Kenza Dali: “Isso é para você. Graças ao futebol”

EM UM DIA TUDO ESTÁ BEM. Há vidas melhores do que a sua, que, no entanto, está longe de ser das piores. Ainda que haja hostilidade nos subúrbios de Lyon, não é tudo ruim e a memória resgata alguma felicidade ao recordar a infância. No dia seguinte, seu irmão está morto; ele é mais uma vítima do violento mundo das gangues. Dois meses depois, sua mãe é diagnosticada com câncer. No meio de tudo isso está o futebol. Ele te salva e, quando a hora se torna oportuna, você conta ao mundo a sua história. Seu nome é Kenza Dali.

Kenza Dali West Ham

Foto: FA

Não importa qual é a origem, a vida de um imigrante nunca é fácil — mesmo que possa ser melhor do que a anterior, vivida no país de origem. Dali é mais uma filha da África a nascer na Europa. Como é Zinedine Zidane, para citar outro exemplo dos gramados. Revelada no Lyon, quase não jogou no clube que a formou, diante da feroz competição por um lugar no time. Depois de passar brevemente pelo Rodez e se destacar, foi no Paris Saint-Germain que construiu sua carreira.

Foram cinco temporadas na capital francesa, até um breve retorno aos Gones e uma passagem pelo Dijon. Nesse meio tempo, em 2014, para ser preciso, recebeu sua primeira convocação à seleção francesa e marcou seu primeiro gol, em um amistoso contra o Brasil. Ela também marcou presença na Copa do Mundo de 2015, só ficando afastada da competição de 2019 por conta de um dedo quebrado. Não há dúvidas de que Dali representa um caso de sucesso no futebol feminino. Jogadora do West Ham, um estreante na elite inglesa, desde a metade de 2019, agora agracia os torcedores dos Hammers com suas jogadas.

“A partir da contratação de Kenza, conseguimos uma meio-campista talentosa, que trará experiência e graça ao nosso elenco”, disse o treinador do clube londrino, Matt Beard, ao apresentar sua jogadora. O comandante foi a peça chave na mudança da francesa para a Inglaterra, não apenas por conta das expectativas de dentro das quatro linhas: “Ele me disse algo realmente importante. ‘Kenza, a cada mês, se você tiver de ir para casa por alguns dias e perder dois treinamentos, diga: ‘Matt, preciso disso’ e vá ver sua família’ […] Quando ele disse isso, eu pude dizer: ‘Ok, Matt, estou com você. Agora podemos assinar’”, contou ao Guardian.

Hoje, a mãe está curada do câncer. Mas a morte do irmão mudou sua visão a respeito de sua relação com a família. “Quando você perdeu um deles, passa a querer passar todo o seu tempo com eles. Especialmente com sua mãe, pai, […] porque a vida é curta”.

Dali nunca havia contado nada disso em outra entrevista. Porém sua mãe a convenceu. “‘Talvez haja uma garota que seja sua fã passando pelas mesmas coisas e que não conheça a sua história. Talvez você possa ajudá-la’. Ela disse agora que isso está superado e podemos falar sobre”.

Durante aqueles tempos, houve, entretanto, uma forma de escapismo: “Durante esse período, o futebol foi minha fuga. Eu tinha uma vida ruim naquele tempo, mas quando eu jogava futebol, me esquecia de tudo. Eu precisava dessa barreira”.

O esporte também permitiu à franco-argelina a melhora das condições de sua família. “Pude comprar um apartamento para minha família […] Agora, posso aproveitar coisas. Foi engraçado quando assinei com a Nike. Antes eu não tinha dinheiro para comprar calçados, agora os consigo de graça. Eu os dou para meu irmão, irmã e primos. Isso é para vocês. Graças ao futebol”.

A inspiração da mãe que não deixou a peteca cair na hora mais escura, protegendo Kenza de sua própria fúria e, posteriormente, ajudando-a a contar sua história é, certamente, o grande motor da trajetória da atleta. Porém, sem o futebol poderia ter sido tudo em vão. Além de escape, ele proporcionou a melhora de condições materiais em um período de dificuldades emocionais. Sozinho, seu talento não teria sido suficiente.

“É preciso viver com paixão. Isso é incrível. Você começa a partir do nada, jogando futebol em sua rua e agora está aqui na Inglaterra”, arrematou na conversa com a jornalista Suzanne Wrack.

Dentro das quatro linhas, Kenza Dali é uma das principais estrelas do West Ham, que também contratou a sul-coreana So-Hyun Cho, a escocesa Jane Ross e a holandesa Tessel Middag, todas selecionáveis por seus países. Os Hammers também já alcançaram o feito de ter o segundo maior público da história da Women’s Super League. Em 29 de setembro de 2019, o clube recebeu o Tottenham no London Stadium e foi celebrado por 24.790 pessoas.

Tudo indica que Dali encontrou um bom porto, após a tormenta. Ainda aos 28 anos. Graças ao futebol.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

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