Caso Saltillo: a autossabotagem que marcou a geração oitentista de Portugal

No dia 28 de julho de 1966, em
Wembley, Mário Coluna e Lev Yashin trocaram flâmulas. Estandartes de seus
países, lutavam pelo terceiro lugar do Mundial. No final da partida, José
Torres confirmou o triunfo português: 2 a 1. Era a primeira aparição
lusitana no certame e ela deixava um gostinho de quero mais. Que foi
amargando com o passar dos anos. Aquela geração envelheceu e a sucessora não
esteve à altura e não suportou carregar o peso das expectativas e
comparações. Portugal passou duas décadas longe da Copa do Mundo. Quando voltou…

Portugal Saltillo 1986
Foto: All Action/Arte: O Futebólogo

Anos intensos, mas não para o futebol

A seleção portuguesa não construiu nada em cima do
bom desempenho de 1966
e dos triunfos continentais de
Benfica
e
Sporting. Nos anos 1970, viu de longe a ascensão de outras escolas de futebol de
países europeus menores em dimensões territoriais ou no nível futebolístico
mostrado até então. Notadamente, a Holanda se deu a conhecer com
Feyenoord,
Ajax
e a própria
seleção. Também a Polônia se revelou, enquanto
clubes belgas
disputaram suas primeiras finais continentais.
Futebol não foi o principal assunto da década. O Salazarismo se despedia pela
porta dos fundos. Sob Marcelo Caetano, já não se vivia um conservadorismo tão
atroz. A história começava a ser reescrita, ainda que lentamente. Atos
simbólicos com a
Crise dos Estudantes de 1969
provavam que a libertação não tardaria. Como diria António Simões, um dos
ícones da seleção de 1966, o regime começava a ficar podre. Era 25 de abril de
1974, quando a Revolução dos Cravos eclodiu, ao som de
Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso.
A independência dos povos colonizados em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné
Bissau, São Tomé e Príncipe seria consequência quase imediata. Apenas o
Timor-Leste seguiria subjugado, apesar da libertação não reconhecida por
Portugal e diante de uma invasão pela Indonésia.
Revolução dos Cravos
Foto: Arquivo da Universidade de Coimbra/Arte: O Futebólogo

Algumas consequências disso para o futebol eram óbvias: jogadores como Eusébio
e Coluna nasceram em solo moçambicano, que seguiria fortemente influenciado,
mas já não era território ultramarino português. Ainda que o fluxo migratório
para a antiga metrópole tenha se transformado em constante, com jogadores
luso-africanos continuamente alinhando na seleção portuguesa, a realidade já
era outra. Jogar por Portugal passava a ser questão de escolha.
Não eram os anos mais fáceis. Em 1975, o país atingiu uma
taxa negativa de crescimento de seu Produto Interno Bruto (PIB): -3,30%. A situação começaria a melhorar
no final da década. Em 1979 e 80, os índices superaram os 5%. Era a reação aos
anos de atraso.
Paralelamente, verificada ou não relação de causa e efeito, em 1980-81, pela
primeira vez desde 1972, os portugueses voltaram a ser representados em uma
semifinal continental. Era o Benfica que carregava o orgulho nacional. A
derrota na Recopa Europeia, perante os alemães orientais do Carl Zeiss Jena,
não freou o desenvolvimento encarnado. As Águias não demorariam a alçar voos
ainda mais altos.

Benfica e Porto crescem, a seleção também

A base do time derrotado pelos germânicos ainda era a mesma em 1983, com
Manuel Bento, Humberto Coelho, Carlos Manuel, Fernando Chalana, Shéu e Nené
entre os destaques. Algumas coisas haviam mudado, entretanto.
Seguindo uma toada de progresso, o Benfica viajara à Suécia para contratar o
treinador Sven-Göran Eriksson. O mundo do futebol prestava atenção ao
escandinavo, cujo sucesso transbordava a península, após o título da Copa da
Uefa de 1981-82,
com o Göteborg. Como diria o
Público, anos mais tarde, o sueco chegava para “impor uma nova ordem no futebol
português”.
Já na chegada do comandante, os Encarnados foram às finais da Copa da Uefa.
Pela frente, tiveram o Anderlecht, treinado pelo imortal Paul van Himst, e que
tinha nas suas fileiras nomes como Ludo Coeck, Frank Vercauteren e Kenneth
Brylle. Um mísero gol separou os lisboetas da glória, trazendo à tona a
Maldição de Béla Guttmann.
Logo, seria a vez de o Porto ouvir a vitória sussurrar em seu ouvido. Em
1983-84, os Dragões foram à final da Recopa Europeia. Na decisão, enfrentaram
a
Juventus, de Giovanni Trapattoni. Os detalhes seriam o fiel da balança (ou o apito). O time treinado por José
Maria Pedroto, que alinhava António Frasco, António Sousa, Jaime Pacheco, João
Pinto e Fernando Gomes, perderia por 2 a 1. Porém, o gol do título bianconero,
marcado por Zbigniew Boniek, teria sucedido uma falta não marcada em favor do
quadro portista.
Portugueses estavam se aproximando das conquistas cada vez mais. Era hora de
isso se refletir na seleção, classificada para a Euro 1984. Aproximadamente um
mês após a final da Recopa, Portugal fazia sua estreia em competições
continentais, diante da Alemanha Ocidental, um batismo de fogo. O time já
estava calejado, entretanto; para garantir a viagem à França, eliminara URSS,
Polônia e Finlândia, inclusive superando rusgas internas.
No seio da equipe reinava uma discórdia que, em partes, era explicada pela
formação de dois blocos, o benfiquista e o portista. As relações entre os
jogadores provenientes dos rivais beiravam a obrigação. Isso interferiria até
na numeração escolhida para o certame, como o esdrúxulo 4 às costas do craque
Chalana não deixa mentir. A seleção tinha quatro treinadores. Toni
representava o Benfica; António Morais, o Porto; enquanto José Augusto
desenhava o papel de porta-voz da Federação Portuguesa. À frente deles,
estaria Fernando Cabrita.
No campo, contudo, as vaidades foram superadas. Empates contra os germânicos e
a Espanha foram sucedidos de vitória ante a Romênia. Portugal estava nas
semifinais. Do outro lado, vinha a anfitriã e ela tinha aquela que é,
possivelmente,
a melhor versão já conhecida do estelar Michel Platini. Os lusitanos obrigaram os Bleus a suar sangue, deixar tudo em campo.
Se Jean-François Domergue abriu a contagem para os donos da casa, Rui Jordão
igualou o marcador para Portugal, acionado por Chalana. A prorrogação se
precipitou e mais uma vez a dupla ibérica clicou: era o 2 a 1. Na fase final,
Domergue empataria a batalha. Quando os pênaltis já pareciam realidade,
Platini cravou a espada no peito dos portugueses, que teriam que tentar
novamente.

Conexão-México

O desafio seguinte da Seleção das Quinas era a classificação para o Mundial.
Entre 1984 e 86, as participações dos clubes lusitanos nas competições
europeias foram decepcionantes, o que não quer dizer que não houve notas
positivas no ar. Portugal foi alocado no Grupo 2 das Eliminatórias, ao lado de
Alemanha Ocidental, Suécia, Tchecoslováquia e da figurante Malta. A disputa
era das mais equilibradas, com um país efetivamente vitorioso e três forças
tradicionais lutando por duas vagas.
O favoritismo alemão era evidente e seria confirmado. A
Mannschaft liderou, com o melhor ataque e a defesa menos vazada. Perdeu
apenas um jogo, justamente para Portugal, em Stuttgart. Gol de Carlos Manuel.
Esse resultado seria senhor do destino do quadro que agora era treinado por
José Torres, o centroavante do time de 1966. Quando a equipe viajou para a
disputa da partida,
o chefe fez um apelo e foi atendido: “Deixem-me sonhar”. Os alemães já estavam classificados, mas tchecos e
suecos também queriam se imaginar no Mundial.
A bem da verdade, a campanha lusitana teve pontos baixos. Das três derrotas
acumuladas, duas foram em casa, contra germânicos e escandinavos — a outra
aconteceria em solo tcheco. Contudo, não empatar faria toda a diferença para a
equipe que teve em Fernando Gomes o artilheiro do grupo, com cinco gols, dois
a mais do que o sueco Robert Prytz e o alemão Karl-Heinz Rummenigge.
Era outubro de 1985 e, em alguns meses, viria a convocação definitiva e a
viagem ao México. Os jogadores ficariam instalados em Saltillo, assim como os
ingleses. Estes viriam a ser adversários duros no Grupo F, além da Polônia e
do Marrocos. Durante a temporada 1985-86, ao menos um problema importante
teria de ser gerido: Rui Jordão vinha em má fase.
Era 19 de abril de 1986, quando Torres decidiu que Jordão não iria para a
América do Norte. Além dele, e de forma ainda mais polêmica, Manuel Fernandes
(de 30 gols na temporada), ficaria fora. Começava a autodestruição lusitana. A
justificativa, supostamente, teria sido uma entrevista concedida pelo atacante
à RTP.

Rui Jordão Portugal
Foto: Lusa/Arte: O Futebólogo
“Na primeira rodada, marquei cinco gols e fui convidado do programa de desporto
da RTP. E na última pergunta que me fizeram, sobre a seleção, eu disse que
gostaria de jogar por Portugal, mas que havia novos valores a despontar. Tinha
35 anos”, revelou o envolvido, ao
Expresso. “Acho que o Torres não pensou pela cabeça dele. No meu caso e no caso do
Veloso, que deu positivo num controle [antidoping] e depois a contra-análise
deu negativa. Não encontro explicações”.
A ausência de Fernandes foi um choque quase tão grande quanto a de António
Veloso. O lateral direito benfiquista era constante entre os selecionáveis
desde 1981 e testara positivo para o uso de esteróides anabolizantes. Seria
uma razão justa de corte, não fosse a contraprova negativa. Acabou substituído
pelo incógnito Bandeirinha, formado no Porto e, na altura, na Académica. “Eu
sabia que ia dar negativo… Aquelas análises não eram minhas de certeza.
Quiseram que eu não fosse para ir outro”, pontuou ao
Observador.

Desacordos, confusões e melancolia

O clima entre os convocados já não era dos melhores, mas pioraria. Ir para
Saltillo era importante para que os jogadores se acostumassem ao calor e à
altitude mexicanos — desde que fosse fornecida a estrutura necessária. Por si
só, as condições do hotel não eram as melhores, com trânsito livre da
imprensa, mas a situação ficava ainda mais absurda ao se falar nas exigências
que uma equipe de futebol demanda.
Trabalhar com bola era um desafio, dado que o campo de treinamentos ficava
numa encosta, não sendo plano. “É verdade que tinha uma pequena inclinação,
claro que nos cansávamos mais”, relatou o defensor Álvaro Magalhães, também ao
Observador.
Para testar os 22 convocados, analisar suas reações às condições locais e
tomar as providências porventura necessárias, era importante fazer amistosos.
A base do time estava consolidada desde 1984, mas havia uma ou outra novidade,
como
Paulo Futre. O Chile chegou a ser sondado, mas a Federação Portuguesa não teria cumprido
o acordado com os sul-americanos. Os lusitanos acabaram testados por um time
de funcionários do hotel.

Paulo Futre Portugal
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo
Até mesmo envolvimento com a prostituição local e aparições na noite mexicana
alvoroçaram o ambiente da seleção, tumultuando as linhas telefônicas locais,
com famílias exigindo explicações.
Esses não seriam os únicos problemas. À margem da opinião daqueles que
efetivamente exibiriam as marcas — os jogadores —, foram feitos acordos
comerciais com a Adidas e a cervejaria Cristal. O dinheiro, que não era pouco,
cairia apenas nos cofres da FPF. Indignados, os atletas chegaram a fazer
greve, liderados pelo goleiro Manuel Bento, além de vestirem os uniformes pelo
avesso. Mais, reinvindicava-se o pagamento de diárias mais vultuosas. Os problemas eram muitos e de toda a
ordem. Só que o público não comprou o barulho dos atletas.
Diário de Notícias Greve Portugal Saltillo
Acervo do Diário de Notícias

“Culpados fomos todos, até eu, que era um miúdo, tinha 20 anos. Foi a primeira
vez que surgiu a publicidade numa grande competição e a Federação, também pela
sua inexperiência, não soube negociar com os jogadores […] Não sei se eram
20, ou se eram 30 por cento, o que sei é que a Federação, no início, não nos
queria dar nada”, contaria Futre,
à Agência Lusa.
Quando a bola rolou, veio a surpresa: Portugal venceu a Inglaterra, de Gary
Lineker. Com outro gol crucial de Carlos Manuel, o placar registrou um 1 a 0
que parecia impossível. “Ganhamos de raiva aos ingleses, mas fizemo-lo não por
Portugal, mas contra o [presidente da FPF] Silva Resende”, acrescentou Futre.
Faltava enfrentar Polônia e Marrocos.
Capitaneados por Boniek, os polacos tinham um time forte. Não fora obra do
caso o terceiro lugar no Mundial anterior. O time português tinha um desfalque
importante: Manuel Bento fraturara a fíbula e seria substituído por Vítor
Damas, do Sporting, e que beirava os 40 anos. Seria de Włodzimierz Smolarek o
único gol do encontro, tendo a defesa e o meio-campo lusitanos sido muito
permissivos. O meia recebeu livre na área.
Nem tudo estava perdido, restava a partida contra o Marrocos.
Como os melhores terceiros colocados avançavam de fase, ibéricos e magrebinos
poderiam se dar ao luxo de empatar, o que beneficiaria a ambos. José Torres
teria sido abordado por José Faria, brasileiro que comandava os africanos. As
histórias não são definitivas, mas o selecionador lusitano teria aceitado um
empate com gols, desde que sua esquadra anotasse primeiro. No início da
partida, Faria teria confirmado o acordo para um 1 a 1. Só que Portugal
começou o jogo com tudo. Parecia não haver nada combinado.
Ao final do encontro, Torres se revelaria indignado com a mera possibilidade
de acerto. “Nem sequer posso admitir a hipótese de o José Faria estar a falar
a sério. No futebol, para mim, tem de haver sempre seriedade”, recuperou o
Diário de Notícias. O fato é que o Marrocos demoliu Portugal: 3 a 1. Humilhados, treinador e
companhia voltaram para casa. “Foram os momentos mais horríveis da minha
carreira”, confirmaria o comandante. O pedido de demissão não tardaria.
As manchas daquilo tudo não se apagaram. Livros foram escritos sobre o
assunto. Não era para menos, jogadores foram excluídos de convocações após o
ocorrido, a comissão técnica foi toda modificada. Foi somente com a geração de
Luís Figo, Rui Costa e Vítor Baía que o país voltaria a ser representado em
Mundiais. Porém, 2002 teria mais cara de 1986 do que de 1966. A falta de zelo
de Saltillo levara ao excesso, na preparação em Macau. Os ecos da vergonha
mexicana não se silenciaram com o apito final em Guadalajara.

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