Bucareste e é preciso ser eficiente. Não acontece. O Kuusysi se revela um adversário muito mais duro do que o esperado e as redes permanecem intocadas na Romênia.
O ar gelado congela as narinas, o corpo não esquenta, o futebol não se desenvolve. Pițurcă já não consegue entregar seu melhor cedo. Transcorreram 86 minutos, além dos acréscimos da etapa anterior, quando o árbitro tcheco Vojtěch Christov aponta o centro do gramado e confirma o gol marcado por ele, é claro, Pițurcă.
Helsinki se curva ao espírito dos visitantes, este sim, quente.
Apesar do avanço às semifinais, a disputa foi um balde de água fria. Se anda difícil bater o campeão da Finlândia, que tem tão pouca tradição, como será possível continuar? O fim da linha parece próximo. Só tem um jeito: é preciso dar tudo e mais um pouco.
Em Bruxelas, o craque Enzo Scifo coloca o Anderlecht em vantagem. Bucareste, mais uma vez, é convocada a testemunhar o imponderável. O vitorioso Arie Haan vai ser obrigado a reconhecer: nunca viu um time se entregar tanto quanto o Steaua. Novamente, Pițurcă acerta o alvo cedo, aos quatro minutos. Ele ainda faz mais um, enquanto Gavril Balint fecha a contagem: 3 a 0. Duckadam assiste, lá de trás, uma aula de futebol.
É hora de ir para Sevilha. É tempo de acreditar.
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O Barcelona nunca ganhou a Copa dos Campeões e isso rende uma pressão intensa em cima dos Culés. Porém, a final é em jogo único e Bucareste está de mãos atadas — não pode socorrer mais uma vez o Steaua. Pior: a decisão é em Sevilha, na porção mais ocidental da Europa, onde as pessoas podem transitar livremente. É esperado que a torcida catalã lote o Estadio Ramón Sánchez Pizjuán. Vai acontecer.
No caminho ao pináculo de sua escalada, o Barça superou times muito poderosos: Sparta Praga, Porto, Juventus e os suecos do Göteborg. Os comandados do inglês Terry Venables não fizeram uma campanha brilhante, mas conseguiram os resultados necessários. Nas duas primeiras eliminatórias passaram pelo critério do gol marcado fora de casa; na última, precisaram de penalidades máximas. É um time mais trabalhador do que virtuoso, com seus estrangeiros, o alemão Bernd Schuster e o escocês Steve Archibald.
Passaram-se 9.898 dias entre o nascimento de Duckadam e a decisão continental; 14.214 desde a fundação do Steaua Bucareste.
Nunca um time do chamado Leste Europeu conseguiu a taça mais desejada do continente. Nem times das gigantescas Iugoslávia e URSS. Não seria muita pretensão destes romenos, relevantes ao longo da história, mas no mais das vezes coadjuvantes, tirar do Barcelona um título tão sonhado?
Ara o mai, estampa o Mundo Deportivo — Agora ou nunca. A bola rola; o Steaua endurece, obedece às ordens do treinador Emerich Jenei.

Acervo: Mundo Deportivo
O Barcelona está nervoso, faz muito calor em Sevilha. A bola queima nos pés catalães e o fantasma do já várias vezes campeão e rival, Real Madrid, paira sobre a cabeça dos favoritos. Nem sempre é bom ser favorito. O Steaua fica na sua, retrai-se, dá ao Barça o direito à iniciativa. Miodrag Belodedici toma a cena de Pițurcă, Bölöni e a companhia de frente. O líbero romeno é protagonista.
Liderança técnica blaugrana, Schuster é substituído e vai embora do estádio. Autor de três gols na eliminatória anterior, Pichi Alonso começa o jogo no banco e só aparece na prorrogação, sem tempo para fazer grandes coisas. O cansaço é enorme, menor apenas do que o medo de errar e colocar o sonho continental por terra. Pênaltis.
Se repitió la historia. O Mundo Deportivo nem se deu o trabalho de escrever em catalão. Então é isso o que chamam de decepção?
O Steaua abre a disputa. Majearu, que já deixou sua marca anteriormente, prepara-se. Ele para em Javier Urrutti. É a vez do Barcelona. Vai Alexanco, a rocha defensiva do time. Duckadam, Duckadam! O zero ainda não saiu do placar. E agora, é replay? Bölöni perdeu. A bola passa aos pés de Ángel Pedraza. Duckadam! Gol virou artigo de luxo.
Lăcătuș é o próximo. Entrou, entrou, entrou! Os romenos passam à frente: 1 a 0. Os sorrisos das arquibancadas estão presos nos pés de Pichi. É outro pênalti cobrado à direita de Duckadam. E outra defesa! Balint tem a chance de ampliar a vantagem do Steaua. É justamente ao mesmo canto que a bola se dirige, mas, dessa vez, está no fundo das redes: 2 a 0.
Marcos Alonso carrega o peso do mundo nas costas. Ao menos da maior parte do mundo catalão. Ele troca o canto. Duckadam também! Ele corre, é abraçado, esmagado. Ele é campeão. O Steaua é o melhor time da Europa e é, em grande parte, graças a ele. Semlac, a cidade da Transilvânia, é agora berço do goleiro mais importante da história da Romênia.
Mais tarde, ele confessará que o quarto pênalti foi a decisão mais difícil de todas.

Acervo: Mundo Deportivo
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Em outro escrito futuro, Jonathan Wilson dirá que a verdade é uma mercadoria difícil de se encontrar na Romênia.
Nas merecidas férias, Duckadam descobrirá uma doença vascular. Seu sangue não circulará como esperado. Ao menos esta será a versão oficial dos fatos. O futebol não esperará. O goleiro se despedirá do alto nível coberto de glórias, mas pela porta dos fundos. Sumirá, simples assim. Retornará três anos depois. Insistirá até 1994, de volta à cidade em que tudo começou, Arad. Não valerá a pena.
Duckadam viverá uma vida comum.
Tentará trabalhar na polícia, ajudará jovens a se tornar jogadores, buscará refúgio na política, emigrará aos Estados Unidos, voltará, tornar-se-á presidente honorário do Steaua Bucareste. 23.987 dias depois do primeiro respiro, dará o último — na capital que dificilmente viverá um dia futebolisticamente tão feliz quanto o 07 de maio de 1986; lá, onde seu bigode será sinônimo do potencial da Romênia, pelos tempos dos tempos.