Em 1995-96, o Auxerre consagrou a continuidade com Guy Roux

DO CONFORTO DO BANCO DE UM TREM e com a legitimidade reservada aos que dedicaram uma vida inteira ao futebol, Guy Roux fala ao Le Monde. É vivido o final de março de 2018. São muitas as memórias do eterno treinador do Auxerre, mas os anos 1990 são os mais recordados. Não é para menos. Foi durante a década que sua dedicação e trabalho à frente do AJA se pagou, por meio de um título único e irrepetível.

Auxerre 1996

Foto: Le Parisien

Roux e Auxerre poderiam ser sinônimos; vivem histórias cruzadas. Embora o clube tenha sido fundado em 1905, só chegou à elite francesa na temporada 1980-81, com a conquista da Ligue 2 do ano anterior. Quando aconteceu, a equipe azul e branca já tinha o mesmo treinador há quase 20 anos. Antes, ela já tinha sido sua casa como atleta.

O caminho para a vitória

É difícil dizer o que leva a relação entre clubes e treinadores a ser curta ou longeva. Os resultados, obviamente, são a maior condição, mas não a única. Alex Ferguson e Manchester United, por exemplo, viveram juntos um jejum de cinco anos até o início de sua excepcional corrida rumo ao topo da Europa.

Roux, por outro lado, chegou ao Auxerre em 1961 e só foi levantar seu primeiro caneco 18 anos depois.

Nesse meio tempo, afirmou-se um estudioso do esporte e ficou marcado pelas frequentes viagens de carro para acompanhar partidas de futebol. A mais representativa delas, é provável, terá sido dentro da Argentina, para acompanhar a Copa do Mundo de 1978. A missão foi desempenhada em um carro de qualidades questionáveis, com méritos indubitáveis.

O treinador começou sua trajetória na última divisão do futebol francês e foi construindo uma história memorável. Nove anos depois de sua chegada ao comando técnico do AJA, finalmente, o clube deixou as disputas regionais, chegando à terceira divisão, a primeira com estatuto nacional.

Guy Roux Auxerre

Foto: Samira Bouhin/AFP via Getty Images

Em 1974-75, o time da Borgonha chegou à segundona e não fez feio em sua temporada de estreia. Ficou na 10ª colocação do Grupo A e continuou sua escalada. No ano seguinte, terminou na mesma posição, desta vez no Grupo B. Em 1977, houve evolução, com o quinto lugar do Grupo A e, em 1978, o Auxerre consolidou sua intenção de acesso, com um quarto lugar no mesmo grupo, feito repetido no ano posterior.

O calvário acabou em 1980, com o título do Grupo B e o acesso à Ligue 1.

A estreia na divisão de elite poderia ter sido a porta de saída de Guy. Era uma oportunidade boa, o técnico estava em evidência e cumprira seu dever. Porém, ele queria colher os louros e viver anos de bonança, após tantas dificuldades. Mesmo porque, em 1979, já havia tido uma pequena mostra do que era possível obter.

No ano, o Auxerre chegou à final da Copa da França, deixando times como Lille e Strasbourg, então de primeira divisão, pelo caminho. A derrota só veio na final, contra o Nantes (na prorrogação). O sonho, entretanto, continuou sendo vivido, com um honroso 10º lugar na primeira campanha na elite.

O time se segurou na primeira divisão, consolidou lugar no rol dos grandes. A primeira grande prova disso veio em 1983-84, com o terceiro lugar no nacional e a classificação para a Copa da UEFA. Boas campanhas foram se acumulando, mas os títulos não vinham.

Trabalhando bem com orçamento enxuto, aproveitando o que de melhor nascia nas categorias de base do clube, Roux ganhou continuidade e premiou os torcedores borgonheses nos anos 1990 — a década inesquecível do Auxerre.

O melhor ano da história do Auxerre

Em 1994, a porteira da sala de troféus se abriu de vez no estádio Abbé-Deschamps. O título que escapou em 1979 finalmente chegou. Após bater seu algoz do passado, o Nantes, nas semifinais, o Auxerre superou o Montpellier e conquistou sua primeira Copa da França.

Cimentado no rol dos melhores clubes franceses, o AJA precisava de uma prova cabal de que merecia tal lugar. Um título mais pujante. Ele veio em 1995-96.

O grupo que Roux tinha nas mãos era forte, com vasta passagem pela seleção francesa. Muitas peças haviam sido formadas na equipe e tinham noção do que representaria um título da Ligue 1. O goleiro Lionel Charbonnier, o lateral Alain Goma e o meia-atacante Bernard Diomède eram pratas da casa. Entre os que não eram, como o capitão Corentin Martins, os meio-campistas Sabri Lamouchi e Philippe Violeau, ou o defensor nigeriano Taribo West, muitos estavam na equipe há anos.

Ainda se juntou a eles o defensor Laurent Blanc, que precisava dar uma guinada em sua carreira.

Auxerre Champion 1996

Foto: L’Equipe

O time tinha brio, jogava em um esquema 4-3-3 equilibrado e já batera na trave algumas vezes. Havia chegado a hora de mudar esse quadro. Com a defesa menos vazada e o ataque mais artilheiro da competição, o clube finalmente soltou o grito de campeão. Em 38 rodadas, foram 22 vitórias, seis empates e 10 derrotas — 72 pontos que deixaram os borgonheses em superioridade de quatro em relação ao PSG, vice.

Na 32ª rodada, uma vitória por 3 a 0 contra os parisienses, do brasileiro Raí, foi fundamental para a conquista.

Prêmios individuais também vieram, com a convocação de Blanc, Lamouchi e Martins para a disputa da Euro 1996. Naquele ano, o craque da competição foi Zinédine Zidane e a artilharia coube ao brasileiro Sonny Anderson.

Ainda veio o título da Copa da França, o segundo. Uma vitória por 2 a 1 contra o Nîmes devolveu a taça ao AJA, reforçando a prataria borgonhesa.

Vencer o francês também significou disputar a Copa dos Campeões de 1996-97, em que o clube foi bem; parou nas quartas de finais, contra o Borussia Dortmund, futuro campeão.

Anos de paz e tranquilidade

O Auxerre ainda viveu bons anos sob o comando de Roux, que permaneceu na equipe até 2005 — embora tenha se retirado em duas ocasiões, entre 2001 e 2002, para cuidar de um já combalido coração. O técnico ganhou a Copa da França em 2003 e 2005. Primeiro com a geração de Philippe Mexès, Djibril Cissé e Olivier Kapo, todos formados em casa, e depois contando com Younès Kaboul, Bacary Sagna, outras crias da base do AJA.

Roux se despediu com estilo, após 44 anos de trabalho, 25 anos deles consecutivos na primeira divisão .

The Guardian Guy ROuxEm 2005, o jornal Guardian exaltou o treinador francês

Acervo: Guardian

Após a saída de Roux, o time permaneceu na primeira divisão até 2011-12. Desde então, tem tido dificuldades e se afastou do sucesso. Roux, quase um octagenário e também lembrado por ter recusado a seleção francesa duas vezes, vê de longe as dificuldades do time que colocou no mapa.

Vez ou outra, oferece sua opinião sobre os mais diversos assuntos, protegido pela força da história que construiu. Ao contrário do enfraquecido Auxerre, ela segue pertencendo ao grupo das melhores e mais impressionantes que o futebol já conheceu. Roux será para sempre lembrado, carinhosamente, como o avô do futebol francês — o responsável por um trabalho fantástico que teve seu pico máximo em 1995-96.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

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  1. 28 de abril de 2025

    […] futebol francês, a liderança por anos e anos a fio não é algo tão inédito. Guy Roux será o exemplo mestre, difícil de superar. Afinal, permaneceu no Auxerre por 44 anos (de 1961 a […]

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