Jürgen Klopp e a lembrança do jogo que apaixona e massacra

Era o dia 15 de fevereiro de 1999, quando um gosto amargo tomou conta da boca de parte significativa dos amantes do futebol. Assim foi anunciada pelo Guardian a despedida do treinador Arrigo Sacchi. Depois de pedir as contas e deixar o Atlético de Madrid, o revolucionário italiano definiu que, para ele, aquela vida já não valia a pena ser vivida. Estou exausto, hoje me despeço do futebol, não tenho mais nada a dizer, garantiu. Dois anos depois, uma tentativa de retorno triunfal no Parma, substituindo Alberto Malesani, terminou da mesma forma. Razões pessoais traduziram o cansaço. Foram só mais três jogos. Ele tinha 54 anos.

Klopp Liverpool
Foto: Oli Scarff/AFP/ Arte: O Futebólogo

Herdeiro de uma terra que consagrou a arte de defender, passando do Vianema dos anos 1940 ao Catenaccio vigente entre os anos 1950 e 70 e adaptado como Gioco all'italiana por  Giovanni Trapattoni até meados dos 80s, Sacchi, que não fora jogador profissional, trouxe ao futebol um gostinho de novidade, um frescor, algo que, no íntimo, muita gente pedia e que ia além de vencer ou perder. 

O filho da pequena Fusignano, longe de conservar a tradição do futebol italiano, propôs o radical. As marcações individuais, que por exemplo anularam Zico e Maradona na Copa do Mundo de 1982, deram lugar ao dinamismo típico das equipes que marcavam por zona. Seu Milan, com grandes holandeses — Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Marco van Basten —, foi a melhor expressão desse pensamento e conquistou a Europa duas vezes, consecutivamente.

No entanto, por trás da beleza, da eficiência e dos sorrisos que as atuações desse time proporcionaram, estava um homem cansado. Aliás, exausto. Apesar de ter apostado na mudança e se tornado um ícone por isso, Sacchi era um tipo intransigente no que dizia respeito aos métodos. E ter que provar, a todo tempo, que os feitos do final dos anos 1980 e início dos 90 não foram obra do acaso, pesava. É evidente que, naquele dia 15 de fevereiro, ele já pensava em parar. E, dois anos depois, quando da decisão definitiva, ficou nítido que ele se dera uma última chance, mas treinar estava além do seu alcance.

Sacchi não deixou o futebol totalmente e desempenhou funções administrativas no Parma, na Federação Italiana e até mesmo no Real Madrid, mas não voltou à vida dos holofotes; o homem que Pep Guardiola descreveu como contracultural por ter lutado contra a ideia de que o futebol era “todos na defesa e Deus no ataque” se retirou sem fazer barulho. 

Sacchi Atlético de Madrid
Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo

Há, por certo, quem viva bem no meio. Talvez seu ex-comandado Carlo Ancelotti seja o expoente maior, mas o futebol massacra. O próprio Guardiola precisou de um ano sabático entre sair do Barcelona e assumir o Bayern de Munique.

Nos anos 1990, tanto Johan Cruyff quanto Telê Santana, protagonistas de um dos jogos mais impressionantes da década, entre Barcelona e São Paulo, tiveram problemas de saúde e decidiram parar. O holandês, infartado, com 49 anos; o brasileiro, vítima de uma isquemia cerebral, um pouco mais velho, 65. 

Chegamos a Jürgen Klopp.

Diferentemente de Sacchi, ele foi jogador. Não dos bons, mas dos extremamente dedicados. Um tipo que jogaria onde lhe mandassem entrar e faria, no limite de suas capacidades técnicas, o que o treinador pedisse. Este homem acreditou no futebol do impossível, creu que era viável estabelecer o Mainz na elite da Alemanha, como Sacchi fizera com o Parma na Itália, tirando-o da Serie C1, mostrou disposição para ressuscitar o Borussia Dortmund, a exemplo do que o colega italiano conseguira com o Milan e, depois, repetiu a dose com o Liverpool.

Tudo isso com caras e bocas, entrevistas divertidas, sorrisos e muito, muito carisma. O futebol do heavy metal se tornou marca registrada e, no presente, já se sabe que, no futuro, a menção a essas palavras trará a memória dos tempos em que Klopp devolveu grandeza aos Reds, apostando em ícones como Jordan Henderson, Mohamed Salah, Sadio Mané ou Roberto Firmino. 

Tudo isso se deu aplicando o famigerado gegenpressing, uma resposta ao jogo alemão que, no final dos anos 1990, estava falido. O líbero precisava deixar de existir, a marcação individual também. O planeta atuava com defesas de quatro defensores e a Alemanha ficava para trás. Klopp não inventou o jeito vertiginoso de jogar, com recuperações de bola em tempo recorde e energia aparentemente infinita. Outros teorizaram o método antes dele, como Ralf Rangnick, mas Kloppo acabou sendo o porta-voz mais proeminente. 

Enquanto o planeta se encantava com os passes do Barcelona de Guardiola, o alemão queria mesmo era saber o que os catalães faziam ao perder a bola.

Pep Guardiola Barcelona
Foto: Lluis Gene/Getty/ Arte: O Futebólogo

Isso é o que os grandes fazem, buscam constantemente formas de compreender o jogo — o seu e o dos outros. O Klopp do Liverpool não era igual ao do Dortmund, como o Guardiola do Manchester City já não é o do Barça. Um dos pesos que recaiu sobre os ombros de Sacchi foi este: ele jamais conseguiu replicar os êxitos do Milan. Nada disso é fácil e, no caso de Klopp, por trás do sorriso e do otimismo inabalável estava um homem muito desgastado nos últimos dias. 

Não serão poucos a dizer que ele tinha o trabalho dos sonhos em Anfield Road. Talvez tivesse, mesmo. Amado pelos torcedores além do alcance da imaginação, respeitado pelo staff e os jogadores ao nível da adoração, pelo lado humano exacerbado, mas acima de tudo, como o futebol não aceita a derrota, pelos resultados. Klopp, como os grandes que o precederam, conseguiu unir as ideias ao resultado e construir toda uma causa ao redor de suas visões do esporte e da vida.

Sem surpresa, como aclamou Sacchi no passado, Guardiola ficou à beira das lágrimas ao falar de Klopp quando de sua despedida do Liverpool. Foi preciso grandeza para dizer que Jürgen foi uma parte muito importante da própria vida, que o levou a outro nível como treinador.

Klopp Guardiola
Foto: Action Images/Reuters/ Arte: O Futebólogo

O alemão, agora diferentemente de Sacchi, não revelou seus planos para o futuro. Enquanto aparece publicamente em estádios, partidas de tênis e shows internacionais, ele descansa. Não saí por capricho, afirmou. Treinei os melhores clubes do mundo. Talvez possamos conversar de novo dentro de alguns meses, deixou no ar. Também ficou em suspenso a possibilidade de assumir outra função no esporte, agora sim, como Sacchi.

Seja qual for o destino de Klopp, o encerramento de sua carreira aos 57 anos ou um período sabático, o alemão lembra que esse esporte consome uma parcela considerável daqueles que o amam. Parece ser este o elo que une os mortais das arquibancadas e as lendas dos gramados e bancos, num ciclo de retroalimentação que supera as barreiras do tempo e se repete por gerações. 

Viver o jogo exaure, mas como evitá-lo?

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