A memorável virada de século do Celta de Vigo

A GALÍCIA, região espanhola na fronteira com Portugal, só comemorou um título espanhol em  sua história, conquistado pelo Deportivo La Coruña em 2000. O sucesso do Dépor , que já vinha bem há alguns anos, alavancou as performances de seu rival. Na virada para o século XXI, o Celta de Vigo figurou constantemente na parte de cima da tabela de La Liga, disputando ainda competições europeias.

Celta Vigo Intertoto

Foto: Reprodução

A chegada de talento internacional

É provável que o torcedor do Celta nunca tenha sido mais feliz do que entre os anos de 1997 e 2003. Tudo começou um ano antes, com uma contratação impactante: vindo do Strasbourg, o russo Alexander Mostovoi chegou a Vigo para elevar o patamar da esquadra. Era um camisa 10 diferenciado; sabia ditar o ritmo das partidas, cobrava faltas como maestria e protagonizava lançamentos de precisão cirúrgica. Era também o dono do vestiário, uma referência. Sua chegada mudou o patamar da equipe e facilitou a vinda de outros jogadores de qualidade.

No mesmo período, os Celestes passaram a contar também o meia israelense Haim Revivo e com um tetracampeão mundial com o Brasil: Mazinho. Logo, foram chegando o francês Claude Makélélé, o russo Valeri Karpin, o búlgaro Lyuboslav Penev, campeão espanhol com o Atlético de Madrid, e outra bandeira do clube: Gustavo López, argentino que desembarcou em Balaídos em 1999 e permaneceu até 2007, representando o time nas boas e nas más.

Mostovoi Celta

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Mazinho não foi o único brasileiro: o meia Vágner, de passagens por Santos, Vasco e São Paulo, o lateral esquerdo Sylvinho, o atacante Edú ou o naturalizado espanhol Catanha foram outros, em tempos internacionais para o Celta, reflexo também da icônica decisão do famigerado Caso Bosman.

Em 1995, por iniciativa do atleta belga Jean-Marc Bosman, um processo chegou ao Tribunal Europeu de Justiça. O atleta questionava: no contexto da União Europeia, se um trabalhador europeu comum pode circular e, consequentemente, trabalhar livremente por todo o continente, por que um futebolista não poderia? Ganhou o litígio e pôs fim às limitações ao registro de estrangeiros de dentro dos países membros da UE; o mundo da bola nunca mais foi o mesmo.

 

Mudanças de comando

O trabalho começou a ser feito pelas mãos do treinador espanhol Fernando Castro Santos. No entanto, os resultados da temporada 1996-97 não foram bons e o time quase caiu para a segunda divisão. Apenas cinco pontos separaram o 16º colocado Celta de Vigo da zona de rebaixamento.

Lembrado pelos êxitos no comando do grande rival celeste, Javier Irureta foi escolhido para liderar o Celta em 1997-98. Seria a primeira grande campanha do clube naquele fim de século. Os galegos chegaram à sexta colocação de La Liga, com a terceira melhor defesa do certame. No entanto, desacordos financeiros entre comandante e direção levaram à saída do primeiro. Irureta revelou ao periódico Mundo Deportivo que seu desejo era permanecer no Celta, mas “devido às circunstâncias que apareceram, não foi possível”. Pouco depois, fechou contrato com o Deportivo.

No entanto, a semente estava plantada: o Celta disputaria a Copa da Uefa pela primeira vez desde a campanha de 1971-72, em que caíra na fase inicial.

A primeira aventura pela Europa

De êxitos com o Zaragoza, Víctor Fernández chegou para garantir que o sucesso do clube de Vigo na temporada 1997-98 não seria sonho de uma só noite: já em 1998-99, os Célticos fizeram bonito em águas internacionais.

Apesar das facilidades encontradas na primeira fase, em que enfrentaram os romenos do Arges, vencendo por 8 a 0 no agregado, o que se viu a seguir provou que o time vivia algo especial. Na segunda fase, os galegos tiveram de se aplicar para eliminar o Aston Villa. Depois de uma derrota em casa, 1 a 0, surpreenderam os britânicos em pleno Villa Park. Juan Sánchez, Mostovoi e Penev carimbaram o passaporte do time para a fase seguinte, consumando um 3 a 1 — Stan Collymore descontou.

Na sequência, o Celta despachou o Liverpool de Gérard Houllier. Em Vigo, um jovem de nome Michael Owen até abriu o placar, mas Mostovoi, Karpin e Gudelj reverteram, em novo 3 a 1. Em Anfield, coube a Revivo levar o time adiante, marcando o gol solitário do encontro.

Celta Liverpool

Foto: Reprodução

Não obstante, o time parou nas quartas de finais. Não foi páreo para o Olympique de Marselha, que apresentava Robert Pirés, Fabrizio Ravanelli, Christophe Dugarry, William Gallas, Laurent Blanc e Florian Maurice. No agregado, os franceses construíram uma vantagem de 2 a 1.

Ainda assim, a surpresa já estava consumada. O  Celta não pararia por ali, como confirmou a quinta posição no Campeonato Espanhol de 1998-99 — com a terceira melhor defesa, o terceiro melhor ataque e sendo o segundo time que menos perdeu.

A continuação de um sonho real: o EuroCelta

A boa posição obtida em La Liga levou os galegos novamente à Copa da Uefa em 1999-00. A aventura foi ainda mais emocionante.

Com novo formato, absorvendo os clubes que disputavam a extinta Recopa Europeia, outra fase foi incluída. O Celta enfrentou os suíços do Laussane Sport e começou com o pé esquerdo, mas dando sinais de vida. Depois de sofrer três gols em Lausanne, diminuiu o marcador para 3 a 2 e levou a decisão para sua casa. Em seu território não teve para ninguém: comandado por um hat-trick do sul-africano Benny McCarthy, recém-chegado do Ajax, goleou. Mostovoi completou o placar inapelável — 4 a 0.

A seguir, ficaram pelo caminho os gregos do Aris, 4 a 2 no agregado. Na terceira fase, o clube encontrou o Benfica, treinado por Jupp Heynckes. Porém, o verbo disputar não passou perto daquela partida. Em Balaídos, os Celestes reduziram os lisboetas a pó. No primeiro tempo, Karpin, Makélélé, Mario Turdó e Juanfran fizeram o alemão Robert Enke buscar quatro bolas em sua baliza. No segundo, Turdó e Karpin voltaram a infligir dor aos Encarnados e Mostovoi sacramentou a maior goleada já sofrida pelo Benfica em competições europeias em sua história: 7 a 0.

 

Na volta, sem nada por ser disputado, houve empate por 1 a 1. Após, os espanhóis enfrentaram a Juventus, treinada por Carlo Ancelotti.

A Vecchia Signora não vinha completa, mas ainda alinhou Edgar Davids e Pippo Inzaghi. Na primeira partida, Alessandro Del Piero viu do banco de reservas Darko Kovacevic marcar o único gol da partida. Na segunda, foi titular e sofreu com a força do Celta como mandante. Com um minuto de jogo, Makélélé já igualou o encontro, abrindo o placar para os donos da casa. Alessandro Birindelli marcou contra e McCarthy foi às redes mais duas vezes. Paolo Montero e Antonio Conte foram expulsos; Zinédine Zinade só subiu à cancha quando o placar já indicava o 3 a 0.

Não obstante, a sina contra franceses se repetiu e, perante o Lens, novamente por 2 a 1 no agregado, os Célticos foram eliminados. Terminando o Campeonato Espanhol 1999-00 em sétimo, o time teve que disputar a Copa Intertoto, mas voltou à disputa da Copa da Uefa.

 

Título da Intertoto e nova campanha de destaque na Copa da Uefa

O Celta venceu o Pelister, da Macedônia, o Aston Villa e os russos do Zenit, conquistando a Intertoto; acedeu à Copa da Uefa.

Sofreu para eliminar os croatas do Rijeka. A decisão ficou para a prorrogação do encontro de volta, com solitário gol de Goran Dorovic. Na sequência, superou os sérvios do Estrela Vermelha. Derrotado no jogo de ida por 1 a 0, o Celta venceu a volta por 5 a 3. Após, a vítima foi o Shakhtar Donetsk, eliminado pela margem mínima de 1 a 0, cortesia de Catanha, que vivia grande fase e chegaria à seleção espanhola.

Nas oitavas, os galegos enfrentaram o Stuttgart. Os alemães eram treinados pelo estudioso Ralf Rangnick e o time de Vigo voltou a ter dificuldades. Fora de casa, o zero não saiu do placar. Na volta, a vitória por 2 a 1 só veio aos 85 minutos, por obra de Mostovoi. O clube voltou às quartas de finais e, mais uma vez, teve seu progresso interrompido. Contra o Barcelona de Rivaldo e Patrick Kluivert, a crueldade foi tanta que o clube só foi eliminado no critério do gol fora de casa, com decisões polêmicas da arbitragem.

Celta

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Parecia que o time só sofria contra rivais franceses, mas a temporada 2000-01 revelou que seu destino era estacionar sempre nas quartas de finais. Em Barcelona, os catalães venceram por 2 a 1, com gols de Kluivert. Na volta, coube a Rivaldo marcar duas vezes, de forma que os tentos anotados por Catanha, Gustavo López e Mostovoi de nada serviram. No entanto, novo sexto lugar no Campeonato Espanhol, mais uma vez classificou o Celta à Copa da Uefa.

O quase doméstico

Em 2000-01, o Celta de Vigo também ficou próximo do inédito título da Copa do Rei.

Depois de deixar os modestos Mensajero, Compostela e Leganés pelo caminho, bateu o forte Mallorca da época (futuro vencedor em 2002/03) e se vingou do Barcelona nas semifinais. Em Balaídos, venceu por 3 a 1, com tentos de Eduardo Berizzo, Mostovoi e Jesuli. No Camp Nou, o empate por 1 a 1 bastou para levar os galegos à final.

Na hora H, o time perdeu para o Zaragoza e desperdiçou a chance de gritar “é campeão!”. Mostovoi até abriu o placar no minuto quatro, mas Xavier Aguado, o brasileiro Jamelli e Yordi decretaram a vitória dos Maños.

Indícios de declínio

Em 2001-02, os Celestes não passaram da segunda fase da Copa da Uefa, eliminados pelos tchecos do Slovan Liberec.

Embora tenham terminado La Liga em quinto lugar, voltando à Copa da Uefa, viram o período de Víctor Fernández à frente do time se acabar e com isso parte do sucesso do time.

Liderado agora por Miguel Ángel Lotina, o Celta fez outro papel fraco na competição continental de 2002-03. Após eliminar a Odense com dificuldades e passar com autoridade pelo Viking norueguês, parou no Celtic — futuro vice-campeão.

Mostovoi já tinha 34 anos e não atuava com a mesma frequência. Karpin retornara à Real Sociedad e Makélélé se juntara aos Galácticos do Real Madrid. A espinha da memorável equipe dos anos anteriores já não estava presente. Ainda assim, um ano abaixo do esperado de Valencia e Barcelona, quinto e sexto colocados no Campeonato Espanhol, levou o Celta, quarto, à Liga dos Campeões de 2003-04.

Durante o voo mais alto, veio a queda mais forte

O Celta ainda era consistente, mas já não encantava. A despeito disso, fez papel honrado em sua única aparição na mais prestigiosa competição de clubes do planeta.

Depois de superar o Slavia Praga em fase preliminar, o time chegou ao Grupo H, dividido com Milan, Ajax e Club Brugge. O time avançou aos mata-matas com três empates, uma derrota e duas vitórias — contra os holandeses, que alinhavam Zlatan Ibrahimovic, Wesley Sneijder, Rafael van der Vaart e Nigel de Jong, e os italianos, em pleno San Siro. No entanto, parou em um dos melhores Arsenal da história, o campeão inglês invicto daquele ano. Em Balaídos, resistiu, perdendo por 3 a 2. Em Highbury, foi batido por 2 a 0.

Celta MILAN

Foto: Reprodução

Em La Liga, tudo corria mal. O fantasma do rebaixamento pairava sobre o clube, que trocou Lotina no meio da temporada por Radomir Antic, outro que cairia antes do fim do ano.

O interino Ramón Carnero terminou a campanha e o inevitável aconteceu: com a pior defesa do certame e a 19ª colocação, o Celta foi rebaixado à segunda divisão. Era o fim do sonho; a temporada iniciada com as sonhadas noites europeias terminou de forma traumática.

Debandada geral

Edú foi para o Betis, Manuel Almunia seguiu para o Arsenal, Peter Luccin para o Atlético de Madrid, Juanfran se juntou ao Besiktas, Sylvinho ao Barcelona e o pior: Mostovoi encerrou seu ciclo pelo clube. Embora já não fosse o mesmo, ainda era um ídolo, ícone do melhor Celta de sempre.

“Me dá pena não poder dizer que ganhamos isto ou aquilo quando a gente me pergunta, mas estou muito orgulhoso do que conseguimos nesses anos tão bons para todos”, disse o russo em entrevista concedida ao periódico La Voz de Galícia, em julho de 2016.

A despeito do final trágico da epopeia dos Célticos, a magia daqueles anos, o talento dos jogadores que passaram por Balaídos, os resultados fantásticos e as partidas memoráveis estão registrados. Todo torcedor do Celta de Vigo sabe apontar qual foi o melhor período da história de sua equipe.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

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