Descem as cortinas: Lieke Martens pendura as chuteiras

OS 32 ANOS parecem poucos para o fim de uma carreira, mesmo no esporte, em que essa idade começa a representar veterania. A vida, não raro, apresenta outras demandas fora do trabalho, para quem consegue viver além dele e, objetivamente, pode. Lieke Martens tomou sua decisão: o tempo de oferecer gols e júbilo às arquibancadas passou. Lowen, que aos seis meses ainda não faz ideia do que sua mãe representa, precisa de sua dedicação exclusiva.

Martens Netherlands

Foto: John Thys/AFP via Getty Images/Arte: O Futebólogo

A melhor jogadora de futebol do mundo de 2017 já dava sinais de que a carreira estava próxima do fim quando se aposentou da seleção holandesa, depois de 160 jogos e 62 gols. Deixa para trás um cenário bem diferente do que encontrou. “Quando criança, sonhava me tornar uma jogadora de futebol profissional, algo que praticamente nem existia na época”, escreveu na mensagem de despedida.

Martens se tornou um dos ícones da era que, a duras penas, tem mudado radicalmente o panorama do futebol feminino.

A atenção aumentou

Quando a carreira de Lieke começou, representando as cores do Heerenveen em 2009, aos 16 anos, Marta dominava o cenário das melhores. Já recebera quatro dos seus seis prêmios de melhor jogadora do mundo. Naquele mesmo ano, a Folha noticiou que a atleta recebia 150 mil reais mensais, durante uma passagem pelo Santos. Lionel Messi faturou o mesmo prêmio, entre os homens. Em setembro daquele mesmo 2009, tivera uma renovação de contrato, passando a receber 11 milhões de euros anuais.

Essa disparidade não mudou na maioria dos lugares, mas entrou na pauta. Talvez a estadunidense Megan Rapinoe seja a principal expoente da luta pela igualdade: “Houve uma falta de investimento por um longo período de tempo, então qualquer comparação direta com os esportes masculinos ou as ligas masculinas é totalmente injusta“. O elefante na sala virou assunto e, ao menos no contexto das seleções dos EUA, a igualdade veio.

Martens viu também a Liga dos Campeões feminina mudar de identidade, justamente em 2009. Até então, nem mesmo o nome da competição era o mesmo da disputa masculina e não havia prêmio financeiro sequer para a equipe campeã. A atleta holandesa foi parte integral do processo. Venceu a competição em 2020-21 pelo Barcelona; foi vice duas vezes.

Projeção no Barça

A jogadora fez parte de uma das equipes mais impressionantes da história da modalidade, ladeada por grandes nomes como os de Jenni Hermoso, Alexia Putellas, Aitana Bonmati e Caroline Hansen. “O futebol sempre terá um lugar especial no meu coração, continuarei acompanhando, com orgulho, o jogo das mulheres evoluir e inspirar novas gerações. Assim como me inspirou”.

De fato, o clube que marca indelevelmente sua trajetória é o Barça, que defendeu entre 2017 e 2022. Foram três títulos nacionais e mais quatro Copas da Rainha — além da Champions. 

Martens Barcelona

Foto: Reprodução/FC Barcelona/ Arte: O Futebólogo

A ponteira tinha 24 anos quando desembarcou na Catalunha e chegava dos suecos do Rosengärd, já tendo representado VVV-Venlo, Standard Liège, Duisburg e Göteborg. “Espero ganhar troféus com o Barça e, claro, ter um bom desempenho na Liga dos Campeões”, disse então. 

Mal sabia a quantidade de alegrias que viriam, começando já naquele verão europeu, com o título da Euro 2017, pela Holanda, gol na final e o prêmio de melhor jogadora da competição. O reconhecimento proporcionado pelo futebol foi tanto que, em 2018, Lieke Martens foi eleita a 22ª mulher mais influente do esporte, pela Forbes.

Faltaram só o Mundial e a medalha dourada

Ela ainda teve tempo para vestir outra camisa pesada, a do PSG. “Após cinco anos maravilhosos […] decidi me separar do clube e começar uma nova aventura. Cheguei ao Barcelona em um momento em que o clube iniciava um projeto ambicioso para se tornar líder no futebol feminino mundial. Trabalhamos duro e acredito que alcançamos os objetivos traçados há cinco anos”.

Em Paris, foi determinante na campanha de título da Copa da França, em 2023-24, marcando o tento do título, quando a equipe se via reduzida a 10 mulheres, após a expulsão de Thiniba Samoura. Três meses depois, veio o anúncio da gravidez, e o necessário afastamento dos gramados.

Campeã também com as camisas do Standard Liège e do Rosengärd, Martens ficou pendente apenas do título da Copa do Mundo.

 

Em 2019, a Laranja eliminou Japão, Itália e Suécia, antes de perder para os Estados Unidos na final. A ponta marcou dois gols no torneio sediado na França, competição que atraiu uma audiência de 1.12 bilhões de pessoas. Foi uma enorme evolução, comparada aos 764 milhões de 2015. Martens esteve no coração de tudo isto. E ela também viveu o sonho olímpico.

Nos jogos de 2020, ajudou a Holanda a chegar às quartas de finais, antes da eliminação, outra vez, contra os EUA. Lieke marcou quatro gols. 

Sua última grande competição internacional foi a Copa do Mundo de 2023, na Austrália e na Nova Zelândia. A Holanda caminhou até as quartas, quando caiu diante de uma Espanha cheia de ex-companheiras de Barcelona e que seria campeã. 

Espelho para as jovens holandesas

“Depois de 2017, tudo mudou. Somos a primeira geração [holandesa] a receber tanta atenção e a descobrir como é ser uma pessoa pública. Essas coisas são totalmente diferentes da geração anterior”, comentou na série de reportagens My Game In My Words series, publicada pelo NY Times.

Entre os dribles de 2009 e de 2025, o jogo mudou, dentro e fora dos campos. Os dilemas e problemas começaram a ser debatidos. A Holanda passou tanto a ser levada a sério quanto a encarar, ela própria, a modalidade com mais cuidado.

Martens PSG

Foto: Franco Arland/Getty Images/ Arte: O Futebólogo

“Sou uma jogadora que espera a zagueira fazer alguma coisa. Se uma zagueira dá o bote, eu reajo. Se estou driblando em velocidade, então sou eu quem decide. É impossível para uma zagueira te pegar se você estiver se movendo no momento certo”.

Momento certo. É preciso confiar que ele chegou, mesmo que a sensação de que o tempo passou rápido seja flagrante. O futebol se despede de um ícone que se inspirava em Ronaldinho na infância — as referências femininas eram poucas e as narrativas de seus feitos, incógnitas ao grande público.

Martens representou as duas camisas europeias pelas quais o brasileiro mais se destacou, e se fez prova viva de que o sonho do futebol para as mulheres é cada vez mais possível. Com seus problemas e ao custo de muita luta. Quando crescer um pouco mais, Lowen saberá de tudo isso. Os registros, agora, são mais que públicos, notórios.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

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