Heranças e herdeiros, futebol e política na França

É diante de mais de 70 mil pessoas que a imagem se desfoca e só se ouve o som do silêncio. Imagino que sensação similar tenha sido experimentada por Lilian Thuram ao marcar o segundo gol da França, nas semifinais da Copa do Mundo de 1998.

Llian Thuram 1998 Croatia France
Foto: Christian Liewig/Arte: O Futebólogo

O lateral direito foi o protagonista da partida, tanto por ter anotado os dois tentos gauleses quanto por ter falhado no croata. Quando sai o gol que confirmará, em breve, a passagem francesa à final, Thuram comemora como um pensador. Está muito perto de se tornar herói nacional. Ele que, durante a década, foi apontado insistentes vezes como indigno de representar a França. Talvez não ele enquanto indivíduo, diretamente, mas “gente como ele”. Gente preta, gente árabe. Gente imigrante. Gente? O discurso de Jean-Marie Le Pen colocaria essa condição em xeque.

Em anos anteriores ao triunfo inédito dos Bleus no Mundial de 1998, falas como “é um pouco artificial trazer jogadores de fora e chamar isso de seleção francesa” se acumularam na boca de políticos reacionários, membros de uma extrema-direita que, naquele momento, era vista como uma piada de péssimo gosto. As Eleições Legislativas de 1997 confirmaram ser este o caso, já que o Front National, partido liderado por Le Pen, conseguiu apenas um assento.

Oito anos mais tarde, na Alemanha, Thuram, agora zagueiro, disputou mais uma final de Copa do Mundo defendendo a França (sem evitar a derrota nos pênaltis para a Itália, contudo). A situação da política francesa continuava parecida, com irrelevância para o FN, já que o grupo de Le Pen perdera seu assento no Parlamento Francês em 2002 e ele as eleições presidenciais. 

Isso não evitou que o jogador tivesse de responder a um dos vários impropérios do político. “Le Pen deveria saber que assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos, e não são convocados para a seleção por sua cor, mas por serem franceses. Ele quer ser presidente e não conhece a história do país, isso é grave e surpreendente”.

A voz de Thuram se tornou uma das mais proeminentes no combate à extrema-direita francesa, sobretudo por se tratar de um negro, nascido em Pointe-à-Pitre, Guadalupe, e que demonstrou dentro dos gramados a coragem, a ambição e o desejo inabalável de levar a França à vitória. Sim, inabalável, porque poderia ter se abatido ao falhar e ver Davor Suker colocar a Croácia próxima da decisão do Mundial de 1998. Ao contrário, empatou a disputa no minuto seguinte.

Marcus Khephren Thuram France
Foto: Stadium Astro/Arte: O Futebólogo

Durante os acontecimentos de 1998 e 2006, Lilian já exercia outro ofício fora dos campos: pai. Primeiro de Marcus (1997); depois de Kephren (2001).

Longe de terem sido escolhidos nomes aleatórios, Marcus Thuram homenageia Marcus Garvey, idealizador do Garveísmo, que nada mais ansiava senão institucionalizar modos de vida que não apenas respeitassem as origens dos afrodescendentes expatriados, mas as aclamassem. Khéphren Thuram, por outro lado, presta tributo a um faraó egípcio homônimo; homem negro, cujo nome, em francês, significa “o sol está nascendo”. Convém notar, inclusive, que os filhos nasceram em solo italiano, mas, a exemplo do pai, são franceses, tornaram-se jogadores de futebol e representam orgulhosamente os Bleus.

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“Temos que dizer a todos para irem votar e que lutem diariamente para evitar uma vitória do RN”, afirmou Marcus Thuram durante a disputa da Euro 2024.

A sigla a que o atacante da Internazionale faz menção se refere ao Rassemblement National, nova denominação do Front National, que desde 2011, passara a ser comandado por Marine Le Pen, a filha de Jean-Marie. A mudança geracional abriu o partido a uma série de reformas, de cunho mais estético que ideológico, mas fundamental para a sua expansão eleitoral nos anos seguintes. A pretensa ruptura nunca foi, todavia, suficiente para esconder a continuidade programática da agremiação, assim como a identidade entre criador e criatura.

Apesar de desavenças públicas e diferenças nos discursos e na estratégia, pai e filha partilham valores e ideais. Assim, o RN tem passado o seu mais de meio século de existência a defender medidas como o fim do “direito de solo”. É uma de suas pautas políticas centrais: acabar com a nacionalidade automática para quem nasce na França. Marine defende uma França para os que considera verdadeiramente franceses, hoje “despojados de seu patriotismo, sofrendo em silêncio por não ter o direito de amar seu país”, como afirmou em 2017.

A xenofobia, a islamofobia e o racismo característicos da FN sob Jean-Marie Le Pen mantêm uma “renovada” RN. Marine, contudo, não repete o pai. É significativamente mais astuta, a ponto de expulsar o pai do partido, em 2015, depois de vê-lo afirmar que câmaras de gás utilizadas durante o Holocausto foram apenas “um detalhe histórico”. Repaginado, inclusive no nome, o partido tenta se vender como algo mais próximo de uma direita tradicional, afastada do extremismo. Que ninguém se engane, porém: o principal item do plano de governo do RN é o controle de imigração.

Jean-Marie Le Pen Marine
Foto: La Razon/Arte: O Futebólogo

De fato, Marine atingiu os franceses de uma forma que seu pai apenas sonhou. Nas Eleições Legislativas de 2012, já como líder do partido, não foi eleita, mas viu-o ressurgir, com as entradas de Marion Maréchal-Le Pen, sua sobrinha, e de Gilbert Collard, um renomado advogado. Em 2017, os dois lugares subiram para 8. Dessa vez, ela conseguiu chegar ao Parlamento. No mesmo ano, chegou ao segundo turno nas eleições presidenciais e obteve 33% dos votos. Em 2022 repetiria a façanha, subindo para 42%. Não se pode dizer que Marine Le Pen não tenha trabalhado desde então. As eleições legislativas de 2022 não deixam mentir; o RN conseguiu 89 assentos.

Não era suposto que houvesse eleições para o Parlamento em 2024. Contudo, depois de perder o pleito para o Parlamento Europeu justamente para o RN, Emmanuel Macron dissolveu o Parlamento Francês e convocou eleições.

Entre as várias formas possíveis de se perceber Jean-Marie Le Pen estava a de classificá-lo como uma piada. Uma piada perigosa, certamente, mas uma piada. A exemplo de Donald Trump ou Jair Bolsonaro, que foram de piadas perigosas a perigos auto evidentes, Marine não pode ser caracterizada da mesma forma que seu pai. A retórica mais moderada é apenas uma parte de sua estratégia; ela entendeu como se faz política, o que ficou evidente em 2024. 

Nessa linha, indicou para primeiro-ministro o jovem Jordan Bardella, de 28 anos, atual presidente do partido — popular pela juventude, por ser filho de imigrantes italianos, pela influência nas redes sociais e pela narrativa que o sugeriu como um filho da classe operária.

No primeiro turno, parecia que Marine Le Pen finalmente conquistaria a sonhada maioria. Seu partido obteve 33% dos votos, superando o bloco da esquerda (28%) e o macronista (20%). No entanto, a esquerda superou diferenças, uniu-se ao redor de uma ideia mais centrista, e, com um espírito anti RN, venceu no segundo turno. Le Pen foi freada, mas como ela própria apontou, é possível que o cenário atual diga apenas que a “vitória foi adiada”.


Enquanto o futuro imaginado por Le Pen não chega, jogadores como Aurélien Tchouaméni comemoram “a vitória do povo”, como publicou em sua conta no X (ex-Twitter). Foi um triunfo suado.

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Corria o ano de 2005 quando, revendo a postura adotada após a Euro do ano anterior, Zinedine Zidane aceitou voltar a representar a França, que tinha severas dificuldades para se classificar para o Mundial de 2006. Ele não foi o único a retornar, mas, dada sua qualidade técnica, representou a volta mais aclamada. Naquela altura, Thierry Henry, o principal astro da seleção, afirmou que Deus estava de volta. A fala ressoou, especialmente porque se dizia que havia uma rixa entre as estrelas, que não se encaixariam bem no campo. Durante a Copa do Mundo, o relacionamento floresceu.

Depois de mais de 55 jogos, viu-se a primeira e única participação de um em gol do outro, com Zidane assistindo Henry, gol que os brasileiros preferem não lembrar. Passe de um meia marselhês de origem argelina, gol de um atacante dos subúrbios parisienses, com antepassados antilhanos.

Zidane já era um ícone pelos feitos futebolísticos de 1998, mas não só por isso. Em 2002, erguera sua voz para falar aos franceses: “Precisamos dizer às pessoas que votem. É muito importante, especialmente quando penso nas consequências de votar em um partido que não corresponde em nada aos valores franceses”. Le Pen pai disputava as eleições presidenciais contra Jacques Chirac. Foi derrotado.

Henry Zidane 2006
Foto: imago/Arte: O Futebólogo

Foi previsível a reação da extrema-direita francesa após a derrota dos Bleus na final do Mundial de 2006, especialmente diante da forma como se deu, com Zidane desferindo uma cabeçada no italiano Marco Materazzi e logo após se aposentando. “Tchau, bandido”, estampou como manchete o Minute, jornal que, entre 1962 e 2020, representou semanalmente a direita radical francesa. Durante a competição, Le Pen pai já havia dito que na seleção francesa “havia negros demais”.

Em 2017, quando Marine Le Pen já estava estabelecida, Zidane voltou a se manifestar — o dever cívico o chamava outra vez: “A mensagem é sempre a mesma, a de 2002. Estou distante de todas essas ideias da FN. Então, deve-se evitar ao máximo. Os extremos nunca foram bons”. Ela foi bem no certame eleitoral, mas Zidane venceu outra vez.

Já em 2024, foi a vez de Henry falar: “Há algo importante acontecendo. O que pode ser feito para bloquear os extremos é irmos votar, então vamos votar. Estou contra tudo o que divide e a favor daquilo que pode unir”. Le Pen voltou a ir bem, mas Henry, também campeão em 1998, triunfou novamente. 

No fim das contas, a dobradinha Zidane-Henry se provou muito mais eficiente do que se dizia.

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No início de 2018, o antigo atacante da seleção francesa e, acima de tudo, do Lyon, Sidney Govou, profetizou: “Não vi nada parecido desde Zidane e Henry”. Ele se referia a Kylian Mbappé, jovem que despontava no Monaco, o mesmo clube que revelou Thierry. Não demorou nada a ficar evidente o tamanho da estrela do jogador que, ainda naquele ano, venceria o Mundial disputado na Rússia, oferecendo mais uma láurea à França. Mbappé foi, desde cedo, comparado a Henry. Havia algo similar em suas histórias de vida e, além disso, em seu futebol.

O prospecto não demorou a se tornar o rosto da França, ao menos em termos futebolísticos. O Paris Saint-Germain se adiantou a outros clubes do planeta e contratou-o. Na capital, concorreria pelo protagonismo com figuras como as de Neymar e Lionel Messi, dentro dos campos. Fora deles, foi sempre o favorito das arquibancadas. Ele representava não apenas o clube, mas a imagem de uma nação forte e vencedora.

O respeito ao ídolo ficaria especialmente evidente na despedida, a caminho do Real Madrid. Foi exibido no Parc des Princes, casa do PSG, um belo mosaico com a figura de Mbappé. Embora triste, a maior torcida da França dava um apropriado adeus ao maior jogador da atualidade no país. Sua imagem já transcendia o futebol. Até mesmo o presidente da república, Emmanuel Macron, pediu a palavra para dizer que esperava ver o astro representando o país também nos Jogos Olímpicos de 2024, que se realizam, justamente, em Paris.

Thuram Mbappé Dembélé
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Mbappé foi omitido nas escolhas para as Olimpíadas, mas seu comprometimento com o país ficou especialmente evidente durante a Euro 2024. Jogando três partidas com o nariz fraturado, capitaneou a França às semifinais do certame. Os gauleses marcaram quatro gols: dois contra, um dele e outro com sua assistência.

Ocorre que ele não marcou apenas um tento durante o certame continental. Quando Marcus Thuram puxou o movimento anti RN, Mbappé mostrou-se um herdeiro legítimo de Zidane e Henry e amplificou sua voz: 

“Estamos num momento crucial na história do país. Você tem que saber resolver as coisas e ver suas prioridades. Somos cidadãos acima de tudo, não devemos estar desligados do mundo. Estamos numa situação sem precedentes. Quero dirigir-me a todos os franceses e, em particular, à geração jovem. Vemos que os extremos estão às portas do poder. Temos a possibilidade de mudar tudo”, disse.

É claro, houve retaliação. “Quando você tem a sorte de ter um salário muito, muito alto, quando você é multimilionário... então fico um pouco envergonhado de ver esses atletas dando aulas para pessoas que não conseguem mais sobreviver”, afirmou Bardella. 

Mbappé não se intimidou e voltou a se manifestar: “Mais do que nunca, temos que ir votar. É realmente urgente. Não podemos deixar o país nas mãos destas pessoas”.

Bardella pode até ter sido criado em meio à classe operária parisiense, mas o que ele, descendente de italianos, sabe sobre sobrevivência, em termos de experiência pessoal? Seria curioso se Mbappé lhe perguntasse algo tão simples como quantas vezes alguma força policial lhe abordou sem motivo aparente.

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Quando Marine Le Pen diz que o triunfo do RN ficou para uma próxima eleição, mas virá, não há motivos para risos. Porém, na casa dos Thuram, sabe-se que agora o sol está nascendo. A esperança é de que, quando o amanhã de Le Pen chegar, ainda haverá quem garanta que o astro-rei continue a nascer.

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