Boca Juniors vs. River Plate: o Superclásico
NA ARGENTINA, a maioria dos clássicos futebolísticos ganhou proporção por conta de rivalidades de bairro ou região, sobretudo no contexto da Grande Buenos Aires. Em Avellaneda, Racing Club e Independiente são exemplos. Situação similar é a experimentada por Huracán, de Parque Patrícios, e San Lorenzo, de Almagro. São bairros vizinhos. Boca Juniors e River Plate não fogem ao que parece regra. Embora não pareça o caso.

Foto: Marcos Brindicci/Reuters
Fundado em 1901, o River Plate não está em Belgrano, bairro nobre da região norte da capital argentina, enquanto o Boca Juniors, nascido quatro anos mais tarde, tem sede em La Boca, na região sudeste e próximo à zona portuária? Sim. Mas não foi sempre assim.
A origem de ambos está ligada a histórica La Boca. O River também deu seus primeiros passos por ali, celebrando uma disputa pela supremacia na região. Inclusive, o nome do clube foi escolhido em alusão à construção do porto. De tempos em tempos, parte dos trabalhadores interrompia suas funções e jogava futebol. Em frente ao box em que labutam, lia-se River Plate, Rio da Prata.
Não obstante, o cenário ganhou novas camadas a partir da década de 1920, quando o River se mudou para Belgrano, no distrito de Núñez.
A rivalidade territorial passou a ser também socioeconômica. O clube trocou um bairro vinculado à classe trabalhadora por outro da elite. Por isso, ficou conhecido como Millonarios; um time que traiu suas próprias origens. Na contramão, em razão do elevado número de imigrantes italianos em sua base de torcedores, pessoas pobres que viajaram o mundo em busca de melhores condições de vida, o Boca se vinculou ao termo Xeneize, que se traduz como “natural de Gênova”.
Como em vários outros clássicos, desenvolveu-se uma rivalidade pautada na disputa entre ricos e pobres, membros da elite aristrocática que concentra a riqueza nacional contra o povo que sustenta essa mesma nação com suas mãos. No entanto, faz tempo que a caracterização não permite generalizações. Ambas as agremiações possuem milhares de torcedores de todas as classes sociais.

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De acordo com pesquisa da Secretaria de Meios de Comunicação da Argentina, publicada em 2012, Boca e River somam aproximadamente 73% da preferência dos torcedores argentinos; 40,4% vinculando-se ao Azul y Oro e 32,6% à Banda do River. Não é preciso muito mais para se compreender a dimensão da rivalidade.
O primeiro dérbi aconteceu em 2 de agosto de 1908. No entanto, tratou-se de jogo amistoso. Os Xeneizes levaram a melhor: 2 a 1. O primeiro confronto oficial levaria mais cinco anos para ocorrer, registrando o memso placar, mas favorável aos Millonarios.
Desde então, até a data de atualização deste texto, aconteceram mais 264 jogos oficiais. A vantagem é do time que permaneceu em La Boca: 92 vitórias, contra 88 do quadro de Núñez. Houve, ainda, 84 empates. O Boca Juniors detém também a maior goleada do clássico, um gritante 6 a 0, em 1928.
Do outro lado da rivalidade, a maior goleada aplicada pelo River Plate ocorreu em 1941, em vitória por 5 a 1 — com um time que começava a construir a fama de La Maquina, já apresentando Adolfo Pedernera e Ángel Labruna. Este, aliás, é o maior artilheiro da história do confronto, com 16 gols. Também vem do River o jogador com mais aparições no Superclásico: Reinaldo Merlo jogou 42 dérbies.

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Nos títulos, há ainda mais equilíbrio. O Boca venceu o Campeonato Argentino 35 vezes, a Copa Libertadores seis e o Intercontinental três. Já o River Plate se sagrou campeão nacional em 38 oportunidades, continental em quatro e do mundo em uma.
Em notas menos nobres, o Superclásico é também notado por atos de violência nas ruas e estádios. Não poderia haver exemplo melhor do que o ocorrido em 2018, quando os rivais se encontraram na final da Copa Libertadores. O primeiro jogo, em La Bombonera, terminou 2 a 2. A decisão ficou para o Monumental de Núñez. No entanto, no caminho para o estádio, o ônibus do Boca Juniors foi atacado, a final acabou adiada e, dias depois, aconteceu em Madrid. Após empate no tempo regulamentar, deu River na prorrogação: 3 a 1.
Outro caso de grande repercussão aconteceu 50 anos antes, em 1968. Na ocasião, 71 jovens torcedores, com média de idade de 19 anos, foram prensados contra o Portão 12 do Monumental, na saída de um confronto que acabou 0 a 0. O acontecimento é tido como a maior tragédia ocorrida dentro de um estádio argentino.
Este cenário tórrido justifica o porquê de poucos jogadores terem ousado atuar por ambos os clubes. No seleto rol de “malucos” estão o goleiro Hugo Gatti, o zagueiro Oscar Ruggeri e os atacantes Cláudio Caniggia e Gabriel Batistuta.

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Apesar de poucos, alguns brasileiros conheceram a rivalidade bonaerense de perto. Pelo lado do Boca, Domingos da Guia, Orlando Peçanha, Dino Sani e os atacante Heleno de Freitas, Paulinho Valentim e Iarley representam os melhores. Passaram pelo clube também Jorginho Paulista, Baiano e Luiz Alberto. Pelo lado do River, há menos nomes notórios, casos de Delém, na década de 1960, e Júlio César, nos anos 1980.
O Superclásico argentino transcende o futebol. Ele é espelho das tensões sociais, da transformação urbana, dos afetos contraditórios de um país que vive o esporte como parte de sua identidade nacional. Boca Juniors e River Plate, mais do que clubes, representam formas distintas de estar no mundo — ainda que suas torcidas se confundam em todas as camadas sociais. Em Buenos Aires, quando a bola rola entre azul e ouro e a faixa vermelha transversal, nada mais importa.
* Texto editado e atualizado em 09 de junho de 2025