Galácticas até que não mais, a história do Tyresö FF
Transcorridos 28 minutos, Marta
recebe a bola de Verónica Boquete. Ela está na entrada da área do Wolfsburg.
Tem três marcadoras e uma goleira para superar: o faz com maestria,
fuzilando a meta rival com a perna direita (a menos boa) e tirando o zero do
placar. As 11 mil pessoas que estão em Lisboa, no estádio do Restelo, ainda
aplaudem quando Christen Press vai à linha de fundo e cruza para Vero marcar
o segundo do Tyresö, aos 30’.
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo |
Na volta dos vestiários, as alemãs acordam.
Alexandra Popp e Martina Müller empatam a batalha. Então, Marta presta
socorro às colegas. Outra vez, recebe de Verónica. De novo, ilude suas
marcadoras e finaliza com a direita: 3 a 2. Porém, Verena Faißt e Müller
enterram o sonho sueco, que, sabe-se, não terá uma segunda chance de se
realizar.
O Tyresö FF que viajou à capital portuguesa para a disputa da final da
Liga dos Campeões Feminina havia deixado as francesas do Paris Saint-Germain,
as dinamarquesas do Fortuna Hjørring, as austríacas do Neulengbach e as
inglesas do Birmingham pelo caminho. E foi antes do confronto contra o time
britânico que uma alcunha foi forjada:
“O Tyresö são os galácticos, eles são o Real Madrid do futebol feminino”, disse o treinador das Birmingham Ladies, David Parker.
Não era para menos, já que o clube sueco tentava se elevar ao olimpo do
futebol feminino a partir da qualidade de craques como as citadas
Marta, Boquete e Press, além da capitã sueca
Caroline Seger e de outras selecionáveis, como as norte-americanas
Meghan Klingenberg e Whitney Engen, ou as brasileiras
Thaísa, Rilany e Mayara. No banco, o comando estava nas
mãos de Tony Gustavsson, ex-auxiliar de Pia Sundhage na seleção dos Estados
Unidos.
Ainda que incomparáveis àqueles comuns à elite masculina, os salários também
não pareciam ir mal. Segundo os escoceses do
The Herald, Marta, a grande estrela da companhia, percebia cerca de £180 mil,
pagas por patrocinadores, conforme narra Gwendolyn Oxenham, em
Under the Lights and in the Dark.
Aquele time consagrava uma ideia que começara a tomar forma em 2006.
Embora tenha sido fundado em 1971, o clube teve esparsa representatividade no
curso dos anos. Nesse sentido, seu melhor período até então havia sido o
interregno entre 1993 e 1996, e no ano de 1999, quando esteve na elite sueca.
No anos 1990, o time chegou a contar com as talentosas Michelle Akers e
Kristine Lilly.
A ambição que começou a ganhar forma em 2006 era equivalente ao risco a
enfrentar. O empresário Hans Löfgren escolheu apostar e assumiu a
equipe. Então, o Tyresö se encontrava na quarta divisão nacional, ou
seja, no mais absoluto ostracismo. Quatro anos mais tarde, já disputava a
elite, tendo conquistado o certame em 2012 e alcançado o vice-campeonato da
Copa da Suécia por duas vezes, em 2011 e 2012.
Não houve milagre.
Löfgren foi atrás de investidores locais e, aos poucos, foi angariando fundos
para aquela difícil missão. Foi se formando, também, um senso de comunidade no
entorno do clube, que, em pouco tempo, via mais de mil pessoas orbitando ao
seu redor. Assim, em 2011, foi, inclusive, aberta uma empresa para cuidar dos
interesses do time, a Tyresö Event AB.
Em 2011, o empresário teve de deixar o clube após ser acusado de contratar os
serviços de uma prostituta — o que pode acarretar o pagamento de multa ou até
mesmo uma prisão na Suécia; prostituir-se não é crime, pagar por sexo é. Tal
fato não fez muita diferença para os caminhos da agremiação, porque o
presidente do clube, Hans Lindberg, não mudou a rota em que o clube
caminhava, mas seguiu os passos do contraventor visionário. Nada que tenha
evitado a ruína.
Antes mesmo de a bola rolar em Lisboa para aquela grande final continental, já
se sabia que o amanhã traria a tormenta.
Nos dias que antecederam a partida, especificamente em 22 de maio de 2014, o
Tyresö já havia instaurado um procedimento de insolvência que o levaria a ser
declarado falido. Desde março, os salários não eram pagos. Em abril
fora tornado público o fato de que o time não conseguira licença para disputar
o campeonato sueco de 2015. Aliás, a equipe só conseguiu viajar para a final
porque a Federação Sueca adiantou os valores referentes à premiação (250 mil
euros para o campeão e 200 mil para o vice).
Logo, uma legião de estrelas ficou sem emprego e um finalista da maior
competição de clubes da modalidade deixou de existir. Mas não foi sem mais nem
menos.
Do luxo ao lixo
Como se percebe, nem mesmo o título teria mudado os rumos da equipe. Dois
meses antes da decisão, com dívidas superiores a nove milhões de coroas suecas
(algo como 880 mil euros), o time flertou com seu fim. Acabou conseguindo
postergá-lo até o meio do ano, quando a Liga dos Campeões já teria se
encerrado, assim como os contratos de algumas craques. Porém, o adiamento
chegou a um ponto em que não dava mais para atrasar o inevitável.
Sem dinheiro ou jogadoras, obviamente,
o time não tentou seguir na disputa da Liga Sueca e de uma nova Liga
dos Campeões, para a qual estava classificado. Até chegou a ser efetivado um
pedido de adiamento do procedimento falimentar:
“Se o Tribunal Distrital não julgar procedente o pedido de extensão da
reestruturação societária, não haverá alternativa senão a falência”, foi explicado na petição. O clube esperava angariar fundos nos três meses
seguintes para conseguir quitar seus débitos.
O Tribunal Distrital de Nacka acabou negando o requerimento. Ainda que
tenha sido alegada a existência de um princípio de acordo com um
país africano
não revelado, que aceitaria assumir o passivo da equipe, a falta de evidência
do referido impediu que o pedido fosse adiante.
Desse modo, o clube foi ao chão. Foi varrido da cena esportiva outra vez. O
que não foi propriamente uma novidade em sua história e, muito menos, no
contexto do futebol feminino.
Quando enfim teve de explicar o estado de destruição do
clube, Lindberg foi lacônico:
“A razão principal [para a falência] é que não recebemos tanta renda dos
patrocinadores quanto orçamos”, falou à Sveriges Radio.
Em que pese o fato de o mandatário alegar ter descoberto o tamanho do buraco
em que se encontrava apenas no início daquele fatídico ano, a reportagem da
rádio em questão elencou motivos que contradizem tal versão.
A crise já se verificava desde 2011 e somente cresceu nos anos
seguintes, até o ponto em que se tornou insustentável.
Apesar dos pesares, houve quem tenha conseguido tirar ensinamentos positivos
daquilo tudo. Após a tormenta, Christen Press abriu seu coração em uma longa
reflexão em seu blog, tratando de toda a sua jornada na Suécia — o que inclui
passagem pelo Kopparbergs/Göteborg FC.
“Depois de nossa derrota embaraçosa [para o Wolfsburg], o que teria sido nosso maior jogo na temporada da Liga Sueca parecia muito pouco. Não havia motivação para jogar. Pontos não importavam, já que suspeitávamos que não terminaríamos a liga. Não estávamos sendo pagas. O que aconteceu me lembrou de tudo o que amo sobre esportes. Nosso time — corpos e espíritos quebrados — jogou exatamente como todos se lembravam de nós.[...]Eu assisti Lisa Dahlkvist fazer desarmes e cortar bolas como poucas jogadoras conseguem. Testemunhei, com admiração, Vero, que não treinava há um mês, por conta de uma lesão, jogar a segunda de duas batalhas, pegando bolas e quebrando a defesa do Malmö a toda velocidade. E eu? Eu me senti revigorada com a liberdade de apenas jogar pelo amor ao jogo. Nunca me senti tão confiante no campo.[...]Agora, semanas depois, quase não me lembro do jogo contra o Wolfsburg. Quando as pessoas me perguntam o que houve, tenho dificuldade para encontrar as palavras. Mas essas imagens finais das minhas companheiras se superando, contra todas as probabilidades, seguem comigo e continuam me inspirando [...] Enquanto colocava minha vida de volta nas malas, entendi que, apesar de estar perdendo tudo — não apenas o título, mas também meu time, meu ambiente de treinamento, minha vida, minhas amigas — eu tinha ganhado algo mais”, escreveu Press.
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo |
A vida do último grande time do Tyresö foi efêmera. Na mesma velocidade com que ascendeu das profundezas da quarta divisão, retornou ao fundo do poço. Apesar disso, costuma-se dizer que as comunidades nada refletem senão as pessoas que as compõem. Que Press tenha deixado as cercanias de Estocolmo, onde se localiza o clube, com algo positivo a dizer, revela que alguma coisa boa aconteceu naquela terra.
O intento de Löfgren, as dificuldades de Lindberg, o comprometimento de
Gustavsson e a magia das jogadoras construíram algo. Entretanto, acima de
todas as coisas,
evidenciaram-se uma vez mais as dificuldades imensas que cercam os times de
futebol feminino. Uma dívida de menos de um milhão de euros pôs fim a tudo aquilo; impediu
que o Tyresö tivesse outra chance. Ele até voltou em 2017, mas nunca mais
tentou ser galáctico.
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