A década do Crystal Palace: sobrevivência, reinvenção e glória

O CRYSTAL PALACE CONSEGUIU: iniciando com o acesso à elite em 2012-13, quando venceu os playoffs da Championship, estabeleceu-se no primeiro escalão inglês. Não foi uma travessia tranquila, entretanto. O treinador responsável pela promoção, Ian Holloway, já estava desempregado antes da conclusão do primeiro terço da Premier League 2013-14. O time fez o que podia para se manter. Foi se mantendo. Até que, enfim, superou as expectativas, 11 anos mais tarde.

Crystal Palace campeão FA Cup

Foto: Justin Setterfield/The FA via Getty Images/Arte: O Futebólogo

A chegada à elite e o primeiro incêndio

O Palace somou apenas três pontos nos oito jogos iniciais na elite — os primeiros encontros desde a campanha de 2004-05. Naquele momento, precisou de um bombeiro e o mercado lhe apresentou um dos mais eficientes da época. O galês Tony Pulis finalizara um mandato de mais de meia década no Stoke City, consagrado pela fisicalidade de suas equipes e lembrado pelas cobranças de lateral na área adversária, pelas mãos de Rory Delap. Estava disponível e foi contratado.

O vínculo perdurou por 28 jogos. Foram suficientes para alcançar o objetivo de permanência. Pulis liderou o time em 12 vitórias, cinco empates e 11 derrotas. Sem grande surpresa, foi eleito o treinador da temporada. O Crystal Palace não apenas escapou do descenso; terminou a temporada em 11º lugar. No entanto, fez o estritamente necessário. Com 33 gols pró, teve o terceiro pior ataque. Com 48 contra, teve a sétima defesa menos vazada.

O Crystal Palace foi um estorvo para os outros. Na penúltima rodada, perdia por 3 a 0 para o Liverpool — em luta particular com o Manchester City pelo título —, empatou o encontro e serviu o troféu de bandeja aos Citizens.

Tony Pulis Crystal Palace

Foto: Mark Runnacles/Getty Images/Arte: O Futebólogo

No entanto, a relação entre Pulis e as Eagles acabou antes mesmo do princípio da campanha de 2014-15, quando o contrato foi rescindido em acordo mútuo. Nos bastidores, contou-se que a direção não esteve disposta a aceitar os pedidos do treinador no mercado de transferências.

Em pouco tempo, o interino Keith Millen assumiu duas vezes, antes e depois da rápida passagem de Neil Warnock, que venceu apenas três de 17 jogos. Ainda era 2015 quando Alan Pardew, que vinha de um longo período no Newcastle e efetivamente estava empregado, assumiu o time. Sua missão era similar à empreendida por Pulis. Mais uma vez, o time não agia, reagia.

O Palace não vencia há oito jogos (5E e 3D) quando ele chegou; andava na 18ª posição.

Recuperação e oscilação sob Alan Pardew

Nos primeiros 10 jogos sob Pardew, o time venceu seis vezes. O resultado final, mais uma vez, foi satisfatório. O residente de Selhurst Park acabou a Premier League na 10ª posição. Outro incêndio foi prontamente apagado.

Pardew ficou e o primeiro impacto foi excelente. O Crystal Palace terminou dezembro de 2015 na 5ª posição da tabela. No entanto, a derrocada vista já em janeiro de 2016 foi algo quase sem precedente histórico. As Eagles acumularam 13 jogos sem vencer, a maioria derrotas: 10. Os planos só não foram integralmente rasgados porque o time chegou à final da FA Cup, perdendo-a para o Manchester United.

Este time possuía mais recursos técnicos do que o de Pulis, com Yannick Bolasie e Wilfried Zaha pelas pontas, além de Yohan Cabaye como articulador. Mas fechou a Premier League na 15ª posição, ainda ineficiente no ataque, o terceiro menos prolífico da competição, com 39 gols marcados, e com uma defesa menos eficiente: a 10ª mais vazada, com 51 tentos sofridos.

Alan Pardew Crystal Palace

Foto: Coloursport/Arte: O Futebólogo

Em termos de estilo, o time seguia reativo. Sua média de posse foi de 46.8% por jogo, caindo para 44.5% fora de casa. O Palace dependeu muito das jogadas de bola parada. Apenas Tottenham e West Ham fizeram mais do que os seus 15 gols nesse tipo de jogada (38% do total). Não havia evolução e não haveria no futuro próximo.

O início da temporada 2016-17 foi ruim e Pardew perdeu o emprego antes da virada do ano, entre derrotas para o Manchester City (2 a 1) e Swansea (5 a 4). O escolhido da vez foi Sam Allardyce, o mesmo que em 2014 foi acusado por José Mourinho de praticar “futebol do século XIX”. Esse desfecho é conhecido. Depois de reforçar o time na janela do inverno europeu, trazendo jogadores como Jeffrey Schlupp, o time cresceu de produção, salvou-se do rebaixamento.

Querer mudar não foi suficiente: a breve era Frank de Boer

Allardyce não ficou para a temporada 2017-18. E o time, enfim, tentou mudar de rota. Contratou o holandês Frank de Boer. Era o primeiro estrangeiro a liderar a equipe, na história — à parte de um interinato de Attilio Lombardo. As perspectivas eram as mesmas de sempre, fazer uma travessia segura, mas tentando agora praticar um jogo mais vistoso.

“Queremos ser um clube sólido na Premier League, não um time que luta contra o rebaixamento. Esse é o objetivo. Se pudermos fazer mais, ótimo, mas primeiro precisamos ser um clube muito sólido na Premier League”, comentou De Boer em sua apresentação.

Ele não durou mais de cinco jogos, ou 77 dias (1V e 4D). A única vitória veio da Copa da Liga Inglesa.

Frank De Boer Crystal Palace

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

O time quis mudar, mas não deu tempo para a mudança se tornar eficaz. “No tempo do Barcelona de Guardiola, todos se envolviam no ataque, mas também na defesa; é isso que quero trazer para este clube”, dissera De Boer. Na prática, o que se viu foi as Águias marcando dois gols e concedendo oito.

Novamente, o Palace deu um passo atrás; não trocou o certo pelo desconhecido. Acertou com o veterano Roy Hodgson, que ficou no cargo até 2021.

Foram 162 jogos (54V, 37E e 71D). A pior colocação alcançada pela equipe no período foi o 14º lugar. A decisão de deixar o clube foi dele, que declarou precisar de descanso. No entanto, havia mais coisas acontecendo nos bastidores.

A aposta em Vieira e os novos sinais de ruptura

Em agosto de 2021, o Crystal Palace recebeu investimentos do norte-americano John Textor e, assim, pôde fazer uma aposta mais sólida em outro tipo de futuro. O treinador escolhido para liderar a equipe foi o francês Patrick Vieira, que vinha moralizado, após um bom trabalho no Nice. Com os cofres mais cheios, chegaram jogadores de maior qualidade técnica, como Michael Olise, Marc Guéhi e Joachim Andersen.

As ambições eram evidentes: “Estou muito feliz que nossa procura nos tenha levado a John, que investiu quantias significativas, ajudando a facilitar o rejuvenescimento do elenco, reforçar os cofres e permitir que o clube finalizasse a Academia das categorias de base”, comentou o presidente Steve Parish.

Patrick Vieira Cyrstal Palace

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Em 2020-21, a média de posse de bola do Palace fora de 39.9% por jogo. Em um ano de trabalho, Vieira elevou-a a 50.8%. O time foi o quinto que menos finalizou no ano, mas acumulou números consistentes, como o 10º ataque mais positivo (50) e a 7ª defesa menos vazada (46) da Premier League. Isso sem contar com um dos melhores jogadores do time durante grande parte da temporada: Eberechi Eze só atuou em 13 jogos.

A oscilação, no entanto, ficou evidente nas copas. Se chegou às semifinais da Copa da Inglaterra, caindo perante o Chelsea, 2 a 0, foi eliminado de cara pelo Watford, 1 a 0, na Copa da Liga.

A oscilação trouxe de volta a necessidade de segurança

A confiança em Vieira foi mantida até uma série de 12 jogos sem vitória lhe limar o emprego. O risco de queda na tabela e a estagnação do time levaram o time a demitir o francês, apesar das sementes plantadas. Era março de 2023.

“O impacto de Patrick desde que se juntou a nós no verão de 2021 tem sido significativo, e ele é tido em alta conta por mim e por todos os seus colegas.

Ele levou o time à semifinal da Copa da Inglaterra e a um respeitável 12º lugar na temporada passada, jogando um futebol empolgante, o que foi uma temporada desafiadora e crucial para o clube, dadas as mudanças que fizemos no elenco antes de sua chegada.

Patrick se dedicou ao máximo ao clube, e todos nós agradecemos a ele e à sua equipe por seus serviços”, assinalou Parish, ao demitir o treinador.

Roy Hodgson Crystal Palace

Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Hodgson voltou. Logo na estreia, contra o Leicester City, o time venceu. A temporada terminou com uma tranquila 11ª posição e o veterano ficou, apesar de não ser um inovador. Era um passo atrás, mas não parecia um encaixe tão distante das pretensões do clube. Não deu certo.

Em fevereiro de 2024, o time oscilava outra vez, na metade debaixo da tabela, próximo da zona de rebaixamento.

O austríaco Oliver Glasner, marcado por trabalhos de qualidade primeiro no LASK, depois nos alemães Wolfsburg e Eintracht Frankfurt, foi o escolhido para a sucessão. Era o movimento de retorno ao que se pretendera no apontamento de Vieira.

Chega Glasner, uma nova tentativa de mudar de rota

“Glasner se preocupa com o sistema. Os indivíduos precisam se encaixar, ao invés de o time se ajustar para encaixar as estrelas. Embora valorize a qualidade técnica, exige que seus jogadores sejam igualmente bons com e sem a bola.

O talento de Eberechi Eze, por exemplo, é mais evidente quando com a posse de bola, mas Glasner, embora ainda aprecie a habilidade do meio-campista, não o considera tão convincente, visto que seu estilo de jogo individualista é difícil de incorporar em uma estrutura mais voltada para o trabalho em equipe […]

O sistema de Glasner permite que os zagueiros laterais se destaquem e sejam ambiciosos com a bola, jogando com dois camisas 6 e dois camisas 10, o que naturalmente sobrecarrega o meio-campo de três, enquanto os alas velozes ajudam a chegar atrás dos adversários”, redigiram os jornalistas Matt Woosnam e Liam Tharme, do The Athletic, descrevendo o treinador.

Glasner Olise Palace

Foto: AFP/Getty Images/Arte: O Futebólogo

Dificilmente, haverá quem discorde de que a aposta deu certo.

Glasner levou o time a um fim de ano tranquilo, com cinco vitórias nos últimos seis jogos da Premier League. Permaneceu e colheu frutos. O treinador encerrou a temporada 2024-25 com 61 jogos no comando do time, 29 vitórias, 17 empates e apenas 15 derrotas. Liderou-o à conquista inédita da Copa da Inglaterra.

O maior voo: a Copa da Inglaterra de 2024-25

Justamente com seus três defensores e alas ofensivos, apostando no talento de Eze e Ismaila Sarr, além da segurança do jovem Adam Wharton, que teve a qualidade reconhecida com convocações para representar a Inglaterra, venceu o Manchester City, 1 a 0.

Outro herói foi o goleiro Dean Henderson, que defendeu uma penalidade máxima cobrada pelo egípcio Omar Marmoush.

 

Foi a maior conquista da história do clube, que ainda terminou a Premier League com 53 pontos, sua maior pontuação de todos os tempos. Foi o ápice de uma trajetória de pouco mais de 10 anos. Nada fácil.

“Os elogios não eram tão frequentes no final de novembro, quando o Palace estava tendo seu pior início de temporada na Premier League”, comentou o jornalista Adam Bate, da Sky Sports.

O Crystal Palace, que lidava com a perda de Olise, vendido ao Bayern, só venceu seu primeiro jogo no Campeonato Inglês na nona rodada.

Convicções

Como a evolução se deu? Como era suposto que se desse.

“O Palace espera antes de pressionar, recusando-se a ser provocado, preferindo usar os atacantes para forçar o adversário a se afastar, canalizando a bola para seus combativos alas. É de lá que eles conseguem encaixar esses desarmes e finalizar muitos dos ataques”, acrescentou Bate.

“Uma característica do jogo do Palace é que eles costumam trabalhar a bola verticalmente, preferindo olhar para frente quando estão com a posse de bola”.

O Crystal Palace teve, mais uma vez, razões concretas para interromper um trabalho profundamente autoral e que representa um dos estilos de vanguarda do futebol dos anos 2020. Escolheu, contudo, seguir por um caminho diferente. Mostrou coragem.

Glasner helds FA Cup Crystal Palace

Foto: Nicky Pots/PA/Arte: O Futebólogo

O time que foi símbolo da segurança por muito tempo, alcançando repetidamente o objetivo de permanência, formou bases sólidas para dar o salto e, no meio do impulso, recusou a força da gravidade, que pedia para recomeçar. Reforçou a confiança em seu treinador e na ideia implementada. Os resultados vieram. Não é acaso Henderson, Eze, Guéhi e Wharton receberem chances na seleção inglesa.

O título da Copa da Inglaterra não foi o clímax de um conto de fadas, pelo contrário. Nessa história, não cabe o ficcional, embora haja momentos mágicos, não se busca expressar valores, embora eles sejam intrínsecos a ela. O Crystal Palace provou que é possível construir um futuro ambicioso, mesmo quando as primeiras tentativas não entregam os resultados esperados. Pode demorar.

Wladimir Dias

Idealizador d'O Futebólogo. Advogado, pós-graduado em Jornalismo Esportivo e Escrita Criativa. Mestre em Ciências da Comunicação. Colaborou com Doentes por Futebol, Chelsea Brasil, Bundesliga Brasil, ESPN FC, These Football Times, revistas Corner e Placar. Fundou a Revista Relvado.

2 Resultados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *