Um lugar para voltar (ou bizitza txuri-urdin)
Nunca entendi os motivos de o meu pai ter tamanha simpatia por um jogador tão antigo. Vindo ao mundo em 1935, ele não tinha como ter grandes lembranças. O que posso garantir é que ele regurgitava, mais ou menos uma vez por dia, que ninguém havia marcado mais gols vestindo nossas cores do que ele, Ignacio María Alcorta Hermoso de Ordorica, o Cholín1. Minha mãe venceu, porém.
Amatxo2 fez o necessário para garantir o nome por ela escolhido, o que me explicaram mais tarde. Ela sabia que o responsável pelo cartório de registro civil, um tal sr. Olartekoetxea, andava pulando a cerca. Sabia porque as escapadas furtivas aconteciam com ninguém menos do que sua não tão apreciada irmã, com quem pouco falava, embora morassem a 300 metros uma da outra. Não foi necessário muito poder de persuasão. Mas por que era preciso convencê-lo? Porque as ordens de cima eram expressas. Estávamos na Espanha, na Espanha falávamos apenas castellano e nossas crianças precisam ter nomes espanhóis.
O estádio foi inaugurado em 1913 e a circunstância não poderia ter sido outra: clássico contra o Athletic. Donostia de um lado, Bilbo do outro4. O placar terminou 3 a 3 e o astro do jogo foi ninguém menos do que ele, Rafael Moreno Aranzadi, o Pitxitxi5. O avô tinha 13 anos e, dizem, estava lá.
Já a estreia do pai aconteceu muito tempo depois, passada a Segunda Guerra e já sob Franco. Ele sempre me disse que não se lembrava — sim, aparentemente fui o primeiro homem da família com boa memória — qual tinha sido o adversário, mas o time vivia as agruras da segunda divisão, o que aconteceu na maior parte daqueles sofridos anos 1940.
A primeira alegria de verdade que ele teve com a Real aconteceu em 1948-49. Nosso time voltou à elite, impulsionado pelos gols de José Caeiro — que segundo dizem não era grandes coisas com a bolas nos pés, mas de bola na rede entendia. Foram 23 tentos naquele ano. Mais tarde, descobri que o nome completo dele era José Ignacio Caeiro Igos6. Curioso.
Existia uma exceção permitida. Só uma, não mais do que uma, até porque eu era jovem demais para frequentar outros espaços de emancipatória conspiração.
Vencemos o Espanyol, de Barcelona, por 2 a 0 e me senti no paraíso. Então aquilo era futebol e aqueles eram os suaves sabores da vitória e de falar euskara fora de casa. Sempre que revisito minhas borradas lembranças, sinto o doce sabor da liberdade. Naquele dia, ninguém me censurou e não me lembro de ter medo. Meu pai conta, e disso realmente não me recordo, que meus olhos estavam vidrados e que ele nunca tinha me visto tão concentrado até então. A chama dele, há tempos fraquinha, reacendeu.
Em 1975-76, fomos a todos os jogos em que a Real foi mandante. Ainda no início da campanha, uma coisa importante aconteceu: Franco morreu e não acredito que tenha visto outra vez gente que considerava boa comemorar a morte de alguém.
Três dias depois, recebemos o Salamanca e empatamos por 1 a 1. Havia uma gente cabisbaixa, mas a massa de exultantes não só era imensa como parecia incompatível com aquele resultado decepcionante, ainda mais considerando que aquele ano ia mal. Toda a alegria de jogar a Copa da Uefa, por exemplo, escorrera pelo ralo quando o Liverpool nos enfiou 6 a 0 (no dia seguinte, corri para pegar o jornal primeiro e ficar com o caderno de esportes. Não me lembro de sentir maior dor com o futebol). Aquele ano não foi grande coisa mesmo, mas me lembro como se tivesse acontecido ontem.
Farta das aulas de História que dava há quase 15 anos, com seus vieses definidos pelo arbítrio, emburrecido como ela não cansava de repetir, dos inspetores que não faziam outra coisa senão encher a paciência dos professores, ela queria sentir o gosto da ação. Foi a primeira vez que vi, fora do nosso contexto familiar, os olhos da minha mãe a cintilar. Meu pai sabia que não adiantava contra-argumentar, por menos que gostasse da ideia de ter a esposa no espaço que lhe permitia uma dose de trogloditismo, o qual me passava voluntária ou involuntariamente.
Recordo que o sr. Oyarzabal era, como nós, um dedicado torcedor da Real — além de professor de Física. Faltavam alguns anos para eu ter aulas com ele, mas o conhecia pela amizade com meus pais, na escola e nas arquibancadas. Eu não entendia exatamente o porquê de ele tentar mobilizar os colegas de trabalho, ao menos os que não pediam a benção aos inspetores e não andavam com as caras assustadas o tempo todo (o que era comum).
Ninguém sabia exatamente o que aconteceria naquele 5 de dezembro de 1976. O Athletic vinha nos visitar para mais um dérbi e, dias após meu aniversário de 9 anos, eu só conseguia pensar no difícil que seria vazar o gol defendido pelo Iribar9. Devo confessar que não sentia tanta confiança no Arconada10 — ainda — e tinha certa inveja dos nossos rivais por ter aquele pedaço de goleiro debaixo das traves. Digressão à parte, na semana do jogo, os adultos falavam baixinho e eu não entendia o que estava acontecendo, ainda que estivesse claro: alguma coisa estava em marcha.
Foi quando meu pai decidiu que eu não iria ao jogo que a situação ficou feia. Eu não era uma criança mal-criada, mas aquele veto soou a traição. Usei todo o meu exíguo cartel de xingamentos para tentar machucar meu pai, e também minha mãe, a quem vi como a usurpadora dos meus direitos ludopédicos. Decidi que não ia mais comer. A greve deve ter durado umas seis horas, mas resultou. Ou eu cresci pensando que sim. A verdade é que eles reconsideraram a decisão quando perceberam que boa parte das forças de segurança não estava disposta a trabalhar pesado no jogo, pelo contrário.
No fundo, sei que havia Franquistas, porque até hoje existem. Mas não os vi. Mesmo que eu fosse uma criança, não era tão difícil notá-los, com sua cara recalcada, cujas faces demonstravam valentia falsa ou covardia verdadeira.
Acedemos ao setor de sempre e aguardamos. Em dado momento, que para mim pareceu uma eternidade, irromperam os times, puxados por seus capitães. Meu adorado Kortabarria entrou ao que me pareceu de mãos dadas com Iribar. Levou pouco mais de uma dúzia de segundos para eu ver que, na verdade, carregavam um pedaço de pano retangular que eu havia visto poucas vezes e não fazia ideia do que significava. O ato instintivo de perguntar à minha mãe do que se tratava foi rapidamente censurado pelas lágrimas que lhe escorriam o rosto.
Ouvi apenas três palavras: — É a Ikurriña.
Um pouco mais tarde, perto dos 13 anos, descobri que foi o Josean De la Hoz12, nosso lateral esquerdo, que mobilizou as pessoas e pediu à irmã, Ane Miren, que cerzisse a bandeira, impossível de ser adquirida no comércio. Foi dele a ideia de mostrar que a transição de regime, que já estava em lento curso desde a morte de Franco, era um movimento inevitável e que a nossa história estava em vias de ser resgatada. Mesmo assim, a ideia teve de ser transportada clandestinamente, dentro de seu Fiat 128.
— Está tudo bem, Iker, o presente pode esperar — falou minha mãe, como quem esfrega uma lâmpada mágica. Com sub-reptício interesse, Inaxio se apresentou e puxou o embrulho das mãos da avó, que segurou com firmeza. — Não, não, não. Não sem um abraço primeiro.
— Eskerrik asko, amona13 — falou rápida e protocolarmente Inaxio, hipnotizado pela beleza de sua primeira camisa da Real Sociedad, e enfiando a cabeça no buraco da manga, na tentativa de vesti-la. Em minha defesa, só posso dizer que não encontrávamos camisas da Real em Bordeaux. O delito, ainda que subentendido, está evidente.
— Tem outra coisa do saco — era a Ikurriña. Sem tomar conhecimento do que se tratava, Inaxio a colocou nas costas como se fosse a capa de um super-herói.
Eu apenas não contava que os instintos de Inaxio o levariam a pedir para assistirmos a um jogo no campo.
A estreia de Inaxio, com mãe, pai, avô e avó, aconteceu no dia 1º de dezembro de 1996, contra o mesmo Espanyol que, 22 anos atrás, me introduziu ao sentimento txuri-urdin. Com gol do sueco Håkan Mild, vencemos por 1x0. Na saída, meu filho me perguntou o que era um “sueco” e enfim me dei conta de como o mundo mudava rapidamente, alheio à minha irresignação.
A vida, que não para, recomeçava aos 29 anos e a Real Sociedad seria sempre a mesma, onde quer que viesse a jogar. O que Atotxa foi para mim, Anoeta seria para Inaxio.
* Trata-se de uma narrativa histórico-ficcional.
[2] “Mãe” em euskara.
[3] Primeiro estádio da história da Real Sociedad, utilizado entre 1906 e 1913.
[4] Respectivamente, nomes bascos para San Sebastián e Bilbao.
[5] Rafael Moreno Aranzadi, o Pitxitxi (Pichichi em castelhano), nasceu em 1892 e foi um dos primeiros grandes artilheiros da história do futebol espanhol. Conseguiu a medalha de prata nas Olimpíadas de 1920 e, mais tarde, passou a dar nome ao prêmio anual concedido ao maior artilheiro da primeira divisão espanhola. Para mais informações, acesse: https://www.ofutebologo.com.br/2020/09/pichichi-goleador-Athletic-bilbao.html.
[6] José Ignacio Caeiro Igos nasceu em 1925 e foi jogador da Real Sociedad entre 1948 e 51.
[7] Pedro María Artola Urrutia nasceu em 1948 e foi goleiro da Real Sociedad entre 1970 e 75.
[8] Inaxio Kortabarria Abarrategi nasceu em 1950 e foi zagueiro da Real Sociedad entre 1971 e 85, tendo sido o primeiro capitão entre 1980 e 83.
[9] José Ángel Iribar foi goleiro do Athletic Bilbao entre 1962 e 80. É o jogador com mais aparições pela equipe, com 614 partidas. Defendeu a Espanha no Mundial de 1966.
[10] Luis Miguel Arconada Etxarri foi goleiro da Real Sociedad. Formado no clube, despontou em 1974 e permaneceu até 89. É o quarto jogador com mais partidas pela equipe, 551. Disputou os Mundiais de 1978 e 82.
[11] Em 4 de janeiro de 1977 foi promulgada a Lei para a Reforma Política, pedra fundamental para a publicação da Constituição Espanhola de 1978, que transformou o país em um Estado Social e Democrático de Direito. Foi, então, garantida a autonomia das Comunidades Autônomas, entre elas o País Basco.
[12] José Antonio de la Hoz Uranga nasceu na cidade de Getaria, em 1949. Defendeu a Real Sociedad entre 1972 e 78.
[13] “Obrigado, vovó”, em euskara.
[14] Em 1989, depois de perder vários destaques para outras equipes e se ver com dificuldades para formar novos talentos, a Real Sociedad contratou o irlandês John Aldridge, ex-Liverpool. Para mais informações, acesse: https://www.ofutebologo.com.br/2020/02/john-aldridge-real-sociedad.html.
Mesmo fictícia história incrível essa.eu sou torcedor do Bilbao e sinceramente eu falo que já passou da hora de admitir jogadores de fora afinal o mundo mudou bastante e o athletic também deve mudar para crescer.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário! Sobre o Athletic, penso que há que se respeitar a tradição, mas que ela, por si mesma, não justifica a decisão de não se abrir a jogadores de outras partes
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