No Schalke 04, o ato de confirmação de Raúl González
ATÉ EM SEU NOME RESSOAVA o Real Madrid: Raúl González Blanco. Ele tentou negar; como a família, amou primeiro o vermelho e branco do Atlético de Madrid. Até mesmo vestiu primeiro a camisa colchonera, ainda nas categorias de base. Então, já se sabia um prodígio. No entanto, o polêmico presidente da equipe, Jesús Gil, decidiu encerrar quase todos os times de base rojiblancos. Com 15 anos, Raúl foi para a rua, engoliu em seco e acertou com o Real. A partir de então, foi apenas blanco. Por uma década e meia.

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
O Galáctico mais discreto
O craque da camisa 7 madridista estava no olho do furacão quando, no início do século, o clube apostou em uma nova direção esportiva e de marketing. Liderada pelo diretor José Ángel Sánchez, a iniciativa se inspirou no que a Disney havia feito com O Rei Leão. O clube se tornaria um espetáculo que não acaba, antes, continua. Assim como o filme, que deixou as telas de cinemas, mas continuou sendo reproduzido em aviões e aparelhos de DVD.
O espetáculo não podia continuar sem estrelas. Assim, foram chegando Zinedine Zidane, Luis Figo, Ronaldo, David Beckham, Fabio Cannavaro e, mais tarde, Cristiano Ronaldo e Kaká. Eram os Galácticos. No meio de todos estes nomes, ficavam os responsáveis por manter a chama do madridismo viva. O principal emblema era Raúl, herdeiro da braçadeira de capitão de Fernando Hierro, que em breve seria de Iker Casillas.
Em diversos momentos, contudo, foi questionada a viabilidade esportiva de uma equipe com tanto talento individual ofensivo e que não entregava coletivamente empenho suficiente para manter o time equilibrado. Invariavelmente, o debate chegava em Raúl — até mesmo por sua incapacidade de carregar a seleção espanhola às conquistas. Ele estava à altura das outras estrelas?
O atacante seguia titular, relevante e alcançando as mais expressivas marcas. Há quem não se lembre, mas a primeira camisa vestida por CR7 no Real estampava o número 9. Sua preferida tinha dono e ninguém ousava tocá-la. Isso diz muito.

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
Porém, aos 32 anos, Raúl viu enfim suas aparições ficarem limitadas. Era a temporada 2009-10 e o craque foi deixado de lado pelo treinador Manuel Pellegrini.
O ídolo madridista fez 39 partidas, mas, em média, somou apenas 39 minutos em campo por jogo. O recado não poderia ser mais claro. Ele ainda era o capitão, a referência moral, e o time não escancarava a porta para sua saída, mas um símbolo da realeza não daria conta de ser coadjuvante.
“No momento, não vou me aposentar. Espero que possa cumprir meu contrato de um ano, mas veremos o que acontece ao final da temporada. Eu quero, sobretudo, seguir jogando futebol. Acho que Pellegrini continuará sendo o treinador, tenho confiança nele e quero que continue”, comentou em abril de 2010.
Pellegrini preferiu montar seu ataque ao redor de figuras como Kaká, CR7, e Karim Benzema ou Gonzalo Higuaín. Até Marcelo apareceu em posições mais ofensivas; direito do treinador que foi reconhecido por Raúl.
O até logo ao Bernabéu
Como os grandes, ele não quis ser mais um e trocou o que seriam temporadas de conforto, tranquilidade e cada vez menos minutos em campo por um desafio novo. Não mais vestido de branco, mas ainda coberto em realeza, com a camisa do Schalke 04; representando os Königsblauen — os Azuis Reais.
No verão europeu de 2010, enquanto o mundo prestava atenção à Copa do Mundo, Raúl aceitou um contrato de duas temporadas, para receber algo a rondar os seis milhões de euros anuais. O Real Madrid se despediu daquele que, na altura, era o recordista de jogos e gols pela equipe: 741 e 323, respectivamente.
“Estou feliz por ter conseguido atrair um jogador de futebol excepcional e um atacante de classe mundial para a Bundesliga e o Schalke. Sua contratação representa um passo fundamental para nós no fortalecimento e reestruturação da equipe para os próximos desafios”, comentou o treinador alemão Felix Magath, quando do acerto.

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
Outra figura fundamental para a conclusão do negócio foi o amigo Christoph Metzelder, que atuou no Real Madrid em meados da década, mas sem muito sucesso.
“Voltei para Madrid e conversei com Raúl sobre o Schalke e a possibilidade de vir para a Bundesliga. Ele me disse que achava interessante. Foi uma surpresa para mim e Magath ver o interesse de Raúl. No final, ele veio conosco”, pontuou.
Embora Gelsenkirchen não fosse a mais atraente das cidades, profundamente marcada pela sua veia industrial, o Schalke 04 não era um time qualquer, tratava-se do último vice-campeão alemão, com apenas 5 pontos de desvantagem para o Bayern.
Entre outros, o time tinha Manuel Neuer na meta, Benedikt Höwedes na defesa, Julian Draxler no meio-campo e Klaas-Jan Huntelaar no ataque.
Apesar do otimismo e do bom time, as coisas não saíram bem no início. O Schalke perdeu os quatro primeiros jogos da Bundesliga, inclusive o dérbi do Vale do Ruhr, contra o Dortmund. As coisas só começaram a melhorar na 15ª rodada, quando o time venceu o Bayern, 2 a 0. Raúl, que só tinha marcado em três partidas até então, providenciou uma assistência.
Aquele não seria um bom ano no Campeonato Alemão. Em março, Magath acabaria substituído por Ralf Rangnick, em um retorno breve, seis anos depois do primeiro adeus. Breve porque, da mesma forma que o time começou a Bundesliga com uma sequência de quatro derrotas, fechou o torneio repetindo a dose.
Fracasso total para Raúl, certo? Errado.
Realeza no Schalke 04
O espanhol se salvou do naufrágio dos Azuis Reais na Bundesliga e não apenas. Foi a referência de um time que conquistou a Copa da Alemanha, com Raúl marcando o gol solitário das semifinais, eliminando o Bayern, e conduzindo o time à sua melhor participação na Liga dos Campeões em todos os tempos.
Depois de avançar em um grupo com Lyon, Benfica e Hapoel Tel Aviv, eliminou Valencia, Internazionale e parou apenas aos pés do Manchester United. Em 2010-11, Raúl fez 51 jogos e marcou 19 gols.
“No final, conquistamos o único troféu que Raúl ainda não tinha, a copa nacional, e chegamos às semifinais da Liga dos Campeões, o maior sucesso da história do Schalke em uma competição internacional. Apesar de termos terminado em 14º lugar na Bundesliga, o que foi muito ruim, foi uma temporada inesquecível, também para Raúl”, acrescentou Metzelder.
Durante o ano, o espanhol anotou alguns de seus tentos mais bonitos, como um que vitimou o Hannover. Raúl se livrou da marcação do lateral esquerdo Christian Schulz e, em um espaço de tempo muito curto, fintou o goleiro Ron Robert Zieler antes de rolar para o fundo das redes — um típico lance de quem sabe o que está fazendo e tem liberdade para convidar a bola para um cafezinho.
Raúl foi um sucesso instantâneo com o torcedor, não só por ter sido um movimento que parecia impossível, mas por ter desejado atuar pelo clube.

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
Em 2011-12, sem Liga dos Campeões, o time voltou a pegar firme na Bundesliga a partir do retorno de outro técnico ícone: Huub Stevens, que liderou a equipe entre 1996 e 2002 e conquistou a Copa da Uefa de 1996-97. Raúl manteve a titularidade e, dessa vez, fez 47 jogos e 21 gols. Mais gols em menos jogos, comprovando que sua contratação foi muito mais do que uma jogada de marketing.
Os Azuis Reais terminaram o Campeonato Alemão na terceira colocação e foram às quartas de finais da Liga Europa. Se não chegaram mais longe não foi por falta de entrega de seu astro espanhol, que marcou três gols na última eliminatória. Um deles foi uma pintura: um sem-pulo de fora da área.
O problema foi enfrentar o Athletic Bilbao de Marcelo Bielsa — uma das equipes cultuadas naquele ano. “Este pode ser o melhor Athletic que já vi”, comentou à época.
Aliás, antes que se perca de vista: o ano começou com o título da Supercopa da Alemanha. Foi nos pênaltis, mas em cima do grande rival, Dortmund. Foi um ano intenso do começo ao fim.
Depois de comprovar que sempre teve talento para figurar entre os Galácticos do Real Madrid, colocando por terra argumentos de que só jogava por se espanhol, Raúl decidiu que era a hora de fazer mais um grande contrato, antes de pendurar as chuteiras. A exemplo do ocorrido dois anos antes, era abril quando tomou sua decisão.
Rey de Fútbol, pelo menos em Gelsenkirchen
“Meu futuro está fora da Europa, em uma liga que não é tão forte em termos de jogos como a Bundesliga. Não foi uma decisão fácil de tomar. Eu tive dois anos maravilhosos e sempre terei um lugar para o Schalke no meu coração”, sentenciou.
O destino foi o Al-Saad, do Catar. Raúl se despediu do torcedor alemão no dia 28 de abril de 2012.

Foto: Alamy/Arte: O Futebólogo
Em Gelsenkirchen, o Schalke goleou o Hertha Berlin, 4 a 0. O espanhol marcou um gol e criou uma assistência. O triunfo classificou a equipe para a Liga dos Campeões do ano seguinte e o atacante foi celebrado por uma torcida que expressou gratidão. Nas arquibancadas, lia-se em uma faixa: “Muchas gracias el Rey de Fútbol”.
Ao lado dos cinco filhos, Raúl saudou os torcedores. Era a penúltima rodada. A derradeira foi em Bremen, diante do Werder. Raúl ficou no banco, já não havia mais razões para entrar em campo.