As Zâmbias de Kalusha Bwalya: uma história de tragédia e persistência

O dirigente desce ao gramado e, em
meio aos vitoriosos jogadores, ergue a taça. Em uns quantos cenários, a
sugestão seria a de que o engravatado se aproveita dos louros de quem,
efetivamente, correu e suou e colocou a bola nas redes adversárias, ou
evitou que a própria meta fosse maculada. Em Libreville, no entanto, é
diferente. Kalusha Bwalya não é apenas o presidente da Associação Zambiana
de Futebol, mas um elo entre os dias de maior glória e tristeza vividos
pelos Chipolopolo; uma constante entre vivências antagônicas.

Zambia 1993
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A forja de um sonho

Fazia 24 anos desde a conquista da Independência, face ao Reino Unido. “A
África para os africanos”, proclamou a Folha, em 24 de outubro de 1964.
A plena paz, porém, era ficção para Zâmbia, a despeito da ausência de
sangrentas guerras civis e étnicas, comuns no continente. Sob Kenneth Kaunda,
primeiro-ministro de 1964 a 91, tensões com vizinhos liderados por brancos,
nomeadamente os da Rodésia do Sul (mais tarde Zimbábue), tiveram consequências
graves, com casualidades e o encerramento das fronteiras entre os países.
Folha de São Paulo Independência de Zâmbia
Acervo: Folha
O governo unipartidário de Kaunda apoiava, ativamente, movimentos de guerrilha
anti-apartheid, notadamente Union for the Total Liberation of Angola (UNITA),
Zimbabwe African People’s Union (ZAPU), African National Congress of South
Africa (ANC) e South-West Africa People’s Organization (SWAPO). Mas, mesmo que
seus objetivos fossem similares, tais grupos paramilitares esbarravam em
rivalidades intertribais e sino-soviéticas. Unidade era um privilégio de que
não se dispunha.
Zâmbia receberia reconhecimento pelo papel desempenhado no citado Zimbábue,
além das independências de Angola e Moçambique. Mas precisava lidar com seus
próprios demônios. Detinha riquezas naturais, nacionalizadas, e um desejo
ardente de autossuficiência. Faltava know-how para extrair, tratar e
exportá-las e, pouco depois, viria a queda acentuada dos preços, sobretudo do
cobre — agravada por problemas logísticos decorrentes das guerras de
libertação dos territórios contíguos.
A economia foi arruinada. Em meados da década de 1980, o país tinha uma das
maiores dívidas externas per capita do mundo, sobretudo junto ao Fundo
Monetário Internacional (FMI). Foi nessa época que o futebol nacional se deu a
conhecer diante dos olhos do planeta, com a participação nos Jogos Olímpicos
de Seul, em 1988. Era a primeira grande notícia a respeito do ludopédio
zambiano.
Imaginava-se o desenlace de um cenário previsível para o Grupo B. A Itália,
que contava com gente estabelecida, como Stefano Tacconi, Mauro Tassotti, Ciro
Ferrara, Massimo Mauro, Alberico Evani e Andrea Carnevale, era favorita.
Guatemala, Iraque e ela, Zâmbia, matariam-se pela segunda vaga na fase
seguinte. Ledo engano.
“Quem não tem Cruyff, vai de Kalusha Bwalya. O futebol pode não ser o mesmo,
mas o uniforme é laranja e o efeito tão arrasador quanto o do ‘Carrossel
Holandês’”, disse o relato empolgado d’O Globo. Depois de estrear
empatando com os iraquianos, Zâmbia destronou a Itália: 4 a 0. Bwalya fez
três.

Zâmbia Itália 1988 O Globo
Acervo: O Globo
“O placar foi até modesto”, prosseguiu o periódico carioca. Nova goleada por
igual marcador, agora diante dos guatemaltecos, levaria os africanos à fase
seguinte, com a liderança. Nos mata-matas, a Alemanha Ocidental acabaria com a
festa, contundentemente, em outro 4 a 0. Dessa vez, o hat-trick foi de Jürgen
Klinsmann.

Do céu ao inferno

A participação olímpica moralizou os zambianos. Um ponto separaria os
Chipolopolo da fase final das eliminatórias para o Mundial de 1990. Nada de
baixar os braços. Ainda naquele ano, o país iria às semifinais da Copa Africana
de Nações, caindo diante da Nigéria, mas vencendo Senegal e ficando com o
terceiro lugar. Dois anos depois, o desempenho não seria tão bom, com queda
nas quartas de finais do certame continental. Apenas um escorregão.
A seleção zambiana simbolizava esperança. O país seguia instável. No início da
década, a insatisfação com o governo de Kaunda se acirrou. De greves de fome a
tentativa de golpe de estado, aconteceu de tudo um pouco. O líder foi cedendo.
Em 1991, uma nova constituição passou a vigorar e eleições foram convocadas, com
vitória de Frederick Chiluba. Ele permaneceria no poder até 2002. Esperava-se
o fortalecimento da democracia nacional, mas não foi bem o que aconteceu.

Kalusha Bwayla Zambia
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
Nos gramados, entretanto, Bwalya e seus comparsas seguiam representando um
sonho de liberdade. Na corrida pela classificação para a Copa do Mundo de
1994, as coisas iam muito bem, obrigado. Zâmbia liderou o Grupo H, superando
Burkina Faso, Madagascar, Namíbia e Tanzânia. A fase seguinte era decisiva.
Marrocos e Senegal eram os obstáculos que os Chipolopolo precisavam superar
para carimbar o passaporte rumo aos Estados Unidos. Ou deveriam ter sido.
No dia 2 de maio de 1993, começaria a saga decisiva pela classificação
zambiana ao que seria seu primeiro Mundial. Dakar era o destino. Ainda em 27
de abril, a delegação embarcou no avião militar Buffalo DHC-5, um
bimotor. O trajeto desde Lusaka incluía escala para abastecimento em
Brazzaville, no Congo, e em Libreville, no Gabão, além de parada em Abidjan,
na Costa do Marfim.

Acidente Aéreo Zâmbia 1993 Folha de São Paulo
Acervo: Folha
A aeronave estava inutilizada desde o fim de dezembro de 1992. Na saída da capital
gabonesa, o motor esquerdo falhou. Assim como o piloto, de acordo com o
relatório oficial
(que só foi concluído 10 anos mais tarde). Uma luz de advertência defeituosa,
somada ao cansaço, levaram-no a desligar o motor direito. O avião foi perdendo
altitude, até cair violentamente no mar, a dois quilômetros da costa do Gabão. As primeiras
buscas encontraram 24 dos 30 viajantes. Todos mortos. Mais tarde, os outros
seis também foram identificados. Mortos.

Vivos

A maior estrela do selecionado, Kalusha Bwalya, não estava no avião. Além
dele, Johnson Bwalya (sem parentesco) e Charly Musonda escaparam da tragédia. O trio atuava na
Europa — respectivamente em PSV Eindhoven, Cercle Brugge e Anderlecht — e se
juntaria mais tarde ao grupo.
Efford Chabala, Richard Muanza, Whiterson Changue, Samuel Chomba, Godfrey
Kangua, Robert Watiyakeni, Derby Makinka, Eston Mulenga, Kelvin Mustale, John
Soko, Numba Muila, Wisdom Chansa, Timothy Mútua, Moses Masuwa, Moses
Chikualakuala, Patrick Banda e Kena Simamba faleceram, além do treinador
Godfrey Chitalu, do presidente da associação, Michael Muape, e de outros
membros da delegação.
“Eu estava em casa, na Bélgica, quando recebi uma ligação”, contou Joel
Bwalya, irmão de Kalusha e também jogador, mas que não estava entre os convocados,
ao site oficial da CAF. “No dia seguinte, foi confirmado que não havia sobreviventes. Ainda tenho
um recorte de um jornal da Bélgica com a manchete ‘Zâmbia morre: menos
Kalusha, Musonda e Bwalya’”.
Naturalmente, as partidas de Zâmbia foram imediatamente suspensas. Era julho, menos de um ano
antes do Mundial, quando o selecionado voltou a campo, liderado por Kalusha e
Johnson. Foram deles os gols heróicos da vitória contra o Marrocos. Depois de
perder um time inteiro, os Chipolopolo recomeçavam. Se levar esperança ao país
e carregar o orgulho zambiano internacionalmente já não fosse razão suficiente
para prosseguir, agora o time jogava pela memória de seus mortos.
O Senegal, de Souleymane Sané (mais tarde reconhecido como pai de Leroy Sané),
não teve vez. A disputa se centrou entre Zâmbia e Marrocos. Na rodada final, o
time dos Bwalya tinha a vantagem. Podia empatar. Mas o jogo aconteceu na
fervilhante Casablanca. Um gol solitário de Abdeslam Laghrissi foi o
suficiente para levar os marroquinos adiante e incendiar as ruas do Magrebe.
Longe de fazer feio ainda sob os escombros de sua tragédia, o time
zambiano voltava para casa sem a classificação.
A qualidade daquela geração era muita, bem como o comprometimento
com sua causa. O modo como Zâmbia se reagrupou rapidamente não tinha
precedente histórico. A quase classificação ao Mundial não saciou a fome de
vitória do time. Entre março e abril de 1994, outra Copa Africana de Nações
foi disputada. Zâmbia liderou o Grupo C, subjugando Costa do Marfim e Serra
Leoa. Bateu o Senegal e acabou com o Mali: 4 a 0. Chegou à decisão.
Mais uma vez, o tempo esclareceria a grandeza dos feitos dos Chipolopolo.
Perderam para uma equipe que por pouco não foi quadrifinalista na Copa do
Mundo seguinte. A Nigéria, de Jay-Jay Okocha, Sunday Oliseh, Finidi George,
Daniel Amokachi, Emmanuel Amunike e Rashid Yekini, era forte demais. E, mesmo
assim, precisou correr atrás do prejuízo. Elijah Litana abriu a contagem para
Zâmbia; Amunike virou: 2 a 1. O quadro zambiano era vice-campeão continental.
Dois anos depois, a história seria parecida, com o time liderado por Kalusha
ficando em terceiro lugar.

A história como norte

Encaminhando-se para o final da carreira, já atuando no México, Bwalya não
tinha mais tempo para levar Zâmbia adiante. A geração de ouro não seria
laureada com título. Mas o astro não desistiria — era o rosto do futebol
zambiano. Entre 2003 e 06, treinaria a equipe. Logo após, assumiria a
presidência da associação.
Uma breve viagem no tempo.
Em 2012, era a Costa do Marfim que encarava o mundo com o grupo mais talentoso
jamais formado pelo país. Aos irmãos Kolo e Yaya Touré, juntavam-se Didier
Zokora, Cheick Tioté, Salomon Kalou, Gervinho e ele, Didier Drogba. Na fase de
grupos da Copa Africana de Nações daquele ano, Les Éléphants passearam imponentemente. Três
vitórias em três encontros, zero gols sofridos. A seguir, eliminaram Guiné
Equatorial e Mali, também sem conceder qualquer tento. Notoriamente, os
marfinenses tinham o melhor grupo de jogadores do continente e estar na final
era natural.
Do lado de lá, Christopher Katongo era o Bwalya da vez, longe de ter o mesmo
talento. O goleiro Kennedy Mweene era outro esteio, enquanto a esperança de
futuro recaía sobre Emmanuel Mayuka, vinculado ao Southampton à época. O
treinador era Hervé Renard, de 43 anos e sem grandes credenciais no currículo.
Um detalhe: o jogo era em Libreville.

Cristopher Katongo Zambia
Foto: Sky Sports/Arte: O Futebólogo
“O plano começou com o presidente Kalusha Bwalya, quando ele era vice”,
explicou o capitão Katongo, ao
Guardian. “Ele fez um plano para quatro anos, manteve os jogadores […] Por exemplo,
o Kalaba. Eu sei para onde ele vai correr. Conheço suas fraquezas; ele conhece
minhas fraquezas. Conheço seus pontos fortes. Acho bom que nos conheçamos.
Ficamos juntos por quatro ou cinco anos”.
No dia 12 de fevereiro, Zâmbia e Costa do Marfim lutaram pela coroa do
continente. Os zambianos não conheciam apenas suas próprias fraquezas, também
as dos marfinenses. O zero nunca saiu do placar. O jogo foi para os pênaltis e
Mweene mostrou frieza para salvar a cobrança de Kolo Touré, antes de assistir
de camarote à batida de Gervinho, para fora. 
Depois de 17 cobranças, o
zagueiro Stophira Sunzu tinha a história aos seus pés. Ele derrapou levemente.
Mas a bola entrou e a correria desabalada dos zambianos, os presentes no
estádio e os que acompanhavam no país, precipitou-se. Era alívio, alegria, deleite… Emoções impossíveis de se rotular.
“Eu queria estabelecer uma conexão entre as duas equipes, o passado e o
presente”, disse Bwalya à
FIFA. “Queria passar a tocha, para que os jogadores deste ano prestassem
homenagem à geração de 1993”. O time de Katongo e Renard vencera; em nome dos imortais de 1993, os
heróis de 2012 confirmaram que o Gabão não era apenas um lugar reservado à
tristeza.

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