O sonho tcheco e o presente de grego na Euro 2004

2004 FOI UM ANO ATÍPICO. A Copa do Brasil foi vencida pelo Santo André, a Libertadores da América partiu para as mãos do Once Caldas, a Liga dos Campeões voltou ao Porto e até a Copa da Liga Inglesa teve desfecho inesperado, vencida pelo Middlesbrough. É claro: esse foi também o ano em que a Eurocopa, disputada em Portugal, acabou conquistada pela Grécia, com seus pragmáticos e incansáveis heróis. Entretanto, enquanto a memória não permite esquecer que os gregos bateram, surpreendentemente, os anfitriões na final, muitas vezes acaba guardada a sete chaves a recordação da equipe batida nas semifinais, uma geração brilhante de tchecos.

Czech 2004 Euro

Foto: Alamy

Depois de comandar a seleção tcheca sub-21, o treinador Karel Brückner recebeu uma missão importante: conduzir o selecionado principal. Seu ingresso se deu em 2001, após a malfadada trajetória da equipe nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002, que os eslavos acompanharam de longe. Havia, contudo, confiança no futuro. Um punhado de jovens de imenso potencial caminhava em direção ao núcleo duro daquele time, composto por jogadores experientes e talentosos — entre os quais o melhor jogador europeu de 2003, Pavel Nedvěd.

Talento, juventude e experiência: a mistura perfeita

Desde as eliminatórias para a disputa do certame continental, sabia-se que os tchecos tinham lenha para queimar. Vitórias contundentes como o 3 a 1 perante uma geração holandesa em transição confirmavam que Nedvěd e companhia chegavam com fome; o país que havia batido na trave em 1996, sendo vice-campeão daquela edição, queria o primeiro título posterior à separação que ocorreu com a Eslováquia, em 1993.

Os eslavos alcançaram um recorde formidável no Grupo 3 das qualificatórias: sete vitórias e um empate em oito jogos. Foram 23 gols marcados (a segunda melhor marca de todos os grupos) e apenas cinco concedidos.

Ao mesmo tempo em que Brückner levava consigo a maturidade de Nedvěd, Tomáš Galásek, Karel Poborský, Vladimír Šmicer e Jan Koller, também carregava a energia de uma turma que ainda construía um nome no cenário internacional, como Petr Čech, Tomáš Rosický e Milan Baroš.

Os pés tchecos sempre pareciam saber o que fazer com a bola, controlando-a, usando-a para iludir e também enviando-a, com perfeição, à cabeça de Koller, o centroavante grandalhão (2,02m). O jogo tcheco possuía alternativas. Além da bola aérea de Koller, contava com a velocidade de Baroš, o passe e visão de jogo de Rosický, as investidas fulminantes de Nedvěd ou os dribles de Poborský.

Se a bola acabasse indo na direção da meta eslava, lá estava Čech, pronto para afastar o perigo com suas seguras mãos.

República Tcheca Euro 2004

Foto: Franck Fipe/AFP via Getty Images

Importante: alguns jogadores traziam entrosamento de seus clubes. Koller e Rosický eram companheiros no Borussia Dortmund; Šmicer e Baroš no Liverpool; Zdeněk Grygera e Galásek no Ajax.

Superioridade no Grupo da Morte

A missão tcheca não seria fácil. O sorteio colocou a nação no grupo da morte. Embora a Letônia não fosse uma real ameaça, o iminente reencontro com a Holanda seria duro e, mais ainda, esperava-se dificuldades na partida contra a última vice-campeã mundial, a Alemanha.

Como era de se esperar, os comandados de Brückner bateram os letões — com um quê de indolência. Apesar do domínio dos favoritos, foi necessário Māris Verpakovskis, em lance de indecisão da zaga e de Čech, acordar a República Tcheca, abrindo o placar para os azarões. A virada veio, com Baroš, em jogada brilhante de Poborský, e Marek Heinz (substituto de Grygera).

Passada a ansiedade da estreia, o show começou, mas parecia que tudo seria um pesadelo.

Choque de realidade e reviravolta contra a Holanda

Bastaram apenas quatro minutos para os espectadores do Estádio Municipal de Aveiro presenciarem a inauguração do placar naquela noite de verão.

De cabeça, o zagueiro Wilfred Bouma colocou a Holanda em vantagem. 15 minutos mais tarde, foi a vez de Ruud van Nistelrooy ampliar para a Laranja. Porém, aquela equipe tcheca era superior; provara nas eliminatórias e voltaria a fazê-lo. Arrojado, o treinador promoveu uma alteração logo aos 25 minutos, dois após Koller diminuir a desvantagem, assistido por Baroš.

Šmicer veio para o lugar de Grygera e os eslavos fizeram o que de melhor sabiam: atacaram.

O veterano Edgar Davids, ainda acertou a trave do goleiro Čech, que parou Nistelrooy. Contudo foram os tchecos que voltaram a mover o placar. Primeiro, após jogada espetacular. Com a costumeira precisão, Nedvěd lançou Koller no ataque. O grandalhão fez o pivô, ajeitando a pelota de peito para Baroš, que chutou como se deve — pegou na veia e afundou o goleiro Edwin van der Sar.

Tchéquia Holanda 2004

Foto: Sport

Depois, o holandês John Heitinga acabou expulso e Nedvěd acertou um míssil na trave. Este, pouco depois, defendeu outro petardo, mas nada pode fazer para evitar o passe de Poborský que deixou Šmicer à vontade para chutar para o gol vazio. 3 a 2 e classificação antecipada.

No último encontro do grupo, mesmo com time quase todo reserva, a República Tcheca ainda bateu a Alemanha que, em crise de identidade, parou na fase de grupos: 2 a 1, novamente com gols de Heinz e Baroš. A seguir vieram os mata-matas. Os tchecos encantavam e eram considerados potenciais vencedores da Euro.

 

Repertório contra a retranca

Como campeão do Grupo D, o levante de Brückner teve o benefício de enfrentar a vice-líder do Grupo C, Dinamarca.

Embora o treinador dos escandinavos fosse Morten Olsen, um dos bastiões da Dinamáquina que encantou nos anos 1980, a essência do time condizia mais com os predicados de um Thomas Gravesen, marcador duro. A defesa dos daneses suportou um tempo. Mas, quando a vitória tcheca não vinha na criatividade e virtuose, podia também vir à força.

Aos 49 minutos, Poborský cobrou escanteio na cabeça de Koller, 1 a 0. Martin Laursen era alto (1,90m), mas a desvantagem para o centroavante tcheco era desleal.

Aos 63, a bola reencontrou o fundo das redes dinamarquesas, dessa vez à moda eslava: Baroš foi lançado às costas da defesa rival por Poborský e tocou sutilmente por cima do goleiro. Atordoada, a Dinamarca voltou a sofrer dois minutos depois, novamente com Baroš. O atacante do Liverpool foi novamente acionado em velocidade, dessa vez por Nedvěd. Invadiu a área e fuzilou Thomas Sørensen.

Com três bolas a zero, o sonho ficava cada vez mais palpável.

 

Azar e pernas cansadas

Do outro lado do chaveamento, porém, a Grécia também fazia história. Após avanço no Grupo A, condicionando a eliminação de Espanha e Rússia, os comandados do alemão Otto Rehhagel, suplantaram o favoritismo francês nas quartas de finais, com um modesto e efetivo 1 a 0.

Se a Dinamarca já havia sido um adversário forte na defesa, sofrendo somente dois gols na fase de grupos, os helênicos seriam outro desafio duro para a República Tcheca. Dito e feito.

Sem trair sua essência, os gregos seguraram os tchecos. Houve espaço para drama também.

Aos 40 minutos, os eslavos perderam sua grande referência moral, seu capitão, o camisa 11, o melhor jogador da Europa. Nedvěd se machucou após dividida com Kostas Katsouranis. Entrou Šmicer: bom, mas incapaz de substituir Pavel, sobretudo naquele momento.

A desolação de Nedvěd no banco de reservas foi o prenúncio de uma noite de tristeza para seu país. Koller tentou. Baroš também. A prorrogação foi inevitável e os tchecos estavam exaustos. O gol de prata marcado de cabeça por Traianos Dellas foi a consequência fatal daquele encontro.

 

“Precisamos aceitar a derrota, a vida é assim. Não temos porquê ficar envergonhados. Pelo contrário, devemos ficar orgulhosos, ainda nesse jogo, com seu final ruim”, refletiu Brückner após o jogo.

O encanto provocado por aquele time da República Tcheca passou à história (assim como a fortaleza grega). As jogadas, dribles, chutes, e criatividade hipnotizantes não foram esquecidos. Tampouco a eficiência de Koller ou a velocidade de Baroš — artilheiro da competição, com cinco gols. A equipe voltaria ao cenário internacional na Copa do Mundo de 2006, sem o mesmo fôlego, todavia. Parou ainda na fase de grupos, vendo o avançar de Itália e Gana. O time era quase o mesmo, mas o ânimo e o ímpeto, não.

2004 foi mesmo a grande chance.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

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