Ser campeão, sair da fila e honrar os seus: a façanha do Benfica em 2004-05
Há países em que o jejum de títulos nacionais pode perdurar sem que isso se torne uma verdadeira tragédia. Nações como Brasil e Argentina, em que existem muitos clubes grandes, a alternância de poder é constante e muitos se sentam à mesa dos campeões. Contudo, essa não é a realidade de uma nação em que a disputa se centra em três partes. Viver uma década à sombra de rivais deixa marcas, que o Benfica conseguiu superar. Na hora mais difícil. Quando o mundo estava aos pés do Porto e havia uma promessa póstuma a ser cumprida.
Foto: SLBenfica.pt/ Arte: O Futebólogo
Errar e ver o rival viver dias de glória
O calvário do Benfica começou a ser vivido logo após o título português de 1993-94. A crise financeira aportou na Luz com força e logo o clube foi observando seus talentos deixarem a capital portuguesa. A negociação de Rui Costa com a Fiorentina, por exemplo, foi um alívio para os cofres encarnados, que fecharam as portas do Barcelona ao craque, diante de uma proposta superior dos homens de Florença (cerca de 6 milhões de euros).
E não foi só dele que o Benfica foi prescindindo. Stefan Schwarz partiu para o Arsenal. Já veterano, Rui Águas seguiu para o Estrela da Amadora. Aleksandr Mostovoi, que não chegou a ter muitas chances, também saiu, rumou ao Strasbourg, vindo a penalizar as Águias pelo erro anos mais tarde, comandando o Celta de Vigo a uma vitória por 7 a 0 contra os lisboetas. Outros russos com bons serviços prestados também saíram, como foram os casos de Sergei Yuran e Vasili Kulkov — que seguiram para o Porto.
Ao longo dos anos, o Benfica até faria boas contratações como as de Edilson (que ficaria por apenas uma temporada na Luz) e de Michel Preud’Homme, mas foram muitos os maus negócios. Até quando tentaram acertar, os Encarnados não foram tão bem, como quando repatriaram Valdo e Ricardo Gomes, aparentemente em fim de carreira — o que não se aplica ao primeiro, que superou a barreira dos 40 anos atuando em nível de primeira divisão no Brasil.
Foto: Paulo Calado/ Arte: O Futebólogo
Também se acumularam os nomes de treinadores no período. Para citar apenas os estrangeiros, basta falar em Paulo Autuori, no escocês Graeme Souness, no alemão Jupp Heynckes e no espanhol José António Camacho. O britânico, inclusive, falou sobre as dificuldades da época em sua autobiografia, Football: My life, my passion:
“Em algumas manhãs eu chegava e alguns jogadores estavam sentados, desmoralizados, e eu ia perguntar ao secretário técnico, que era um ex-jogador do Benfica, de Moçambique e amigo de Eusébio [Shéu], o que estava errado. Ele me diria, ‘eles não foram pagos outra vez’”.
Souness, aliás, foi uma aposta midiática de João Vale e Azevedo, o presidente benfiquista eleito em 1997. Logo, entretanto, ficou claro do que se tratava aquela gestão caloteira. Com o passar dos anos, o antigo mandatário acumulou condenações por fraudes, foi preso e até expulso da Ordem dos Advogados Portugueses por “falta de idoneidade moral”.
Troca de comando e perda inesperada
Esse time do Benfica rompeu os anos 1990 e avançou aos 2000 em semelhantes termos. À distância, viu o Porto ganhar mais notoriedade com os gols de Jardel — e depois vencendo tudo nas mãos de José Mourinho —, o Sporting conquistar o título de 2000-01 e revelar Cristiano Ronaldo, e até o Boavista levantar um caneco nacional. Foi em 2003, a partir do momento em que Luís Filipe Vieira assumiu a presidência, que a situação começou a mudar.
Mas foi ainda no começo da gestão do novo mandatário que uma tragédia se abateu sobre o Benfica, dando ainda mais a sensação de que era impossível sair do buraco cavado na década anterior.
Em um jogo contra o Vitória de Guimarães, durante a temporada 2003-04, o atacante húngaro Miklós Fehér foi ao solo de súbito. Sofreu uma parada cardiorrespiratória e faleceu pouco depois de cair no gramado do estádio D. Afonso Henriques. Ali, foi feita uma promessa: o time seria campeão, fazendo do combatente vencido também um vencedor.
Foto: José Carmo/ Arte: O Futebólogo
Em 2003-04 os Encarnados celebraram o título da Taça de Portugal, batendo os portistas na final. O grego Takis Fyssas e o capitão Simão Sabrosa anotaram seus gols, com Derlei descontando para os nortistas. Era o início de uma reconstrução que teria seus altos e baixos, mas seria efetiva. O clube precisava se reerguer e superar a força do Porto, então campeão continental e do mundo. Para isso, foi atrás de outro comandante estrangeiro.
Apostar em um líder veterano…
O italiano Giovanni Trapattoni, então com 65 anos, desembarcou no estádio da Luz em 5 de julho de 2004. No dia de sua apresentação, foi taxativo: “Conheço a equipe do Benfica e penso que, com entusiasmo e convicção, é possível ganhar o campeonato português”, como relatou o jornal Público. Aquilo parecia risível diante da supremacia do Porto. Entretanto, quando se fala em nome de um gigante europeu — então adormecido, é verdade —, a conversa é sempre séria.
A temporada se anunciou com a chegada de muitas contratações de pouco impacto e uma venda difícil de digerir, mas necessária — por 15 milhões de euros, Tiago Mendes seguiu para o Chelsea. Porém, não houve pânico. Ainda restavam alguns pilares importantes na Luz. Simão Sabrosa ficou, assim como o volante Petit, o meia Geovanni, o centroavante Nuno Gomes e o zagueiro Luisão, contratado um ano antes e que deu resultados imediatos. Além disso, o clube revelou o talentoso meia Manuel Fernandes.
A campanha na Liga Portuguesa foi apertada, mas começou bem. No sufoco, o Benfica venceu o Beira-Mar fora de casa na estreia. Depois de abrirem 3 a 0, com dois gols do zagueiro Azar Karadas e outro de Petit, as Águias cederam dois tentos na etapa final. Mas venceram.
Logo, o time assumiu a liderança, mesmo tendo perdido para o Porto na sexta rodada. Vale dizer que, neste ano, os tropeços eram especialmente perigosos. Campeões de quase tudo, os portistas viviam uma merecida ressaca, mas ainda tinham poder de fogo de sobra. Já o Sporting fazia uma campanha com brilhos, tendo no horizonte uma final de Copa da Uefa a ser disputada em sua casa.
Foto: Record.pt/ Arte: O Futebólogo
No meio da temporada, houve turbulência. No intervalo entre as rodadas 12 e 18, o Benfica perdeu quatro vezes, para União Leiria, Belenenses, Sporting e Beira-Mar e chegou à quinta posição. Em especial, na derrota para os homens de Belém, por 4 a 1, Trapattoni soltou o verbo:
“Vamos esquecer rapidamente este jogo. Demos espaços na defesa e fomos penalizados. Não podemos arranjar desculpas, porque o Belenenses mereceu ganhar. Quero dizer que ainda falta muito campeonato, esta derrota não acaba com nada, mas devemos tirar deste jogo uma importante lição para o futuro. Quando não se pode ganhar, também é importante não perder”, relatou o Correio da Manhã.
…e acompanhar a ascensão de outro
Efetivamente, o Benfica tomou as lições que precisava: emplacou uma sequência de nove jogos de invencibilidade, com sete vitórias e dois empates e reassumiu a ponta. O título só foi colocado em xeque na 32ª rodada, quando o time perdeu para o Penafiel e caiu para a segunda posição, atrás do rival Sporting, mas empatado em pontos e vendo o Porto no encalço, com três a menos.
Contudo, os Leões eram justamente o adversário da rodada seguinte, em um confronto que ditaria os rumos do fim da temporada
Em 14 de maio de 2005, o Benfica recebeu o Sporting alinhando o que tinha de melhor: Quim; Miguel, Luisão, Ricardo Rocha e Manuel dos Santos; Petit, Nuno Assis, Manuel Fernandes; Geovanni, Nuno Gomes e Simão. Por sua vez, os sportinguistas não contaram com os gols de Liédson e acabaram pagando a conta. Em um dos jogos mais tensos do século XXI em Portugal, os Encarnados venceram. O gol do triunfo só saiu aos 83 minutos do segundo tempo, por obra de um jogador que começaria a se transformar em emblema benfiquista, Luisão.
“Gol discutido. O lance teve início numa falta cobrada por Petit sobre a meia esquerda do ataque benfiquista; a bola sobrevoou a área na direção de Ricardo mas Luisão interpôs-se e cabeceou para o gol. A Luz explodiu na festa enquanto os leões reclamaram, automaticamente, irregularidade do lance. O goleiro leonino abordou [o árbitro] Paulo Paraty fazendo-lhe sinal de que o gol tinha sido marcado com a mão (o que não aconteceu) mas os protestos subsequentes ficaram relacionados com uma falta que o zagueiro brasileiro terá eventualmente cometido no salto – mas, mesmo assim, as imagens não confirmam qualquer infração”, reportou o Record.
O Benfica venceu e ficou a um empate contra o Boavista, fora de casa, de garantir o título. Foi o que aconteceu. O 1 a 1 foi suficiente para eliminar o peso do incômodo jejum. A profecia de Trapattoni se cumpria. E ele acabou dando a missão por concluída: “Em Dezembro houve um contato da Roma, mas nessa altura não havia possibilidades de sair. Mais recentemente, tenho ouvido e lido muita coisa”, disse o comandante ao Correio da Manhã. Ele seguiu para o Stuttgart.
Título vencido, o Benfica ainda teve tempo de viver mais um dos grandes momentos de sua história recente. Boa parte do elenco encarnado, além de outros funcionários e membros da direção, dirigiram-se para o cemitério de Gyor, na Hungria. Camisa benfiquista e faixa de campeão postas sobre a sepultura, os presentes rezaram em memória de Fehér, o campeão que não pode presenciar a festa do título. Então, todos se abraçaram e, juntos e liderados por Simão, bradaram: “Um, dois, três… MIKI”. Afinal, aquela conquista foi muito além do fim de um jejum de títulos.
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