Ajax vs. Feyenoord: De Klassieker holandês

ENQUANTO UMA SONHA, A OUTRA TRABALHA. A rivalidade entre Ajax e Feyenoord, a maior da Holanda, deriva de uma disputa citadina. De um lado fica Amsterdã, a capital nacional, a maior e mais populosa cidade do país. Do outro, Roterdã, que vem logo atrás em ambos os rankings. À primeira se atribui o prestígio de uma urbe global, turística, polifônica, cosmopolita — e também certa arrogância, dependendo do interlocutor. A segunda será sempre dada ao trabalho e orgulhosa disso. Uma cidade portuária, produtiva, forte. E talvez turrona, dirão alguns. Elas vão alcançar o sucesso, em vias diversas.

Feyenoord Ajax Derby

Foto: Reprodução

“Enquanto Amsterdã sonha, Roterdã trabalha” é uma frase famosa e que, no mais das vezes, será proferida por um roterdamês. As diferenças entre as cidades datam de muitos anos, o que se verifica em diversos segmentos socioculturais. Construções antigas da capital, erguidas há mais de cinco séculos, contrastam com os renovados préditos de uma cidade portuária que foi pesadamente bombardeada na Segunda Guerra Mundial e precisou ser reconstruída.

O futebol não escapou aos esterótipos e na transição dos anos 1960 para os 70, quando a Holanda enfim evoluiu e chegou aos grandes palcos, isso ficou ainda mais evidente.

Mapa Amsterdã Roterdã

Foto: Reprodução

Em 1969-70, os roterdameses do Feyenoord chegaram à final da Copa dos Campeões da Europa, venceram o Celtic que fora campeão três anos antes, e se tornaram os primeiros neerlandeses a levantar a taça mais cobiçada do continente.

Os gols foram marcados pelo zagueiro Rinus Israël e o centroavante sueco Ove Kindvall, mas muito mais importantes do que eles eram as figuras do ponta Coen Moulijn e do meio-campista Willy van Hanegem. Este ficou conhecido por sua alcunha — De Kromme, o que pode tanto ser traduzido como O Torto ou O Curvo. A explicação era evidente: não apenas suas pernas compunham um arco curioso, como ele adorava dar passes de trivela.

Em 1975, Van Hanegem teve a chance de se mudar para o Olympique de Marseille e receber vencimentos muito mais volumosos do que os percebidos até então. A possibilidade torturou-o ao ponto de se reunir com sua esposa, Truus, seu melhor amigo e companheiro de time, Wim Jensen, além de sua respectiva esposa. Decorreu uma votação que terminou 2 a 2. O voto de minerva foi dado pelo cachorro. Um latido significaria uma viagem para a França. Os minutos se seguiram em silêncio e eles todos permaneceram.

Um jogador como este dificilmente teria sido tão apreciado no time que tomou a taça do Feyenoord e a segurou por três temporadas consecutivas, o rival Ajax. Liderado tecnicamente por um jovem Johan Cruyff, o time apresentou um sistema totalmente distinto. Fluido, vertiginoso, artístico, total. Ataque e defesa se tornaram partes de uma mesma moeda e o time se tornou o maior vencedor do país. Ele não hesitou quando teve a chance de se mudar para um clube prestigioso como o Barcelona, sua arte precisava ampliar seus limites. Estrelas diferentes.

Ajax Feyenoord Willy van Hanegem Johan Cruyff

Foto: ANP

A diferença na estrutura de jogo comumente verificada entre os times também era justificada pelo pensamento de seus treinadores.

O Ajax que começou a levantar taças tinha Rinus Michels, que treinaria a seleção holandesa em 1974 e, efetivamente, foi tido como o grande facilitador do que ficou conhecido como Futebol Total. O Feyenoord era liderado pelo austríaco Ernst Happel, um homem de menos palavras, enigmático, que fumava à beira do campo e não buscava o sucesso a partir de uma ideia iminentemente autoral. Ele liderou a Holanda no Mundial de 1978.

Ambos foram finalistas vencidos. A fluidez de Michels tombou perante o pragmatismo alemão; o sistema de Happel pereceu contra o talento sul-americano dos argentinos.

O choque cultural era inevitável. Como conta David Winner em Brillant Oranje: “Os jogadores sempre aceitaram ordens de Rinus Michels e Johan Cruyff como treinadores. Mas até mesmo Ernst Happel […] foi visto com certo desdém pelas estrelas do Ajax quando assumiu a seleção antes da Copa de 1978. Ele resolveu o problema sem uma palavra em um treinamento, ao alinhar bolas na linha de dezoito jardas e, em seguida, bater cada uma delas precisamente contra o travessão”.

Ajax e Feyenoord representam movimentos díspares e, mesmo que em algum momento os títulos do PSV Eindhoven tenham elevado sua rivalidade tanto com Feyenoord quanto com Ajax, a disputa das cidades continuou sendo a mais forte do país. Os próprios torcedores ajacied concordam com a afirmação. Em entrevista ao site da FIFA, o responsável pela Amsterdam Arena ressaltou que vencer o PSV é uma questão de afirmação de superioridade, mas superar o Feyenoord é uma questão de honra.

Johan Cruyff Feyenoord

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Outro caso curioso da rivalidade foi uma transferência de Johan Cruyff, do Ajax para o Feyenoord. Em 1983, em fim de carreira, o craque viu uma proposta de permanência ser rejeitada pelo Ajax, que não aceitou pagar o salário pretendido. Como vingança, ele foi para o rival e, junto com a estrela ascendente de Ruud Gullit, venceu o Campeonato Holandês, quebrando um jejum de 10 anos.

“Vocês não estão ganhando tanto quanto eu? Por que estão reclamando de mim, quando estão enchendo os próprios bolsos de inheiro? Vocês nunca tiveram tantos torcedores no estádio”, disse o craque, como recuperado em sua autobriografia. “Me diverti bastante no Feyenoord. Foi realmente sensacional […] no começo, eu fui o vilão. Tive que convencer os torcedores da minha lealdade”.

O primeiro jogo entre os rivais que afamam De Klassieker aconteceu em 1921. Deu empate, 2 a 2. Na verdade, o jogo poderia ter terminado em vitória ajacied por 3 a 2, mas parte da torcida do Feyenoord pressionou a arbitragem contra o que foi entendido como um gol irregular. A irresignação funcionou.

Até a data de atualização deste texto, foram disputados 207 clássicos, com 95 vitórias dos homens de Amsterdã e 63 de seus rivais, além de 49 empates.

A maior goleada do confronto terminou 7 a 1 para o Ajax, nos distantes idos de 1934, antes da profissionalização do futebol holandês — a partir de 1954.  A despeito disso, o clássico é também marcado por resultados estranhos, como um 6 a 3 pró-Ajax, um 9 a 5 e outro 9 a 4, em que o Feyenoord triunfou.

 

Como na maioria dos clássicos, o holandês também tem sido, ao longo dos tempos, marcado por eventos de violência. O mais famoso ficou conhecido como a Batalha de Beverwijk, em 1997. No incidente, grupos organizados de torcedores das duas equipes se confrontaram brutalmente. Carlo Picornie, torcedor do Ajax, foi morto à pancadas.

Voltando aos campos, o Ajax tem sido mais bem-sucedido que o rival em títulos. Considerando as glórias mais sonantes, o clube da capital venceu a Eredivisie 36 vezes, a Copa da Holanda 20 e a Liga dos Campeões quatro. O rival Feyenoord conquistou o Campeonato Holandês 16 vezes, a KNVB Beker 14 e a Liga dos Campeões uma.

Ajax Feyenoord

Foto: Reprodução

Mais do que uma disputa entre clubes, De Klassieker é um espelho das cidades que o sustentam, suas histórias, contradições, modos de existir e vencer. Amsterdã e Roterdã não jogam apenas futebol: elas se confrontam simbolicamente. Mesmo que novos rivais tenham surgido e o tempo tenha levado parte do romantismo dos clássicos, Ajax e Feyenoord continuam a protagonizar um dos maiores duelos da Europa.

* Texto editado e atualizado em 25 de junho de 2025

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

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