Ruud Gullit: a excelência forjada no Haarlem
COM CERCA DE 200 MIL HABITANTES, o Harlem não guarda identidade com o
momento de sua fundação, quando imigrantes holandeses ocuparam a área e, após
conflitos com os povos originários, tomaram-na e a nomearam New Haarlem — em
alusão à cidade homônima, no norte do país europeu. O local, passados séculos, é
um centro crucial da vida afrolatina norte-americana.
Os EUA não foram, contudo, o único lugar ocupado por populações provenientes dos Países Baixos. Descendo o mapa mundi, bem próximo do Brasil está o Suriname. Fazia pouco tempo desde a fundação do Harlem americano, quando, em 1667, a partir do Tratado de Breda, os surinameses foram subjugados ao domínio holandês. A situação só teve fim, ao menos oficialmente, em meados dos anos 1970.
O pai de Ruud Dil, George Gullit, já havia partido para Amsterdã, onde nasceu o filho. Na capital holandesa, reivindicando condições de vida melhores, estabeleceu-se e reforçou velhos laços. Um dos mais fortes foi com Herman Rijkaard, que jogava futebol com ele e também teve um filho, Frank. Diferentemente do que era habitual entre os imigrantes, a vida das duas famílias melhorou e elas foram introduzidas a um viver de classe média. Não era a praxe.
“Muitas pessoas que vieram foram desapontadas por uma sociedade a que não estavam acostumadas”, comenta Humberto Tan, jornalista surinamês, em Brilliant Orange, de David Winner. “Elas não conseguiram sucesso, algumas acabaram nas drogas. Eram traficantes, cafetões e viciados em Zeedijk”.
A reputação dos imigrantes era ruim.
Algo que sabiam fazer era jogar futebol. Porém, também dentro das quatro linhas, eram vistos com reservas. As justificativas apontavam para alegadas inconsistência e volatilidade, já que traziam notas de Brasil em seu jogo, algo que os holandeses e seu futebol, indigno de nota até então, não conheciam e observavam com desconfiança. É difícil evitar falar em racismo e xenofobia, ainda que velados.
Ruud Dil, no entanto, não tinha apenas sangue surinamês nas veias; uma parte dele era holandesa, como sua mãe, Ria. Vinha dessa metade seu sobrenome.
Ruud, que pelas raízes ultramarinas preferiu ser chamado de Gullit, tinha tudo o que se podia esperar de um grande jogador de futebol. Unia virtudes físicas, técnicas e mentais que lhe permitiam jogar em qualquer posição de linha. Sabia driblar e o fazia de modo orientado, com objetividade. Quem não tardou a perceber a presença do combo que Gullit representava foi o treinador galês Barry Hughes, na parte final dos anos 1970.
Ainfluência de egressos das Ilhas Britânicas, bem como da Europa Central — Alemanha e Áustria, sobretudo — era imensa no futebol holandês, que começava a ter sua qualidade reconhecida a partir dos êxitos internacionais de Feyenoord e Ajax. Hughes vivia no país desde o princípio da década de 1960, tendo sido jogador e mais tarde assumindo funções de treinador. Fazia quase 10 anos que comandava o HFC Haarlem.
Não foi fácil fechar contrato com Gullit, então com 16 pra 17 anos. Para os dirigentes, sua boa educação e qualidades esportivas não pareciam suficientes. Para os pais do garoto, havia perspectivas melhores no horizonte do filho. Mas Hughes estava determinado.
O time chegou a peitar o futuro campeão da primeira divisão. Nas quartas de finais da Copa da Holanda, encarou o AZ Alkmaar e, na soma de duas partidas, caiu por apenas 4 a 2. Havia um elemento se sobrepondo aos demais e ele ainda não tinha 20 anos.
A temporada 1981-82 começou bem para Gullit. Seu sucesso no Haarlem não passou despercebido. Pelo contrário, rendeu-lhe convocação para a seleção holandesa, pela qual estreou no dia em que completou duas décadas de vida.
O Haarlem dava o que falar. Como se o quarto lugar no Campeonato Holandês, atrás apenas de Ajax, PSV e AZ, e com classificação para a Copa da Uefa, já não fosse bom o suficiente, o time também foi longe na Copa da Holanda. Os azuis e vermelhos superaram Roda e Excelsior, ambos por 1 a 0, detonaram com o NEC, 4 a 0 (com dois tentos de Gullit), chegando às semifinais. Porém, diante do Utrecht do goleiro Hans van Breukelen, caíram por 2 a 0.
O sucesso do Haarlem, impulsionado por 16 tentos de Gullit em todas as competições, levou ao inevitável. Clubes como o Arsenal cogitaram a contratação do jovem, mas foi o Feyenoord que abordou o talentoso faz-tudo do pequeno time e fechou negócio.
O Haarlem tentou manter seu bom momento em 1982-83, até porque disputava uma competição europeia. Não deu certo. O quarto lugar do ano anterior deu lugar a um sétimo. Na Copa da Uefa, eliminou os belgas do Gent, antes de enfrentar o Spartak Moscou, em jogo que passou à eternidade por motivos aterradores.
No dia 20 de outubro de 1982, o Estádio Central Lenin recebeu os adversários. O Spartak não era um time qualquer; treinado por Konstantin Beskov, tinha Rinat Dasaev no gol, Oleg Romantsev na zaga, Fedor Cherenkov na criação e Sergei Rodionov no ataque. Era favorito e soube confirmar esse estatuto, vencendo por 2 a 0.
No entanto, era um dia em que fazia temperatura inferior a -10ºC e poucos setores do estádio foram abertos. Parte significativa dos cerca de 16 mil presentes decidiu deixar as dependências do local um pouco mais cedo, mas havia apenas dois acessos ao exterior pelo setor leste, onde se concentrava a maioria do público. Uma das rampas se rompeu e torcedores caíram num fosso. Alguns faleceram por conta do impacto contra o chão, outros por asfixia. Nunca se soube o total de mortos, mas estimativas apontam mais de 300.
Na volta, sem clima para futebol, os holandeses abriram o placar, mas logo tomaram uma virada contundente, 3 a 1. O Haarlem nunca mais tocou de perto o futebol continental. Na década, voltou ao quarto lugar na Eredivisie de 1983-84, mas teve de se acostumar com posições intermediárias, até uma nova queda à segunda divisão, em 1989-90.
Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo |
Os EUA não foram, contudo, o único lugar ocupado por populações provenientes dos Países Baixos. Descendo o mapa mundi, bem próximo do Brasil está o Suriname. Fazia pouco tempo desde a fundação do Harlem americano, quando, em 1667, a partir do Tratado de Breda, os surinameses foram subjugados ao domínio holandês. A situação só teve fim, ao menos oficialmente, em meados dos anos 1970.
O pai de Ruud Dil, George Gullit, já havia partido para Amsterdã, onde nasceu o filho. Na capital holandesa, reivindicando condições de vida melhores, estabeleceu-se e reforçou velhos laços. Um dos mais fortes foi com Herman Rijkaard, que jogava futebol com ele e também teve um filho, Frank. Diferentemente do que era habitual entre os imigrantes, a vida das duas famílias melhorou e elas foram introduzidas a um viver de classe média. Não era a praxe.
“Muitas pessoas que vieram foram desapontadas por uma sociedade a que não estavam acostumadas”, comenta Humberto Tan, jornalista surinamês, em Brilliant Orange, de David Winner. “Elas não conseguiram sucesso, algumas acabaram nas drogas. Eram traficantes, cafetões e viciados em Zeedijk”.
A reputação dos imigrantes era ruim.
Algo que sabiam fazer era jogar futebol. Porém, também dentro das quatro linhas, eram vistos com reservas. As justificativas apontavam para alegadas inconsistência e volatilidade, já que traziam notas de Brasil em seu jogo, algo que os holandeses e seu futebol, indigno de nota até então, não conheciam e observavam com desconfiança. É difícil evitar falar em racismo e xenofobia, ainda que velados.
Ruud Dil não, Ruud Gullit
Ruud Dil, no entanto, não tinha apenas sangue surinamês nas veias; uma parte dele era holandesa, como sua mãe, Ria. Vinha dessa metade seu sobrenome.
Ruud, que pelas raízes ultramarinas preferiu ser chamado de Gullit, tinha tudo o que se podia esperar de um grande jogador de futebol. Unia virtudes físicas, técnicas e mentais que lhe permitiam jogar em qualquer posição de linha. Sabia driblar e o fazia de modo orientado, com objetividade. Quem não tardou a perceber a presença do combo que Gullit representava foi o treinador galês Barry Hughes, na parte final dos anos 1970.
Ainfluência de egressos das Ilhas Britânicas, bem como da Europa Central — Alemanha e Áustria, sobretudo — era imensa no futebol holandês, que começava a ter sua qualidade reconhecida a partir dos êxitos internacionais de Feyenoord e Ajax. Hughes vivia no país desde o princípio da década de 1960, tendo sido jogador e mais tarde assumindo funções de treinador. Fazia quase 10 anos que comandava o HFC Haarlem.
Não foi fácil fechar contrato com Gullit, então com 16 pra 17 anos. Para os dirigentes, sua boa educação e qualidades esportivas não pareciam suficientes. Para os pais do garoto, havia perspectivas melhores no horizonte do filho. Mas Hughes estava determinado.
Foto: Beeld/ANP/ Arte: O Futebólogo |
“O pai
de Gullit disse que estavam esperando pelo Ajax. Eu tinha que competir com o
gigante de Amsterdã. ‘Se Michels vier, conversaremos depois’. Perguntei: ‘Ele já
veio aqui?’ Não era o caso. Como a mãe de Ruud dava muita importância para a
educação de seu filho, imediatamente encontrei uma escola para ele em Haarlem.
Ela se deixou convencer, conversou com o pai e foi assim que Ruud Gullit foi
para o Haarlem”, contou Hughes ao livro Gras, zweet en shampoo.
Em pouco tempo, se tornaria inimaginável um selecionado neerlandêssem atletas de origem surinamesa. Suas qualidades eram inevitáveis e os efeitos da mistura com jogadores de ascendência europeia impressionaram. Não há linha do tempo que conte essa história e omita a influência de Gullit.
Em 1979, ele fez sua primeira temporada completa como jogador profissional. O Haarlem caiu para a segunda divisão. No ano seguinte, não apenas retornou como se reintroduziu na elite com estilo. O clube somou seis vitórias a mais do que o vice-campeão da divisão de acesso, o Heerenveen. Gullit, por sua vez, provou para todos que Hughes tinha razão. Fez 14 gols, em 36 jogos.
Em pouco tempo, se tornaria inimaginável um selecionado neerlandêssem atletas de origem surinamesa. Suas qualidades eram inevitáveis e os efeitos da mistura com jogadores de ascendência europeia impressionaram. Não há linha do tempo que conte essa história e omita a influência de Gullit.
Em 1979, ele fez sua primeira temporada completa como jogador profissional. O Haarlem caiu para a segunda divisão. No ano seguinte, não apenas retornou como se reintroduziu na elite com estilo. O clube somou seis vitórias a mais do que o vice-campeão da divisão de acesso, o Heerenveen. Gullit, por sua vez, provou para todos que Hughes tinha razão. Fez 14 gols, em 36 jogos.
O time chegou a peitar o futuro campeão da primeira divisão. Nas quartas de finais da Copa da Holanda, encarou o AZ Alkmaar e, na soma de duas partidas, caiu por apenas 4 a 2. Havia um elemento se sobrepondo aos demais e ele ainda não tinha 20 anos.
O Haarlem surpreende em 1981-82
A temporada 1981-82 começou bem para Gullit. Seu sucesso no Haarlem não passou despercebido. Pelo contrário, rendeu-lhe convocação para a seleção holandesa, pela qual estreou no dia em que completou duas décadas de vida.
Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo |
Cinco
rodadas da Eredivisie já haviam sido disputadas na data do debute internacional
e o time não ia bem. Houve dois empates e duas derrotas. Porém, a vitória
alcançada gritou que o time vermelho e azul tinha potencial. O Haarlem venceu o
PSV Eindhoven em um confronto emocionante: 4 a 3. Ruud marcou o tento da vitória
do azarão.
O time já não era treinado por Hughes, substituído pelo holandês Hans van Doorneveld, que fora auxiliar do galês e voltava do AZ Alkmaar, em que também foi assistente. Ele comandou uma campanha de recuperação. Na 8ª rodada, quando empatou justamente com o último campeão, AZ, o Haarlem era apenas o 12º colocado do torneio. Dali em diante, foram sete rodadas de invencibilidade (quatro vitórias e três empates).
Após uma instabilidade de três rodadas, começando por derrota pesada para o Ajax (4 a 1), passando por empate com o Den Hag (1 a 1) e terminando em novo desaire, ante o Groningen de Ronald Koeman (2 a 1), houve mais 16 rodadas. O Haarlem venceu 11 vezes, empatou uma e perdeu somente quatro. O maior de seus grandes triunfos aconteceu contra o Feyenoord, em Roterdã, 3 a 1. Gullit esteve, outra vez, no marcador.
O time já não era treinado por Hughes, substituído pelo holandês Hans van Doorneveld, que fora auxiliar do galês e voltava do AZ Alkmaar, em que também foi assistente. Ele comandou uma campanha de recuperação. Na 8ª rodada, quando empatou justamente com o último campeão, AZ, o Haarlem era apenas o 12º colocado do torneio. Dali em diante, foram sete rodadas de invencibilidade (quatro vitórias e três empates).
Após uma instabilidade de três rodadas, começando por derrota pesada para o Ajax (4 a 1), passando por empate com o Den Hag (1 a 1) e terminando em novo desaire, ante o Groningen de Ronald Koeman (2 a 1), houve mais 16 rodadas. O Haarlem venceu 11 vezes, empatou uma e perdeu somente quatro. O maior de seus grandes triunfos aconteceu contra o Feyenoord, em Roterdã, 3 a 1. Gullit esteve, outra vez, no marcador.
O Haarlem dava o que falar. Como se o quarto lugar no Campeonato Holandês, atrás apenas de Ajax, PSV e AZ, e com classificação para a Copa da Uefa, já não fosse bom o suficiente, o time também foi longe na Copa da Holanda. Os azuis e vermelhos superaram Roda e Excelsior, ambos por 1 a 0, detonaram com o NEC, 4 a 0 (com dois tentos de Gullit), chegando às semifinais. Porém, diante do Utrecht do goleiro Hans van Breukelen, caíram por 2 a 0.
O sucesso do Haarlem, impulsionado por 16 tentos de Gullit em todas as competições, levou ao inevitável. Clubes como o Arsenal cogitaram a contratação do jovem, mas foi o Feyenoord que abordou o talentoso faz-tudo do pequeno time e fechou negócio.
No Gullit, no party
O Haarlem tentou manter seu bom momento em 1982-83, até porque disputava uma competição europeia. Não deu certo. O quarto lugar do ano anterior deu lugar a um sétimo. Na Copa da Uefa, eliminou os belgas do Gent, antes de enfrentar o Spartak Moscou, em jogo que passou à eternidade por motivos aterradores.
No dia 20 de outubro de 1982, o Estádio Central Lenin recebeu os adversários. O Spartak não era um time qualquer; treinado por Konstantin Beskov, tinha Rinat Dasaev no gol, Oleg Romantsev na zaga, Fedor Cherenkov na criação e Sergei Rodionov no ataque. Era favorito e soube confirmar esse estatuto, vencendo por 2 a 0.
No entanto, era um dia em que fazia temperatura inferior a -10ºC e poucos setores do estádio foram abertos. Parte significativa dos cerca de 16 mil presentes decidiu deixar as dependências do local um pouco mais cedo, mas havia apenas dois acessos ao exterior pelo setor leste, onde se concentrava a maioria do público. Uma das rampas se rompeu e torcedores caíram num fosso. Alguns faleceram por conta do impacto contra o chão, outros por asfixia. Nunca se soube o total de mortos, mas estimativas apontam mais de 300.
Na volta, sem clima para futebol, os holandeses abriram o placar, mas logo tomaram uma virada contundente, 3 a 1. O Haarlem nunca mais tocou de perto o futebol continental. Na década, voltou ao quarto lugar na Eredivisie de 1983-84, mas teve de se acostumar com posições intermediárias, até uma nova queda à segunda divisão, em 1989-90.
Foto: @ruudgullit/ Arte: O Futebólogo |
Foi de longe que o clube viu a excelência do
jogador holandês de origem surinamesa ser ratificada: em 1987, Gullit recebeu o
Ballon d’Or. No ano seguinte, junto a seu velho conhecido, Frank Rijkaard,
venceu a primeira de duas edições da Copa dos Campeões da Europa, representando
o Milan.
O clube azul e vermelho nunca mais voltou à elite holandesa; faliu em 2010. Sua principal memória tem 1,91m, cabelo black e um bigode fininho.
O clube azul e vermelho nunca mais voltou à elite holandesa; faliu em 2010. Sua principal memória tem 1,91m, cabelo black e um bigode fininho.
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