Philippe Clément: mil jogos no futebol do 99%

ACENDEM-SE OS HOLOFOTES, a arquibancada pulsa e se ouve milhares de vozes, enquanto os astros sobem ao gramado. Dezenas de câmeras profissionais miram aqueles homens, que são ídolos de milhares e cujos rostos surgem em televisores de todo o mundo. É o mais alto nível do futebol. E ele corresponde a menos de 1% da realidade. Os restantes vivem, constantemente, lutando para apenas prosseguir. Como na quinta divisão da França, onde um homem conseguiu um feito impressionante: treinar uma equipe por mil jogos.

Philippe Clément Dives-Cabourg

Foto: Guillaume Marie/Arte: O Futebólogo

O Philippe Clément em questão não é o ex-comandante de Rangers e Monaco; o belga de 51 anos, ídolo do Club Brugge e que representou seu país em mais de 30 partidas internacionais.

Não, este Philippe Clément tem 54 anos e é francês. Há 31 anos, lidera a mesma equipe, o incógnito SU Dives-Cabourg, da Normandia.

Não minta. Você não conhece o Dives-Cabourg

Fundado em 1929, o time normando se estabeleceu na minúscula Dives-sur-Mer, de pouco mais de cinco mil habitantes. É como se a notoriedade da agremiação fosse proporcional à relevância de sua cidade, nacionalmente falando.

É provável que Benjamin Morel, um jogador totalmente desconhecido do grande público, seja o atleta de carreira mais relevante a ter defendido o Dives-Cabourg. Ele militou em equipes tradicionais da França, como Caen, Clermont e Amiens. Flavien Belson é outro nome que desponta, após extensa busca. Ele representou Metz, MK Dons e Cannes — além da seleção de Guadalupe.

A melhor história deste clube quase centenário, entretanto, começou a ser escrita em 1994. Na instância, Clément, que ainda era atleta, assumiu também o comando técnico da equipe.

Não se sabe qual de duas coisas é mais insólita, o clube prosseguir por tanto tempo, entre os mais baixos escalões do futebol profissional francês e os mais altos do amador, ou manter o mesmo comandante por mais de três décadas, sem alcançar grandes resultados.

No futebol francês, a liderança por anos e anos a fio não é algo tão inédito. Guy Roux será o exemplo mestre, difícil de superar. Afinal, permaneceu no Auxerre por 44 anos (de 1961 a 2005). No entanto, Didier Deschamps está em vias de completar 14 anos à frente da seleção francesa (2012-26). É muito tempo. Quando Roux parou, Clément já era o chefe do Dives-Cabourg e, tudo indica, que ainda será no dia em que a trajetória da França acabar na Copa do Mundo de 2026, sinalizando o fim do trabalho de Deschamps.

É necessário dizer que quando tudo começou, o Dives-Cabourg nem existia. Havia o Dives e o Cabourg, que se uniram, por fim, em 2016.

Começa a epopeia

Tudo partiu da resposta a um anúncio de jornal.

“Pensei, por que não? Dives ressoava em mim. Era uma cidadezinha operária, meu pai era um trabalhador ferroviário, então me senti em casa. Apliquei e fiz uma entrevista. Fui aceito, mesmo que houvesse cinco ou seis candidatos à minha frente”, contou ao portal franceinfo.

O primeiro jogo aconteceu em setembro de 1994. “Foi um empate, em que estávamos perdendo por 2 a 0. Régis Petit marcou duas vezes e eu fiquei bem feliz com minha primeira partida competitiva liderando os profissionais. Eu tinha 23 anos e estava feliz com meus chefiados, nos seus 30 e poucos”, comentou ao Ouest-France.

Dives-Cabourg Coupe de France Philippe Clément

Foto: Damien Deslanes/Arte: O Futebólogo

“Eu tinha o status de jogador-treinador, mas cheguei machucado e não joguei muito no primeiro ano. Foi uma benção disfarçada, me permitiu ser mais ativo como treinador durante os treinamentos. Joguei por cinco ou seis anos, como meio-campista, até a promoção à quarta divisão”.

Até a temporada 2024-25, seu grande momento como treinador havia acontecido em 1998-99, quando o clube chegou a estar entre os 64 melhores times da Copa da França, sendo eliminado pelo Lille. O chefe descreve a epopeia como um momento incrivelmente emotivo para ele, os jogadores e os torcedores, mas era a hora de superar o passado.

Após passar pelos nanicos Saint-Lô Manche e Association Sportive Dragon; depois de eliminar o Saint-Denis, nos 32 avos de finais, o Dives-Cabourg bateu o Le Puy Foot (1 a 0) e chegou às oitavas da 108ª edição da Copa da França. O adversário da vez foi o Cannes, que no passado revelou atletas como Zinedine Zidane, Patrick Vieira e Johan Micoud.

As esperanças foram grandes, já que o tradicional time anda na quarta divisão, mas não deu. O placar de 5 a 3 se impôs, mas foi motivo de orgulho.

 

Uma lenda viva

Conhecido como “Guy Roux de Dives”, Philippe Clément quer mais. Terá combustível para superar os 44 anos do ícone do Auxerre?

“Não sei se consigo viver sem isso. Senti emoções únicas por mil semanas. A última partida da minha carreira? Não penso nisso, não sei se está perto ou longe. Os garotos me levantaram essa temporada”.

Se o treinador sente que os jogadores lhe entregaram um gás a mais durante a campanha, a recíproca é verdadeira.

Dives-Cabourg epic

Foto: Marc Olejnik/Arte: O Futebólogo

“Ele nos mobiliza em cada partida, em seus discursos, observações. Tem uma relação bastante paternal, bastante protetora conosco”, contou Alban Bekombo, atacante de 25 anos, de origem camaronesa mas que, como o treinador, foi criado na região, em Caen. “Ele está com o seu clube nos bons e maus momentos, nas derrotas e nas vitórias, e ama a todos. Respeito a ele e respeito tudo o que ele fez”.

Em competições por pontos corridos, o Dives-Cabourg ainda não alçou voos realmente altos na França e não há nenhuma evidência de que alçará algum dia. Ainda assim, Philippe Clément levou holofotes para o clube e a cidade; trouxe a lembrança de que um futebol menos rico, mas não menos nobre, existe. Não apenas sobrevive; representa a realidade de um modo muito mais totalizante.

A vida nos últimos escalões do futebol profissional, aquela que flerta com o amadorismo e a extinção o tempo todo, talvez seja menos apaixonante do que a dos milhões dos campeonatos mais assistidos do planeta. Mas em termos quantitativos, não qualitativos. Quem porventura discordar, dialogue com um homem que vive essa realidade há 31 anos e não pensa em parar.

No sábado, 26 de abril de 2025, a cidade inteira parou para saudá-lo e agradecer pelas mil vezes em que declarou sem dizer que o Dives-Cabourg vale a pena.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *