Robert Enke, vítima do silêncio de uma doença que mata
EMBORA O MAIOR EXPOENTE da história do futebol alemão seja Franz Beckenbauer, os germânicos sempre foram lembrados pela capacidade de lançar grandes goleiros. A memória remete facilmente a Sepp Maier, Harald Schumacher ou Oliver Kahn, enquanto o presente traz a figura de Manuel Neuer. Em meio aos grandes ídolos de ontem e de hoje, outros se destacaram. Um desses foi Robert Enke, arqueiro que representou a Mannschaft na Copa das Confederações de 1999 e na Euro 2008. Para ele também há lugar na eternidade.

Foto: John MacDougall/Agence France-Presse/Getty Images
O goleiro nascido na cidade de Jena, na Turíngia, começou a carreira no modesto Carl Zeiss, figura carimbada nas divisões inferiores da Alemanha. Foi ser internacionalmente reconhecido pela primeira vez vestindo a camisa do Borussia Mönchengladbach. Quando era decorrida a metade final da década de 1990, também jogou pelas equipes de base e olímpica da Alemanha.
Isso o levou, pouco antes de completar 22 anos, ao Benfica. No entanto, o jejum encarnado (os portugueses ficaram longe do título nacional entre 1993-94 e 2004-05) era longo; o momento para afirmação de um jovem, difícil, já que a sombra de Michel Preud’homme pairava sobre o Estádio da Luz. Os títulos faltaram, as boas atuações, não. O tempo passou e o apreço do torcedor das Águias se manteve. Esta alta conta levou o Barcelona a contratá-lo em 2002.
Mesmo tendo falhado ao Mundial daquele ano, perdendo a concorrência para os excepcionais Kahn e Jens Lehamnn e para Hans Bütt, arqueiro de um ascendente Bayer Leverkusen, Enke convenceu os catalães a investirem em seu futebol. Ali, viveu seu primeiro inferno; foi mais um nome que fracassou na sucessão de Andoni Zubizarreta.
Oportunidades foram poucas (duas) e sem bom desempenho. Passaria ainda por Fenerbahçe (outro tempo para esquecer) e, brevemente, pelo Tenerife, clube em que foi bem na segunda divisão hispânica, antes de retomar o curso de sua carreira.

Foto: Getty Images/ Alexander Hassenstein
Em 2004, com quase 27 anos, voltou à Alemanha. Já não era um jovem talento, mas uma aposta arriscada. O garoto que rodara pelo futebol português, espanhol e turco, passando rapidamente pela seleção alemã, perdera prestígio.
Robert firmou contrato com o Hannover 96. Com a camisa dos Roten, renasceu para o futebol — o que não necessariamente garantiu dias felizes. Desde os tempos de Barça, o goleiro sinalizava silenciosamente o que poderia acontecer. Lembrado pelo público e a imprensa pela generosidade, era também complexado com a busca pela perfeição.
O alemão sofria.
Não era dado a luxos, não tinha vícios. Era sério, reservado e rigoroso consigo. Amigos e conhecidos confirmam em uníssono. Paulo Madeira, ex-colega no Benfica, diria ao Observador que: “[Enke] não tinha as conversas da maior parte dos jogadores, não falava só de carros, mulheres ou futebol […] não havia cá brincadeiras […] Tinha de ser muito profissional.”
Na esfera privada, sua filha Lara ia se superando em procedimentos cirúrgicos; precisava corrigir um problema cardíaco. Não deu. Em 2006, a pequena perdeu a batalha e a conta da vida voltou a cobrar um preço que Enke não podia pagar. A escuridão ia se alastrando para fora dos campos. Seu amigo e alemão Per Mertesacker, em emocionada carta, reiterou as palavras de Madeira:
“Ele radiava calma e determinação. Ele persistia. Eu acho importante lembrar isso, não para glorificar Robert, mas para deixar claro que pessoas que sofrem com depressão não são, de maneira alguma, fracas […] Como era possível que este equilibrado e reflexivo amigo estava, aparentemente, tão doente que tirou a própria vida? […] Aprendi que ocultar faz parte da doença”.
Depressão: foi ela a algoz de Enke — um adversário mais duro do que sua abordagem, muitas vezes banalizada, sugere; um atacante mais ameaçador do que qualquer outro que o alemão enfrentou durante a carreira.
O amigo Mertersacker não entende como não percebeu. Como saber se, debaixo dos postes, o goleiro apresentava seu esplendor técnico?
Com a camisa do Hannover, Robert Enke vivia os grandes dias do início da carreira. Retomou a confiança, tornou-se referência; voltou a representar a Mannschaft. Perfeccionista que era, nunca deixou de se ressentir, por exemplo, de seus períodos em Barcelona e Istambul. Atribuía a si mesmo seus fracassos, inclusive com a filha.

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Seus fantasmas não iam embora, mesmo que, já no primeiro ano de retorno ao seu país, tenha sido eleito o melhor goleiro da Bundesliga, pela revista Kicker, o que se repetiria na campanha de 2008-09. O goleiro foi lembrado para a disputa da Euro 2008 e era considerado peça certa no Mundial de 2010, na África do Sul.
Aos 32 anos, estaria vivendo sua maturidade e era esperado que fosse o titular. Após o torneio europeu de 2008, Lehmann se aposentara da seleção alemã e Enke era o sucessor. Defendeu seu país em sete jogos — disputava a titularidade com René Adler e um garoto de nome Neuer. Liderava a batalha, e acabou por perdê-la. Na hora de gozar de seu êxitos, de superar as crises de sua carreira, tornou-se mais exigente e introspectivo. Temia não ser capaz de exibir o nível dele esperado e, em seguida, de arcar com as responsabilidades.
Tudo isso culminou em seu suicídio. A notícia da morte foi uma desgraça. Ninguém entendia. Mais incompreensível foi não haver explicação. Ninguém pede esclarecimentos quando o câncer mata. Doenças matam, simples assim. Porém, no caso de Enke e de vários outros à margem dos milhões do futebol, a patologia nem sempre é tratada pelo que é.
Ela mata independentemente de estatuto social, fama ou glória. Normalmente, em silêncio. No caso do goleiro, nos trilhos de um trem.

