Mohamed Aboutrika: o craque, o ídolo e o exemplo

A última vez em que o Egito
chegou à disputa de uma Copa do Mundo foi em 1990, no certame sediado na
Itália. De lá para cá, foram muitas as decepções e só agora, por meio da
geração de Mohamed Salah, o quadro tem vindo a mudar, após a
classificação para o Mundial de 2018. A situação era, todavia, incompreensível,
sobretudo quando se fala na primeira década do século XXI. Isso porque os
Faraós impuseram forte domínio continental. Tricampeões da Copa Africana de
Nações em 2006, 2008 e 2010, contavam no período com um jogador de indiscutível
talento e um personagem icônico; um camisa 10 que vestia a 22: Mohamed Aboutrika.

Mohamed Aboutrika Al Ahly Egypt
Foto: AP


Muito lembrado pelas várias
participações do principal clube de sua carreira, o Al Ahly, nos Mundiais de
Clubes da FIFA, Aboutrika é um personagem curioso. Virtuoso com a bola nos pés,
dotado de visão de jogo privilegiada, inventivo, criativo, indomável, o egípcio
foi craque. A ausência em Mundiais ou o fato de nunca ter atuado na Europa não
são capazes de contrariar tal realidade. Dentre os jogadores que atuavam na
África, o meia foi eleito quatro vezes o melhor. Considerando todo o universo
de atletas de seu continente, foi escolhido o segundo melhor em 2008.
Títulos também foram muitos: sete
do Campeonato Egípcio, dois da Copa do Egito, seis da Supercopa do Egito, cinco
da CAF Champions League e quatro da Supercopa da África. Isso no nível de
clubes, porque vestindo o manto de sua nação foram mais duas conquistas de Copa Africana das Nações (o meia esteve ausente em 2010). No Brasil,
é certa a lembrança de seu talento em pelo menos duas ocasiões, atuando contra
a Canarinho na Copa das Confederações de 2009 e frente o Corinthians, em um
jogo duro, no Mundial de Clubes de 2012.
Ainda assim, quando se pensa nos craques africanos dos anos 2000 vêm à mente nomes como os
de Samuel Eto’o, Didier Drogba, Michael Essien ou Jay-Jay Okocha; quase nunca
o de Aboutrika; ídolo absoluto do Al Ahly e da Seleção Egípcia e figura praticamente anônima no restante do planeta. Para muitos de seus compatriotas, foi
simplesmente o maior jogador dos Faraós, em todos os tempos. Ainda assim, o
craque nunca se mudou para o Velho Continente, onde, certamente, encontraria
mais reconhecimento. Em 2009, em entrevista concedida à BBC, chegou a falar que muitas propostas chegaram a si, mas que
nenhuma delas era boa para o clube e, sendo assim, não poderia sair, postura
que diz muito a respeito do personagem.

“Eu recebi muitas ofertas de
muitos clubes [europeus], mas a maioria delas não era boa o suficiente para meu
clube considerar [minha venda]. Ainda assim, eu tenho o desejo de jogar por um
grande clube da Europa. Desde que a oferta seja suficientemente boa para o Al
Ahly, acredito que eles não me impediriam de deixar o clube e alcançar os meus
desejos no futebol”
, registrou.

A realidade, contudo, foi diferente.
A dita proposta não chegou e Aboutrika nunca se mudou para a Europa. Não
forçou a barra e nem esperneou, certamente outro motivo pelo qual é tão
reverenciado. É forçoso reconhecer a crueldade que
representa o fato de nunca ter disputado uma Copa do Mundo. Diferentemente, de
outros jogadores, gênios como Ryan Giggs, que não possuíam uma seleção forte o
suficiente para ser bem-sucedida em eliminatórias, o egípcio tinha boas
chances. Mas não conseguiu.
Aboutrika Egypt Confederations Cup 2009
Foto: AP
Selecionável desde 2001, viu sua
esquadra ficar com a terceira posição do Grupo C das Eliminatórias para a Copa
do Mundo de 2002 – dois pontos atrás dos classificados senegaleses. Em 2006,
novamente o Egito terminou em terceiro lugar, desta vez do Grupo 3, atrás de
Camarões e da classificada Costa do Marfim. Aboutrika chegou a marcar três gols
nessa disputa, vitimando Sudão, os marfinenses e Benin. 
Por fim, em 2010, a
crueldade foi ainda maior. Após passar em primeiro no Grupo 12, o país avançou
à segunda fase de grupos e, com campanha idêntica à da Argélia, teve que
enfrentar a referida equipe em um jogo de desempate. Um gol marcado por Antar Yahia
sentenciou o Egito a mais alguns anos de espera.
O craque egípcio até disputaria
uma parte das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2014, mas deixou de ser
convocado em 2013 (e o Egito voltou a decepcionar, não se classificando,
novamente). 
Aboutrika iniciou a carreira no Tersana, de sua cidade natal, Giza,
e a terminou no Baniyas Club, dos Emirados Árabes, na sua única aventura fora
do Egito. Contudo, sua carreira é marcada mesmo pelos 10 anos em que foi
bandeira do Al Ahly. Foram mais de 350 jogos e 150 gols. Ao lado de Mokthar
El-Tetsh é o jogador que mais vezes marcou, por apenas um dos clubes, no Derby
do Cairo, o flamejante Al Ahly e Zamalek, com 13 tentos.
Pela Seleção Egípcia, fez 105
jogos e marcou importantes 38 gols, que o tornam o terceiro maior artilheiro de
seu país em todos os tempos. Em 2008, marcou o mais importante deles, o
solitário tento que garantiu o título da Copa Africana de Nações, contra
Camarões.
Não obstante, a idolatria por
Aboutrika rompe as barreiras do futebol. Formado em filosofia, ficou famoso
pelos vários trabalhos humanitários que realizou e também por ter sido um dos
famosos que melhor simbolizou os desejos de seu povo na Revolução Egípcia de
2011, durante a famigerada Primavera Árabe. Tal fato inclusive lhe ocasionou problemas, posteriormente. No início de
2017, Mohamed foi colocado em uma lista de potenciais terroristas e impedido de
deixar seu país. Em 2015, já tinha tido seus bens congelados, sob as suspeitas
de financiar a Irmandade Muçulmana, sem que se tenha havido qualquer indício de
procedência de tais alegações.
Aboutrika celebration
Foto: Getty Images
Também embaixador da ONU,
Aboutrika usou de sua posição para dar voz a muitos que não a possuíam. Em
2008, aproveitou-se de um gol marcado para mostrar camisa em apoio ao povo da
Faixa de Gaza; em 2012, quando se verificaram 74 mortes em uma partida do Campeonato
Egípcio, foi um dos que clamou pela suspensão da competição, que
acabou por ocorrer.
No Mundial de Clubes daquele ano,
mais uma vez chamou atenção pela humanidade de sua fala: “estamos aqui para
entreter as pessoas. Jogar aqui é algo importante por causa do que está
acontecendo no Egito. Não há campeonato no Egito. O que aconteceu em Port Said
e os mártires… Queremos vencer, queremos entreter”, disse em coletiva após a
classificação às semifinais do certame.

Craque com a bola nos pés, Mohamed Aboutrika nem sempre recebe os créditos que merece. O que fez dentro e fora dos gramados é notável. O 10 que vestia a 22 e nunca disputou Copa do Mundo ou campeonato europeu foi um dos grandes de sua época. Brilhou por seu clube e seleção e usou sua posição para levar atenção a quem dela precisava. Mais que astro de futebol, Aboutrika se tornou exemplo.

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