Futebol se joga com os pés, ensinaram os indianos nas Olimpíadas de 1948
A TRADIÇÃO DO FUTEBOL, com a consolidação de regras, remonta à Inglaterra. Não há dúvidas, embora registros de práticas recreativas envolvendo objetos arredondados e o uso dos pés se verifiquem em diversas partes do globo e momentos históricos. Não por acaso, fixou-se o nome foot-ball. A maior parte do mundo, inclusive, adaptou ao seu linguajar variações da palavra original, como “futebol”, fútbol ou fußball. A correlação entre a bola e os pés não foi esquecida, porém. No português, está contida no arcaico “ludopédio” e, em castelhano, em balompié.
Em pouco tempo, no entanto, percebeu-se que seria impraticável jogar futebol sem alguma proteção para os pés. Primeiro, foram utilizadas botas. Exatamente aqueles calçados de proteção, pesados, um tanto desajeitados e que se encharcavam facilmente, de uso obrigatório pelos trabalhadores das fábricas. Foram eles, afinal, que se consolidaram como os principais praticantes do esporte, passado um momento inicial — do que decorreu a fundação de várias equipes a partir de companhias dos mais diversos ramos de atuação.
Conforme o esporte se tornava mais sério, popular e profissional, o calçado foi sendo aperfeiçoado para que, cada vez mais, impactasse menos a performance dos praticantes, diminuindo-lhe o peso e permitindo maior precisão dos movimentos, sem perder sua função primordial de proteção. A chuteira, outro anglicanismo vindo do verbo to shoot, foi se popularizando.
Foi quando os irmãos Adolf e Rudolf Dassler, fundadores de Adidas e Puma, criaram o protótipo do calçado que viria a ser facilmente identificado como chuteira que a situação se tornou irreversível. Eram os anos 1920. Os calçados eram cada vez melhores e mais baratos.
Em 1948, quando os Jogos Olímpicos voltaram a ser disputados após o interregno forçado de 12 anos de paralisação obrigada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, Londres sediou o evento. Já se sabia há bastante tempo que para se praticar futebol era preciso usar chuteiras.
O jogo-de-bola-com-os-pés já era o jogo-de-bola-com-os-pés-protegidos-por-um-calçado. Saber e concordar, no entanto, são coisas diferentes.
Até ali, a população que se tornaria a maior do planeta jamais torcera para o seu país em uma partida oficial. A Coroa Britânica governou o território indiano de 1858, portanto em período anterior à instituição das regras do futebol, a 1947 — quando dividiu-o entre Índia e Paquistão (com Bangladesh se desmembrando mais tarde).
Não por acaso, a literatura registra a existência de cidades como Bombaim, Madras e Calcutá, mas nenhuma delas consta nos mapas do século XXI com tais nomes.
“A rápida e pacífica retirada da Grã-Bretanha do maior bloco da humanidade já submetido e administrado por um conquistador estrangeiro […] foi conseguida à custa da sangrenta divisão da Índia num Paquistão muçulmano e numa Índia não religiosa mas esmagadoramente hindu, no curso da qual talvez várias centenas de milhares de pessoas foram massacradas por adversários religiosos e outros milhões de habitantes expulsos de suas terras ancestrais”, conta Eric Hobsbawn, em A era dos extremos.
Em meio ao caos, o futebol começou a ser melhor organizado na Índia. A Federação Indiana de Futebol já existia desde 1937, mas só foi reconhecida pela FIFA em 1948. A partir de então, o país estava apto a disputar competições oficiais, representando exclusivamente os seus próprios nome, história e honra.
Com todos os motivos, não se sabia o que esperar da equipe indiana que se classificou para a disputa do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de 1948, os primeiros televisionados pela BBC. Quando o sorteio indicou que os Tigres Azuis enfrentariam a França na primeira fase, todos sabiam que a vitória dos Bleus era favas contadas.
A bem da verdade, os feitos ludopédicos de todas as nações do Oriente, sejam da Ásia Central, do Cáucaso, do Extremo Oriente, da Indochina, do Oriente Próximo, da Sibéria ou do Hindustão, não eram notórios e, muito menos, aclamados.
O primeiro choque geral aconteceu quando os indianos subiram ao campo, na casa de seu antigo dominador. O jogo aconteceu em Lynn Road, lar do incógnito Ilford FC entre 1904 e 77. Era o dia 31 de julho e estavam presentes mais de 17 mil pessoas. Então, os jogadores hindus reivindicaram seu direito de jogar o jogo-de-bola-com-os-pés.
Oito dos 11 titulares estavam descalços.
“Vejam bem, nós jogamos futebol na Índia, enquanto vocês jogam bootball!”, afirmou Talimeren Ao, o capitão da equipe.
O trabalho da França seria ainda mais fácil contra aquelas pessoas com seus frágeis pés expostos, devem ter pensado os presentes. Não foi o que aconteceu.
Raoul Courbin abriu a contagem para os gauleses aos 30 minutos da etapa inicial e o tempo foi passando. E passando. E passando. Até que, no minuto 25 da parte final, Sarangapani Raman, jogador do time da polícia do Reino de Maiçor, empatou a contenda, instaurando o pânico francês e a estupefação geral.
Foi o primeiro gol internacional da seleção indiana e o jogo só foi decidido a favor dos europeus quando faltava um minuto para o apito final, por René Persillon, do Bordeaux: 2 a 1.
Pés descalços não eram piores do que pés calçados, foi uma das conclusões possíveis daquela partida, que terminou com uma, embora honrosa, eliminação para os indianos — que desperdiçaram duas penalidades máximas.
Pouco tempo depois, Talimeren Ao foi convidado a se juntar ao time do Arsenal com um contrato de um ano, mas recusou a oferta porque desejava concluir os estudos de medicina, feito alcançado em 1950. Ele se tornou cirurgião.
O futebol não vingou no país de mais de um bilhão de pessoas. Os feitos da Índia nesse esporte seguem limitados a competições menores, como os títulos dos Jogos Asiáticos de 1951 e 62. Ainda é aguardado o surgimento de uma geração de atletas capaz de competir internacionalmente e produzir o impacto que se espera de um país com tanta gente.
As regras oficiais, há alguns anos, exigem o uso de calçados — footwear — para se jogar futebol, mas não demandam o uso específico de chuteiras. Apesar de haver algumas, essa não é uma determinação polêmica, que cause debates.
A palavra bootball nem existe, mas será que o futebol pode, de fato, dizer-se um jogo de bola em que se usa os pés?