A Copa turbulenta do Zaire em 1974
mundo voltou olhares atentos para a cidade de Quinxassa, a capital
do Zaire, futura República Democrática do Congo. O campeão dos pesos-pesados
do boxe e favorito à vitória, George Foreman, recebia Muhammad Ali. Era o ápice de um programação iniciada um mês antes, com o festival Zaire 74, acompanhado por mais de 80 mil pessoas. Os eventos, dizia-se, superavam a
esfera musical e esportiva; buscavam promover integração entre africanos e
afroamericanos e marcaram história. Essas, contudo, não foram as únicas vezes que o planeta foi
obrigado a prestar atenção ao Zaire naquele ano.
Foto: Icon Sport/Arte: O Futebólogo |
Ambiente de crescente prosperidade (?)
Bélgica, ocasião em que a Folha de São Paulo dedicou a capa ao acontecimento,
ressaltando que o antigo Congo Belga, como era conhecido, era o 14º país
africano a se emancipar do imperialismo europeu.
presidente do novo país, Joseph Kasa-Vubu asseverou que seu povo mostraria “o
que pode o negro na liberdade”, em relato da AFP. Havia, contudo, uma ideia de
que ali se erigiria uma “cooperação” entre Bélgica e Congo.
importante fonte de urânio do Hemisfério Sul e a prospecção de novas jazidas
rapidamente pôs‑se em marcha mais ao sul. A era nuclear acabara de surgir
para o mundo e, para o melhor tanto quanto para o pior, a África Central e a
África Austral dela participavam”. Essa era apenas uma das questões que
desafiavam a consolidação do país.
problemas essenciais dizia respeito às disputas tribais. O resultado foi a
ascensão ao poder do general Mobutu Sese Seko, em 1965, no que pode ser
considerado um bem-sucedido golpe de estado, apoiado militarmente pela
Bélgica, os Estados Unidos e a França, precavendo-se da possível influência da
União Soviética na região.
1997. Sob sua tutela, a nação se afirmaria como Zaire, em 1971.
Reprodução: Acervo Folha |
assassinato do primeiro-ministro alçado ao poder após a Independência, Patrice
Lumumba, que se aproximara dos soviéticos, quando, dias após a emencipação, a
província de Catanga proclamou sua própria independência, apoiada pela
Bélgica. Em setembro de 1960, Mobutu iniciou sua intervenção militar. Lumumba
passou algum tempo em prisão domiciliar, vigiado pela ONU, antes de ser
executado.
“Estamos sentados no quarto ao anoitecer, quando Kambia entra. A expressão
de seu rosto era tal, que eu não gostaria de ver uma semelhante pelo resto
da vida. Fala com voz contida: ‘Patrice Lumumba está morto’ […] ‘Foram os
belgas, foram os belgas, foram os belgas’”, narra o jornalista e historiador
polonês Ryszard Kapuściński, em A Guerra do Futebol. Na altura, dos
acontecimentos, ele se encontrava no país.
a crise econômica que assolaria o Zaire ainda naquela década todavia não se
precipitara.
retirado o país do caos, criado pelas diferentes tentativas de secessão do
Shaba, assim como, deve‑se admitir o seu papel como edificador do Estado
zairense”, prossegue o História geral da África, VIII, editado pelo historiador queniano Ali Al’amin
Mazrui.
os quantificáveis.
idolatria a Mobutu. Não foi o acaso que levou Foreman e Ali a Quinxassa,
tampouco foi ele o responsável pelo sucesso do festival Zaire 74.
“Meus irmãos de sangue, bem-vindos a Quinxassa, Zaire, na África. Depois de
quatro séculos de separação, tudo o que quero dizer é: quando vocês voltarem
ao país dos brancos, por favor digam aos nossos irmãos que aqui existe um
homem que luta pela dignidade de todos os negros, e esse homem é nosso
querido Mobutu”, afirmou Abeti Masikini, artista referente do Soukous, a
Rumba Africana — como recuperado pela revista
PAM — The Pan African Music Magazine.
74, lançado posteriormente, consta inclusive uma canção chamada Mobutu Praise
Song (Canção de Louvor a Mobutu, em tradução livre).
que o país viveria sob Mobutu, seu governante até a morte. Conforme observou o
historiador Eric Hobsbawn, em A Era dos Extremos, “a última parte do século XX
foi uma nova era de decomposição, incerteza e crise – e, com efeito, para
grandes áreas do mundo, como a África […] de catástrofe”.
em outra questão. O futebol estava em foco; o Zaire seria o primeiro país da
África Subsaariana a disputar a Copa do Mundo.
A África Subsaariana vai à Alemanha Ocidental
FIFA. Entre 1934 e 70, primeiro com Egito e depois Marrocos, nenhum país do
continente berço disputou a competição. Durante a quase totalidade deste
período, não era disponibilizada aos africanos sequer uma vaga direta no
certame. É evidente que essa situação causava mais do que meros incômodos,
especialmente a partir dos anos 1960, conforme mais e mais países foram, ao
menos em teoria, libertando-se das algemas do dominador europeu.
jogada na Inglaterra, a FIFA determinou que o torneio contaria com 10 países
europeus, quatro da América do Sul, um representante do restante da América e
do Caribe e outro vindo de África, Ásia e Oceania. Isso mesmo. Os países
desses três continentes teriam que se matar para conquistar uma vaga no
Mundial.
BBC, o ganês
Ohene Djan, membro do comitê-executivo da FIFA, demonstrou sua insatisfação.
“Países afro-asiáticos lutando contra duras e caras eliminatórias por uma vaga
é patético e insano”, disse o dirigente. A entidade ignorou os apelos e
manteve sua determinação inicial. Sem ser ouvida, a Confederação Africana de
Futebol não ficou de braços cruzados: sem ao menos uma vaga direta para o
continente, sem africanos.
Foto: BBC/Arte: O Futebólogo |
foi bem óbvio. “Era uma questão de prestígio. A maior parte do continente
estava lutando por sua independência. A CAF tinha que defender os interesses e
a dignidade da África”.
África do Sul, em pleno Apartheid, nos quadros da FIFA. Esse acabou sendo
outro ponto de ruptura entre CAF e FIFA. Em 1954, esta havia admitido a
associação dos sul-africanos. Expulsou-os em 1961 para trazê-los de volta dois
anos mais tarde, sob a ultrajante promessa de que o país se apresentaria em
1966 com um time composto, exclusivamente, por brancos e na competição
sequente, no México, com um elenco todo negro.
em 1964, mas não foi o suficiente. O apelo africano só obteve êxito em 1970,
quando africanos e asiáticos conquistaram uma vaga para cada. Quanto à África
do Sul, a suspensão durou por mais seis anos, até a expulsão definitiva. Só
voltou ao final do Apartheid.
de 1970, ocasião em que, na fase final,
o Marrocos superou Nigéria e Sudão e devolveu aos africanos o direito de
frequentar o maior palco do futebol internacional. Para a disputa seguinte, porém, os zairenses estavam preparados. No ano de
nascimento de Claude Makélélé, um dos futebolistas mais famosos concebidos em
Quinxassa, a nação mostrou o que seu futebol era capaz de produzir.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
maior número até então, mesmo que dois tenham abandonado-a. Foram disputadas
quatro fases, três eliminatórias e uma última em triangular. O Zaire goleou o
Togo na primeira (4 a 0), enfrentando Camarões, a seguir. Já não havia
facilidades. Cada um venceu uma das duas partidas por 1 a 0 e foi preciso um
confronto de desempate, para o antigo Congo Belga avançar.
melhor jogador africano de 1972, outra vez o Zaire precisou mostrar sua melhor
faceta. Perdeu o jogo de ida, 1 a 0, mas conseguiu a remontada demonstrando
força. No estádio 20 de Maio, em Quinxassa, aplicou um 4 a 1.
Campeões da África, emplacando Bwanga Tshimen como o segundo melhor jogador
africano. No ano seguinte, em 1973, o Vita Club conquistaria o primeiro título
continental de uma agremiação do Zaire e Tshimen venceria o citado prêmio
individual, com seu companheiro Kazadi Mwamba ficando com o vice. O país vivia
um momento especial no futebol.
e a equipe de Zâmbia. Venceu os quatro jogos, ainda que o Marrocos tenha
tentado anular um confronto, por alegadamente ter sido desmedidamente
violento, com seu ídolo Ahmed Faras se lesionando. Nada feito. Pela primeira
vez, a África Subsaariana estaria sob os principais holofotes futebolísticos
do planeta.
Tudo está bem quando se está vencendo
Quatro anos antes, o Marrocos mostrara que havia muito a melhorar, alcançando
apenas um empate. O Zaire, é verdade, vinha em alta. Exercia domínio no
futebol africano de clubes e também no âmbito de seleções, porque além de
ficar com a vaga no Mundial conquistou a Copa Africana de Nações de 1974,
meses antes da Copa.
iugoslavo Blagoje Vidinić. Parecia que tudo ia bem, mas como se sabe, não
raro, as aparências enganam.
“Eu estava muito orgulhoso, e ainda estou, por representar a África Negra e
Central em uma Copa do Mundo, mas tínhamos a crença equivocada de que
voltaríamos milionários. Retornamos sem um tostão no bolso. Olhe para mim
hoje, vivo como um vagabundo”, contou o lateral Mwepu Ilunga em 2014, à
BBC.
que as coisas não sairiam muito bem para os Leopardos (apelido atribuído por
Mobutu, que gostava do animal e o preferiu à alcunha anterior, Leões). Lá
estavam Brasil, Escócia e Iugoslávia, equipes incomparavelmente mais
tradicionais no cenário do futebol.
de o 2 a 0 não poder ser percebido como algo anormal. A própria Folha
sinalizou que a Escócia jogou mal e foi beneficiada com um gol em que deveria
ter sido marcado impedimento.
Reprodução: Acervo Folha |
no Mundial da Alemanha Ocidental, Mobutu recebia de volta um diamante de oito
quilates com que presenteara, em 1968, a esposa do senador norte-americano
Hubert H. Humphrey. O caso veio à tona a partir de uma série de reportagens do
Washington Post, que denunciava o recebimento extraoficial de presentes por
parte de membros do governo e do Congresso, durante seus mandatos.
Escócia e a segunda partida, ante a Iugoslávia. “Soubemos que não seríamos
pagos, então nos recusamos a jogar”, acrescentou Ilunga. Membros da federação
de futebol do país surrupiaram as verbas que seriam destinadas aos jogadores,
ainda que na época não se tenha dado a devida publicidade a tais fatos.
resultado veio dentro do campo. O Zaire foi penalizado com um vexatório 9 a 0.
seus compatriotas. Por isso, foi proibido de falar com a imprensa. Outras
coisas estranhas rondam a partida. O técnico trocou seu goleiro por decisão
técnica durante o jogo (quando estava 3 a 0), e o atacante Ndaye Mulamba,
artilheiro da CAN daquele ano, foi expulso, supostamente, por dar um chute na
bunda do árbitro colombiano Omar Delgado.
“Depois da partida, ele [Mobutu] mandou os guardas presidenciais nos
ameaçarem. Fecharam o hotel para todos os jornalistas e nos disseram que se
perdessemos para o Brasil por 4 a 0, nenhum de nós poderia retornar”,
continuou. “[Antes] Mobutu era como um pai para nós. Quando nos
classificamos, nos recebeu em sua casa e deu um carro e uma casa a cada um
de nós”.
0, levantou interrogações. A marca da partida acabou sendo um momento
imortalizado como algo grotesco, digno de risos, tido como “inocência”
daqueles “pobres africanos” tão “atrasados” — o dominador construíndo a narrativa.
a bola e nela desferiu um bico estratosférico. Detalhe: a falta era perigosa e
o placar já sinalizava triunfo brasileiro por 3 a 0 — com Rivellino, um
especialista, postado para a cobrança.
“Fiz aquilo deliberadamente […] eu não tinha razões para continuar me
machucando enquanto aqueles que se beneficiaram financeiramente nos
assistiam de suas coberturas. Conheço as regras muito bem, mas o árbitro foi
tolerante e me deu apenas um cartão amarelo”, contou o protagonista,
falecido em 2015, ao
Guardian.
reconstruir a imagem de seu país perante o planeta. Mobutu era o Zaire e vice-versa — e o país fora humilhado na Alemanha Ocidental.
jogadores reféns por quatro dias, sem, contudo, apostar na violência física. O
presidente decidiu que não mais investiria em futebol. Era uma boa hora para
lembrar como era bom o relacionamento com os Estados Unidos. Nada
melhor para jogar aquela história para debaixo do tapete do que uma luta entre
dois dos maiores boxeadores da história em Quinxassa.
o que não deixa de ser simbólico.
Que texto bem escrito! Quantas informações importantes!
Textaço. Com muitas informações muito além do futebol
Valeu, Renato!