Oleguer Presas, o herói de poucos
ENQUANTO RONALDINHO DESFILAVA o melhor nível de sua carreira, em meados dos anos 2000 e sob a batuta de Frank Rijkaard, nem só artistas viviam o Barcelona. Na defesa, com longos cabelos e cara de mau, Carles Puyol simbolizava liderança e sacrifício. Antes da Era Guardiola, o time vivia a dúvida entre o risco de ser brilhante, com Xavi e Andrés Iniesta, ou seguro, com Edmilson e Mark van Bommel. Neste cenário, o lado direito da defesa muitas vezes era ocupado por um zagueiro: Oleguer Presas.

Foto: Reprodução/Arte: O Futebólogo
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A temporada 2005-06 foi inesquecível para os culés e, especialmente, para o brasileiro Belletti. Ele marcou seu único gol pelo Barça na final da Liga dos Campeões e conferiu ao clube seu segundo título da mais prestigiosa competição continental do planeta. Ele não era sempre titular e no dia 17 de maio de 2006, no Stade de France, saltou ao campo passados 71 minutos de partida. Rendeu justamente Oleguer.
O catalão de Sabadell fora escolhido por Rijkaard para solidificar um setor que seria atacado, sobretudo, por Ashley Cole e Robert Pirès — além de Thierry Henry ocasionalmente. No entanto, a expulsão precoce do goleiro do Arsenal, Jens Lehmann, obrigou o treinador Arsène Wenger a sacar Pirès para a entrada de seu arqueiro reserva, Manuel Almunia, e os Gunners foram para um jogo de sangue, suor e lágrimas. Ainda assim, conseguiram sair na frente, com gol de Sol Campbell.
Perdendo, o treinador holandês preferiu apostar em Belletti, já que o placar apontava a derrota marginal. “Lateral-direito não entra para fazer gol. A orientação que eu tinha era buscar a linha de fundo e buscar quem tivesse na área”, disse à ESPN. Ele viu de dentro do campo Samuel Eto’o empatar e o resto é história. Todos se lembram da comemoração do brasileiro, após o inesperado tento da virada.

Foto: Reprodução/Arte: O Futebólogo
Oleguer viu o Barça contratar Gianluca Zambrotta, um novo concorrente, e permaneceu mais duas temporadas na equipe, quase sempre como jogador de rotação. Sem brilho. Em seu último ano, 2007-08, sofreu problemas físicos, jogou pouco mais de 900 minutos, e saiu pela porta dos fundos para o Ajax. Não foi só o futebol mediano que lhe fez sair quase sem ser notado.
Futebol é política
“Considero um exagero os salários dos jogadores. O futebol me parece um negócio desproporcionado, ganha-se dinheiro demais. Mas o salário não vai me fazer mudar como pessoa”, comentou Oleguer em entrevista à Folha. “Além de jogadores de futebol, somos pessoas. Não tenho medo de expressar em público as minhas ideias, que considero justas, solidárias e coerentes”, prosseguiu antes de se declarar abertamente contrário ao capitalismo e à globalização: “Trazem injustiça e pobreza”.
Era 2005, e o catalão nem mesmo era campeão continental ainda. No final do mesmo ano, estava na mira do treinador Luis Aragonés, da seleção espanhola. Faltavam meses para o segundo Mundial da Alemanha e o polivalente defensor foi convocado. Apresentou-se, até foi fotografado em trajes do selecionado, mas logo comunicou formalmente sua recusa.
“Simplesmente expliquei a Aragonés o meu modo de ver o mundo e de ver que, se não há envolvimento ou sentimento suficiente, é melhor que escolham outros. A minha consciência me dizia isso”, relatou ao Mundo Deportivo, em 2012.
Aragonés respeitou e, até sua morte em 2014, nunca tocou no assunto. No entanto, o defensor foi chamado a comentar o ocorrido à exaustão. “O fato é que a seleção espanhola não deixa de representar um Estado no qual não me sinto representado e que, além disso, representa a opressão aos povos e muitas outras coisas com as quais não concordo; portanto, não me interessa”, disse ao Sport, em 2015.
Sobretudo por não se tratar de um atleta privilegiado do ponto de vista técnico, a escolha pareceu esdrúxula para os envolvidos no mundo do futebol; os anos que se seguiram provaram que, talvez, Oleguer estivesse nos grupos que conquistaram a Euro em 2008 e a Copa do Mundo de 2010. O catalão escolheu a margem e honrou sua decisão. Nunca voltou atrás, nem deu indícios de que gostaria de fazê-lo.
Como relata Quique Peinado, em Futebol à Esquerda, Oleguer “morava em um apartamento compartilhado e circulava com uma Kombi amarela. Sua mãe, Mercè Renom, é uma historiadora de prestígio, especialista em movimentos sociais na Catalunha”. Ele não precisa de muito, embora tivesse os meios para alcançá-lo.
Ao marcar seu primeiro gol pelo Barça, em abril de 2005, dedicou-o a David, garoto de 14 anos da sua Sabadell, detido por colar adesivos com dizeres antifascistas, ruas afora. Simbólico. Até a saída para o Ajax, consumadas 175 aparições pelo quadro catalão, não voltaria a balançar as redes adversárias.

Foto: Reprodução/Arte: O Futebólogo
Em defesa dos direitos humanos
Em fevereiro de 2007, Oleguer viveu o começo do fim de sua passagem pelo Barcelona. Ele publicou um artigo no jornal basco Berria criticando o tratamento conferido pelo Estado a um preso vinculado ao Euskadi Ta Askatasuna (ETA), o grupo separatista basco que possuía um braço armado e cometeu atos terroristas ao longo de seu período de atuação (entre 1959 e 2010, quando adotou um cessar-fogo).
Iñaki de Juana Chaos fora condenado em 1987, após participar de um ato terrorista que culminou na morte de 25 pessoas. Sua sentença indicou a privação de sua liberdade por mais de três mil anos — cumprimento evidentemente inviável. No entanto, pela Lei, tornou-se elegível para voltar à liberdade em 2004, após 17 anos. O governo espanhol travou uma longa batalha para impedir sua saída, acusando-o de seguir alimentando ameaças terroristas em artigos escritos na prisão.
Juana Chaos fez duas greves de fome, em 2006 e 2007, em protesto. Após a segunda, foi transferido para um hospital e só foi libertado em 2 de agosto de 2008, muito depois de Oleguer já ter perdido o contrato esportivo com a Kelme, por justamente questionar a legitimidade do tratamento dado pelo Estado ao preso — sem endossar seus crimes, defendendo apenas a observância estrita do devido processo legal.

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“Acreditamos na liberdade de pensamento e expressão, mas a relação entre jogador e empresa era baseada exclusivamente em critérios esportivos. Por isso, tomamos unilateralmente a decisão de rescindir o contrato”, informou a empresa em comunicado à imprensa. Sem a Kelme, Oleguer foi abraçado pela Diadora e doou cada centavo pago pela empresa italiana.
No período, o defensor também não escapou às críticas de alguns colegas nacionalistas. Filho de militar, o atacante Salva Ballesta, com passagens por Sevilla, Atlético de Madrid e Valencia, chegou a afirmar que teria “mais respeito por um pedaço de cocô de cachorro” do que por Oleguer, após a publicização do apoio do catalão à soltura do basco.
Não se sentindo representado pela Espanha, entendendo que ela falhou reiteradas vezes em seu papel de respeitar igualitariamente os povos e regiões que integram o Estado, desvalorizando suas diferenças e desejos de autonomia, foi com naturalidade que Oleguer apoiou o caso de Juana Chaos, cuja participação em atos terroristas não era justificativa para a abertura de exceções arbitrárias à Lei.
A luta pelo que se crê
Ainda como atleta do Barça, Oleguer se graduou em Economia pela Universidade Autônoma de Barcelona e, pouco depois, em 2006, lançou seu primeiro livro, em parceria com o amigo e poeta Roc Casagran: Camí d’Ítaca (O caminho para Ítaca, em tradução livre). O evento de lançamento aconteceu no centro social de Can Vies, uma ocupação autogerida no bairro de Sants, na capital catalã — uma Okupa.
Na obra, o jogador partiu da celebração do título do Campeonato Espanhol, em 2004-05, para reflexões sobre temas como desigualdade, racismo, prostituição, anorexia, drogas, Guerra Civil, franquismo e a transição espanhola. Oleguer criticou o Estatuto da Catalunha, a repressão do Estado espanhol, e relacionou o Barcelona à identidade catalã:
“Defender o Barça, às vezes, significava defender o país e ir contra o regime. Talvez signifique agora também. Em princípio, o futebol não passa de um esporte, mas, gostemos ou não, em uma comunidade não normalizada como a nossa, é uma forma de expressar sentimentos que nem sempre são compreendidos ou respeitados pelos outros”.

Foto: Reprodução/Arte: O Futebólogo
O relacionamento de Oleguer com as Okupas continuou ao longo dos anos, inclusive quando partiu para o Ajax, em 2008. Em 2010, o zagueiro apareceu em um vídeo veiculado pelo tablóide holandês De Pers. Foi um acontecimento único e sem grande repercussão, mas que deixou evidente que na capital holandesa ele seguia o mesmo, sem nenhuma necessidade de holofotes. O fim de sua carreira estava logo adiante.
Transmitir valores
Em 2011, aos 31 anos, pendurou as chuteiras. O futebol de elite já não interessava tanto. Anos depois, ao El País, confirmaria: “Olho para os meus dias de jogador como um tempo muito intenso, mas distante. Não tenho saudades”.
Por outro lado, o esporte em sua essência não deixou de ser uma paixão. Por meio de um projeto comunitário, em um antigo quartel da Guarda Civil de Sabadell, Oleguer passou a utilizar sua formação básica em treinamentos de futebol para dar aulas a crianças de 6 a 12 anos.
“Durante minha experiência como treinador, percebi que o futebol de base é muito focado no rendimento e, do meu ponto de vista, ocorrem situações humanas de que não gosto e que me deixam desconfortável. Eu queria fazer as coisas de uma maneira bem diferente”, explicou Oleguer à agência EFE. Com isso, o antigo defensor quis dizer que objetiva transmitir valores diferentes dos comumente associados ao futebol de alto nível.

Foto: Albert Salamé / VWFoto/Arte: O Futebólogo
“Como treinadores, tentamos prestar muita atenção ao que ocorre no jogo para que possamos parar e refletir sobre o que está acontecendo. Por exemplo, quando, durante a seleção do time, um garoto diz que não quer jogar com uma garota”.
De todas as formas, mesmo com escolhas incomuns, Oleguer reconhece que melhor do que se afastar do que não agrada é falar, lutar pelo que se acredita, continuar nas trincheiras. Mesmo dentro do futebol, um espaço brutal de influência, em suas palavras.
“Se você acredita em algo, precisa fazê-lo bem. O problema é que estamos tentando vender produtos em vez de pensar no que a sociedade realmente precisa. O racismo não se acaba com uma campanha intitulada ‘Stop Racism’, nem a paridade se alcança com a criação de uma liga feminina que incorpore os valores negativos da liga masculina”.
Oleguer não tinha talento para ser herói de muitos — e nem quis ser. Recusou o silêncio e a indiferença. Herói de poucos, garantiu que não seria só mais um.