A Jamaica de 1998 e as canções de redenção

Robert Nesta Marley profetizou: We forward in this generation… Triumphantly. Triunfantemente, avançamos nessa geração. Quem? Nós, os jamaicanos, poderia ter dito Theodore Eccleston Whitmore, o Tappa. Em 1998, quando Bob completou 17 anos de falecido e o futuro astro do esporte, Usain Bolt, ainda tinha 11, as ruas da Jamaica se encheram para comemorar a primeira vitória de um país caribenho anglófono na história das Copas do Mundo.

Jamaica 1998
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Quando as redes do Stade Gerland balançaram e Tappa, o protagonista do gol, correu para comemorar, também os jamaicanos presentes, todos radiantes, tremularam bandeiras e transpareceram orgulho pelo feito alcançado. Ainda faltava mais uma hora de futebol e, depois de perder para Argentina e Croácia, os Reggae Boyz não tinham mais chances de classificação aos mata-matas. O que não quer dizer que não houvesse o que celebrar.

Até o apito final, Tappa, atacante do incógnito Seba United, da própria Jamaica, e que conseguiu uma transferência para os ingleses do Hull City, marcou mais um gol e o nipônico Masashi Nakayama descontou. O placar de 2 a 1 se consolidou e, ao menos naquele dia, ouviu-se apenas redemption songs, these songs of freedom — canções de redenção, essas canções de liberdade. Elas ecoaram pelo país inteiro, onde Marley bateu bola décadas atrás e o jovem Bolt, entre um sprint e outro, também.

Pouco importa que o futebol não seja um esporte bem-sucedido na Jamaica, posto que cabe ao atletismo. Ele não é menos adorado e praticado ante a ausência de um ícone. A vitória contra os japoneses, a primeira caribenha desde que Cuba superou a Romênia, 60 anos antes, aqueceu os corações e propiciou a celebração. 

Tão aclamado quando Tappa foi o brasileiro Renê Simões, treinador que do além-oceano regeu os festejos. Até a vitória, um longo caminho foi percorrido. Parte dele, mental. Emancipate yourselves from mental slavery, também isso Marley havia dito: emancipem-se da escravidão mental.

Jamaica World Cup 1998
Foto: Getty/Arte: O Futebólogo

Meses antes da viagem à França, a Jamaica disputou a Copa Ouro e provou que já não havia coisas impossíveis. Já classificados para o Mundial, deixando a Costa Rica fora, os Reggae Boyz enfrentaram o Brasil, o todo poderoso Brasil.

“Vocês não acreditam que podem derrubar o gigante? Não será impossível no momento em que acreditarem que podem”, disse Simões — a Placar de março de 1998 relatou. 

Derrubar, derrubar… a Jamaica não derrubou o Brasil, mas os efeitos daquele resultado foram próprios de um nocaute. Os caribenhos seguraram um empate sem gols e ainda viram Júnior Baiano ser expulso. A verdade é que o triunfo jamaicano só foi impedido pela não marcação de uma penalidade.


Aquele time foi às semifinais e disputou o terceiro lugar outra vez com o Brasil, que dessa vez venceu, mas por apenas 1 a 0, gol de Romário.

Para chegar até ali, foi preciso construir uma unidade. Um dos trabalhos de Renê foi de convencimento. Won't you help to sing, Jamaican British boys? Vocês não querem nos ajudar, jamaicanos de sangue com CEP inglês? Ora, é claro.

Os selecionados não eram tão bons como gente como Viv Anderson, Laurie Cunningham, John Barnes ou Luther Blissett, que apesar de suas origens representaram os Three Lions, mas tinham qualidades e, mais do que isso, experiência. O principal expoente foi o beque Frank Sinclair, do Chelsea.

“Tinha ouvido que a Jamaica queria alguns jogadores baseados na Inglaterra, que me queriam. Conversei com o treinador. Estava preocupado com os jogadores que fizeram todo o trabalho árduo para levá-los à Copa do Mundo e como se sentiriam se eu entrasse. Mas o treinador me disse que ficariam felizes porque daríamos a eles uma chance melhor de se sair bem e isso ajudaria em suas carreiras. Eu, Robbie Earle, Marcus Gayle e Darryl Powell entramos e fomos muito bem recebidos”, contou Sinclair.


Jamaica 1998 Copa do Mundo

Não apenas os atletas nascidos em solo britânico foram cooptados, até no Canadá Simões buscou alternativas. “Aconteceu [de pensar em representar o Canadá], até que fui convocado para a seleção sub-16 da Jamaica e nunca mais me veio à cabeça”, relatou o atacante Andy Williams.

Esse grupo de atletas, excelentes ou não, causou sensações impressionantes nas pessoas. Segundo Placar, elas se amontoaram após um amistoso contra a Suécia, pedindo um autógrafo de Whitmore. Tappa era, afinal, o craque do time. Quem além dos jamaicanos o conhecia? Por acaso essa pergunta importa? Na tal ocasião, Jimmy Cliff, outro ídolo da música, estava presente — absolutamente relegado ao segundo plano.

A história conta do possível. Marley também tinha razão ao dizer que sua mão foi fortalecida, ou, como saiu de sua boca, my hand was made strong. Mãos e pés, na verdade. O time que foi à França tinha de carregadores de malas a motoristas de táxi, gente brava e forte, mas ainda foi preciso atiçar a curiosidade de milionários para arrecadar fundos e possibilitar a realização do sonho, da viagem, afinal old pirates, yes, they rob I, velhos piratas os haviam roubado. Eles, a Jamaica.

Robbie Earle Jamaica Croatia 1998
Foto: Getty/Arte: O Futebólogo

O país estava parado no dia 14 de junho de 1998, quando os Reggae Boyz estrearam na Copa do Mundo, diante da Croácia. Vinda de uma guerra, ela também carregava em seus ombros a responsabilidade de colocar sorrisos no rosto de seu povo e conseguiu. Era uma novata experiente, porque mesmo antes da independência, sempre esteve no grande palco, ainda que ao lado de vizinhos com os quais não se dava tão bem. Nem por isso o gol de Robbie Earle passou despercebido.

Em Sherwood Content, um menino de 11 anos deve ter sorrido. Afinal, muitos anos mais tarde, garantiu que não pensava em outra coisa senão em esportes. Ele próprio tentou ser jogador de futebol, mesmo sem levar a ideia tão a sério. O que não se coloca em xeque é seu amor pela modalidade. Mesmo tendo se tornado sinônimo de excelência, de um jeito que o futebol jamaicano apenas sonha, Bolt nunca deixou de se imaginar no retângulo verde.

Contra a Argentina, uma semana mais tarde, Burrito Ortega e Gabriel Batistuta não tiveram piedade e nem toda a competência de um forte trabalho mental foi suficiente para evitar o 5 a 0. Some say it's just a part of it… É, alguns dizem que esse tipo de coisa faz parte.

Restava o Japão, que como os jamaicanos estreava em Mundiais e vivia, ele próprio, sua experiência de revolução futebolística. Ainda não era a hora dos nipônicos, que ficaram indisfarçavelmente tristes. Autor do gol de consolação deles, Nakayama voltou para casa insatisfeito: “Senti que acabou muito cedo”. Para o jamaicano Williams, contudo, “foi um momento maravilhoso que uniu a Jamaica”. O esporte é ou não é sobre isso?
 

Triunfo e fracasso são dois lados de uma mesma moeda, mas há mil interpretações possíveis acerca do que configura cada um deles. Na Jamaica, o povo ficou exultante, ouviu-se Marley e uma nova geração de atletas, especialmente do atletismo, deve ter sentido que tudo era possível. Se, após as Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994, alguém dissesse que a Jamaica estaria no certame seguinte, que antes teria empatado com o Brasil e que venceria uma partida, essa pessoa seria ridicularizada.

Mas, no fim das contas, tudo o que sempre se teve, tem e terá, são redemption songs, canções de redenção. Por isso, Marley segue vivo, os gols de Tappa não envelhecem e meninos como Bolt continuarão sonhando com estádios lotados, gols e Copas do Mundo.

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