O pioneirismo do sul-coreano Cha Bum-kun na Bundesliga
A HISTÓRIA É LENTA, minuciosa, por vezes tediosa. É de sua natureza. Ela contraria juízos rápidos. Sem deliberação, afasta afirmações categóricas. Son Heung-min é o maior jogador sul-coreano de todos os tempos, se ouvirá de um. Na verdade, é Park Ji-sung — replicará outro. Nenhum dos envolvidos estará, efetivamente, errado. Nem certo. Os critérios de eleição podem ser variados. No entanto, entre os corriqueiros estão a qualidade dos serviços prestados, a longevidade, o impacto individual, coletivo e perante o público. Essa conversa precisará passar pelo nome de Cha Bum-kun, concluirão todos.

Foto: Reprodução/Arte: O Futebólogo
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No dia 18 de maio de 1988, o Bayer Leverkusen tenta uma improvável reviravolta. Perdeu a partida de ida por 3 a 0. Os catalães do Espanyol têm a faca e o queijo em suas mãos. 90 minutos é tudo que os separa do título da Copa da Uefa. Pragmático, o treinador Javier Clemente saca o atacante Ernesto Valverde, titular na ida, e introduz o volante Joan Golobart. Tudo o que precisa é não perder por diferença igual ou superior a três gols.
Faltam menos de 10 minutos para o fim da partida, quando Cha Bum-kun iguala a disputa. O placar sinaliza 3 a 0 para os alemães. Em breve, serão coroados campeões, após a disputa por pênaltis. O sul-coreano ainda vai jogar mais um ano, mas sua obra está pronta. Faz uma década que ele está na Alemanha. Foi o precursor entre seus compatriotas e, por pouco, não foi o primeiro do continente — fato protagonizado pelo japonês Yasuhiko Okudera, que firmou pelo Colônia em 1977.
Um talento grande demais
O futebol asiático, encarado por um viés competitivo, apresenta-se fenômeno recente. O quarto lugar da Coreia do Sul, na Copa do Mundo de 2002, é, com efeito, o único resultado grandioso do continente no maior palco internacional de seleções. Ele foi o ápice de uma construção de décadas.
Em 1972, quando Cha Bum-kun começou a jogar na Universidade da Coreia, faltava mais de uma década para a formação da K League. Seu destaque era conhecido apenas no âmbito do futebol escolar, que pavimentou sua chegada à seleção sub-20.

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Em outras palavras, naquele 1972, ele já era conhecido e não chegou a ser surpreendente seu primeiro chamado à representar a seleção principal. Tinha 18 anos; era o mais jovem de sempre a defender o país. Na Copa da Ásia, a Coreia do Sul foi à final, acabando derrotada pelo Irã.
A qualidade de Cha Bum-kun era autoevidente, mas estava, na maior parte do tempo, restrita aos palcos amadores. Ele era um sucesso, vencendo o campeonato nacional em 1974, mas pouca gente via. Quatro anos depois da chegada à universidade e à seleção, o atacante teve de prestar o serviço militar obrigatório. Convencido pelo time da Força Aérea, deixou a Marinha de lado, sob a promessa de liberação antecipada.
Peça fundamental para a seleção, não conseguiu a classificação para o Mundial de 1978, mas foi decisivo na conquista dos Jogos Asiáticos, do mesmo ano. Ali, ele já era uma figura um pouco mais conhecida.
O olho clínico do Eintracht Frankfurt
Pouco antes do título continental, a Coreia do Sul disputou a Copa do Presidente. Predecessora da Copa da Coreia, a competição objetivava desenvolver o futebol local e, usualmente, opunha seleções asiáticas a equipes estrangeiras. Em 1978, a disputa contou com a participação de equipes como o Washington Diplomats, que mais tarde contaria com Johan Cruyff.
Esteve presente também o time B do Eintracht Frankfurt.
Os anfitriões alcançaram o título, enquanto os alemães sequer superaram a fase de grupos, batidos pelos iranianos do PAS Tehran, os marroquinos do AS FAR e a seleção da Nova Zelândia. Perda de tempo a viagem? Nada disso. O auxiliar técnico do Frankfurt, Dieter Schulte, identificou em Cha Bum-kun um alvo de contratação e logo abordou o jovem atacante. Ele ainda permaneceu no país até o final dos Jogos Asiáticos e, em seguida, fez testes na Alemanha.
As provas correram bem e apesar do desejo do Frankfurt de contar com o sul-coreano, o Darmstadt se antecipou e fechou um contrato de seis meses. No entanto, as relações com os militares não terminaram em bons termos. Dias depois da estreia, contra o Bochum, ele precisou retornar à Coreia, para cumprir mais alguns meses de serviço militar. Só foi liberado em 31 de maio de 1979. Então, pegou um avião e seguiu de volta para a Alemanha.

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“Ele veio para o Darmstadt e não falava uma palavra de alemão […] Depois, quando estava no Stuttgart, Gerhard Mayer-Vorfelder me enviou uma mensagem no meio da noite. A embaixada tinha ligado para dizer que Cha estava de volta e queria assinar conosco […] foi só quando cheguei ao Frankfurt que o ciclo se fechou. Acho difícil crer em coincidências”, disse Lothar Buchmann ao site oficial do Frankfurt.
Buchmann era o treinador do Darmstadt e seguira para o Stuttgart. Foi informado das intenções do atacante, então com 26 anos. Seu novo clube teve interesse, mas só podia contar com dois estrangeiros e lá estavam o sérvio Dragan Holcer e o austríaco Roland Hattenberger. Perdeu a chance, que agora não escapou do Frankfurt. E quis o acaso que Buchmann acertasse com o Eintracht pouco depois.
Mais um asiático na Bundesliga
Na transição dos anos 1970 para os 80, a Bundesliga deu alguns passos rumo a um futuro mais diverso e inclusivo. Além do japonês Okudera, chegou o tailandês Witthaya Hloagune, para o Hertha Berlin. Em pouco tempo, começaram a desembarcar também atletas africanos e de outros países da periferia do futebol. Parte desse movimento, não há como negar, influenciado pelo sucesso de Cha Bum-kun.
Foi tudo muito rápido.

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O atacante estreou no dia 11 de agosto de 1979, numa derrota marginal para o Dortmund, 1 a 0. Duas rodadas depois, sempre como titular, marcou o primeiro gol. A vítima foi o Stuttgart. Isso se repetiu nos jogos imediatamente seguintes, diante de Braunschweig e Leverkusen. Até o final da temporada, sairiam mais 12 gols. Apesar da 9ª colocação na Bundesliga, o ano foi marcado por festa.
Na disputa da Copa da Uefa, o Frankfurt eliminou o Aberdeen, treinado por Alex Ferguson (2 a 1 no agregado). Teve gol de Cha. Depois, bateu o Dinamo Bucareste (3 a 2). Outra vez, o sul-coreano marcou. Então, o time machucou o tradicional Feyenoord (4 a 2). Cha fez mais um. Nas quartas, foi a vez de eliminar os tchecos do Zbrojovka Brno (6 a 4); nas semis, o Bayern (5 a 3); na final, o Gladbach (3 a 3, triunfo no gol fora de casa).
O atacante não voltou a marcar, mas se sagrou campeão no primeiro ano longe de casa.
O bom desempenho lhe rendeu lugar no time do ano, eleito pela revista Kicker. Seus companheiros de ataque foram Kevin Keegan, do Hamburgo, e Karl-Heinz Rummenigge, do Bayern. No campo, pouco importavam as dificuldades vividas fora dele.
“Os alemães apreciam refeições com alimentos frios, incluindo pão, queijo e presunto. Foi difícil para mim gostar ou me acostumar, especialmente no jantar”, comentou em entrevista concedida ao portal Korea.
O desempenho em 1980-81 se manteve e Cha anotou 16 gols. Um deles aconteceu na final da Copa da Alemanha, diante do Kaiserslautern. Na altura, já se ouvia um novo som na boca dos torcedores Tcha Bum!. Era uma onomatopeia, mas não apenas: tratava-se de uma aclamação ao explosivo Cha Bum-kun.
O atleta passaria mais duas temporadas em Frankfurt, sem novos títulos, mas com mais 27 gols.
Mudança de ares no Leverkusen
Em 1983, chegou a despedida. O Frankfurt lidava com problemas financeiros e uma proposta do Leverkusen apareceu na mesa do presidente do clube. Foi com pesar que a torcida das Águias acompanhou a saída de um de seus favoritos.
“O centro de treinamentos era pequeno e o estádio ainda não se comparava à arena atual. Era tudo mais modesto. Fui muito bem recebido. Acima de tudo, Calli [o diretor Reiner Calmund] e [o auxiliar técnico] Jürgen Gelsdorf cuidaram muito bem de mim e da minha família. Falko Götz [atacante da equipe] também era um bom amigo. Nos demos muito bem desde o início”, contou ao site oficial do Leverkusen, em 2023.
O torcedor dos Aspirinas não teve do que reclamar. O Leverkusen era um time mediano e vinha de uma 11ª colocação na temporada anterior.

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Cha estreou contra o Bayern e passou em branco. Na rodada seguinte, fez seu primeiro gol. A vítima foi o Nuremberg e ele logo em seguida teve que encarar o pior: fazer seu trabalho contra quem lhe abrira as portas do alto nível. Na terceira rodada, o sul-coreano encarou o Frankfurt e balançou as redes. Foi o primeiro dos 12 gols marcados naquela temporada.
Apesar disso, por melhor que fosse o desempenho do jogador, o Leverkusen não melhorava. Um sétimo lugar deu lugar a uma colocação ainda pior em 1984-85: 13º. Mesmo em 1985-86, melhor temporada individual de Cha Bum-kun na Alemanha, marcada por 19 gols, os Werkself não foram longe. Ficaram em sexto. Ao menos, voltaram a disputar futebol continental, com a classificação para a Copa da Uefa.
Durante a queda, um último sorriso
Desde sua saída para o futebol alemão, Cha Bum-kun não atuava pela seleção sul-coreana. Porém, em 1986, ele voltou à ativa para ajudar o país no Mundial. Sem sucesso, o atacante se aposentou definitivamente do futebol de seleções. Foram 132 jogos e 59 gols, recordes absolutos por anos e anos, mas que, algum dia, fatalmente serão superados.
O Leverkusen seguiu patinando. Em 1986-87, caiu logo na segunda fase da Copa da Uefa, ficando aos pés do Dukla Praga. Outra vez, ficou em sexto na Bundesliga e renovou o passaporte para a disputa europeia. Tcha Bum! já não era uma exclamação tão ouvida. O atacante teve seu ano menos goleador, até então, com apenas nove tentos.
Seus melhores dias haviam passado.
Ele ainda jogaria mais duas temporadas, somando outros nove gols totais e formando pálida imagem do jogador do início da década. Mas ele não podia encerrar a carreira sem um desfecho à altura de sua trajetória. Por isso foram tão importantes os feitos do dia 18 de maio de 1988, com o gol e o título.
“Foi um momento dramático, o gol mais emocionante e importante da minha vida. Vencemos uma grande competição com o time que ainda estava sendo construído. Ninguém acreditava que conseguiríamos. Realmente conquistamos algo incrivelmente especial”.
Cha ainda se confirmou o maior artilheiro estrangeiro da Bundesliga, com 98 gols. Seria superado apenas por Robert Lewandowski, Claudio Pizarro, Élber, Vedad Ibišević, Andrej Kramarić, Aílton e Stéphane Chapuisat.
E o maior sul-coreano de todos os tempos?
Até os idos de 2019, Cha Bum-kun foi o sul-coreano com mais gols em solo europeu. Enfim, foi superado por Son. Para o ídolo do Tottenham, no entanto, não há dúvidas quando os inevitáveis questionamentos chegam: “O primeiro lugar é sempre de Cha Bum-kun”, garantiu à TV Chosun.
Se o campo da História costuma ou ao menos tenta ser criterioso, marcado por juízos imparciais, o das comparações rema na direção contrária. É rápido, aponta para o lado que o coração escolhe. Determinar quem é, ou foi, o maior jogador sul-coreano de todos os tempos é uma missão que não alcança critérios absolutos. Para os advogados de Cha Bum-kun, no entanto, não faltam bons argumentos para aclamar seu nome.
“A única maneira de retribuir aos meus fãs sul-coreanos era dando o meu melhor em campo. Durante meus 10 anos na Alemanha, pratiquei a autodisciplina constantemente, e com afinco. Esse estado de espírito foi o que me ajudou a sobreviver àqueles anos, trilhando um caminho que ninguém havia trilhado antes”.
Ele desbravou um caminho inexplorado e inóspito. Alcançou o sucesso de uma forma que Okudera, mesmo defendendo o Werder Bremen por mais de cinco anos, não conseguiu e que Hloagune mal pôde sonhar, pelo Hertha e o Saarbrücken.

Foto:AP Photo/Ahn Young-joon/ Arte: O Futebólogo
Em 1999, sem grande surpresa, Cha-Bum kun foi eleito jogador asiático do século XX. Ele escancarou as portas da Europa para os asiáticos, não apenas os sul-coreanos. Um dos beneficiados, inclusive, seria seu filho: nos anos 2000, Cha Du-ri chegou a defender o Eintracht Frankfurt.
Mais tarde, a carreira de treinador ainda rendeu frutos bons. O atacante liderou sua seleção no Mundial de 1998 e passou mais de meia década no Suwon Bluewings, vencendo a K League duas vezes, entre outros títulos. Em 2010, pendurou as pranchetas, mas não foi esquecido. Nove anos mais tarde, recebeu a Ordem do Mérito alemã, distinção concedida por serviços extraordinários em política, economia, cultura, arte ou trabalho voluntário.

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“É ótimo saber que não sou só eu que realmente valorizo a Alemanha, mas que a Alemanha também valoriza o que conquistei. Isso me deixa um pouco orgulhoso”.
Para quem fez tanto, pouco importa ser o maior.

