O diário de Johan Cruyff no Levante
Pense rapidamente na figura do
jogador de futebol Johan Cruyff. A imagem que vem à mente o registra com
qual camisa? A maioria das respostas, por certo, apontará o uniforme
vermelho e branco do Ajax, a camisa alaranjada da Holanda, ou o fardamento
blaugrana do Barcelona. No entanto, caso a pessoa inquirida seja torcedora
do Levante, a resposta poderá ser outra — ainda que também inclua o azul e o
grená. Isso se deve a um capítulo vivido pelo holandês em 1981.
Foto: Periodico/Arte: O Futebólogo |
Desde a saída do Barça, ao final da temporada 1977-78, Cruyff atuava nos
Estados Unidos. Primeiro, defendeu o Los Angeles Aztecs; depois, o Washington
Diplomats. Com pouco mais de 30 anos, entendia que a carreira estava chegando
ao fim, tanto que o movimento rumo à América se deu após um breve período de
aposentadoria. A bem da verdade, o retorno foi profundamente motivado por
problemas financeiros que o holandês vinha experimentando, depois de perder
uma fortuna em investimentos ruins.
Em 1981, andava cansado dos gramados sintéticos e da atmosfera do futebol
ianque. Buscava um novo desafio e quase foi parar no Leicester City, embora
Arsenal e Chelsea também desejassem contar com seus serviços. A Inglaterra não
foi o destino.
The Times - 26 de fevereiro de 1981
As esperanças do Leicester City de obter o célebre internacional holandês Johan Cruyff desapareceram na noite passada da mesma forma que as aspirações de potenciais contratações no mercado interno e no exterior. Cruyff tinha que dar sua resposta ao técnico do Leicester, Jock Wallace, mas anunciou em rádio que assinou contrato para jogar por um time espanhol, o Levante.A oferta do Leicester era de £5.000 por partida até o final da temporada [...] A oferta do Levante era pagar a ele metade de suas receitas de jogos em casa, mas no início da temporada Cruyff disse que não iria regressar à Espanha devido a problemas fiscais.O diretor do Leicester, Alan Bennett, embora expressasse confiança de que Cruyff se juntaria a eles, deixou claro que não queriam que ele participasse de jogos amistosos ou de homenagens na Holanda. Esta pode ter sido a raiz do problema. Cruyff, de 33 anos, está obviamente interessado em lucrar no ocaso de sua carreira. No entanto, provavelmente levou a sério a oferta do Leicester porque sabia que se quisesse regressar à seleção holandesa, o que é uma ambição, teria de provar o seu valor e aptidão ao novo treinador, Kees Rijvers.
Reprodução: The Times |
Mundo Deportivo - 26 de fevereiro de 1981
Depois de flertar com o Leicester City, time da segunda divisão inglesa, Johan Cruyff finalmente decidiu assinar como jogador do Levante. Durante esta quarta-feira, o presidente do clube, o sr. [Francisco] Aznar, esteve em Barcelona discutindo com o advogado que trata dos contratos do jogador a possibilidade de relançar a operação. Ele conversou com Cruyff em sua casa nos arredores de Amsterdã. O jogador disse sim à nova oferta do Levante, confirmando que na sexta-feira chegará a Valência, com a possibilidade de estrear no domingo no Levante-Palencia, que será disputado no campo azulgrana, pela segunda divisão. Parece que a enorme dúvida sobre o futuro está esclarecida. Parece. Porque face aos últimos acontecimentos, ninguém se atreve a tocar a campainha mais cedo.
Nada feito para os ingleses. Quando as notícias pipocaram, faltavam 13 rodadas
para disputar na divisão de acesso da Espanha. A campanha do Levante era
sólida, considerando o equilíbrio que se verificava no certame. Em 25
partidas, os valencianos acumulavam 11 vitórias, 6 empates e 8 derrotas.
Estavam em quinto lugar. Esperava-se que Cruyff fosse o complemento para que o
time retornasse à elite do futebol hispânico.
É verdade que foi um último ato desesperado. O Levante precisava retornar à
primeira divisão para diminuir os efeitos de uma crise financeira que, logo
logo, teria consequências dramáticas.
Mundo Deportivo - 1º de março de 1981
CRUYFF ESTREIA HOJEAté altas horas da noite de ontem, o Levante lutava para ter a regularização do jogador holandês completa e poder alinhá-lo esta tarde contra o Palencia. No final, a Federação deu luz verde e Cruyff estreia-se pela equipa valenciana, que tem conseguido demonstrar que cumpriu todos os compromissos financeiros que tinha pendentes.[...]É preciso ter em conta que as dívidas que o Levante ainda tem (as que deve quitar com urgência chegam aos quinze milhões) paralisaram a tramitação do processo. As fontes consultadas indicaram que um cheque foi recebido na Federação, mas ainda faltava a confirmação do banco. E os dirigentes valencianos estiveram envolvidos nestes esforços ao longo da tarde, na sua tentativa febril de obter a luz verde que, sem dúvida, lhes proporcionará uma suculenta bilheteira amanhã à tarde no jogo Levante-Palencia.
Arquivo: Mundo Deportivo |
Levante 1, Palencia 1. Este foi o placar sem graça de um dos dias mais
esperados pelo torcedor azulgrana em todos os tempos. Pelo menos a questão da
bilheteria funcionou.
Mundo Deportivo - 2 de março de 1981
Terreno de jogo em bom estado, ambiente inusitado nas arquibancadas para ver a esperada e polêmica contratação do holandês Cruyff. Foi ele quem proporcionou o registro da maior bilheteria do Levante em toda a temporada com uma arrecadação de cinco milhões e meio de pesetas. O encontro foi registrado em vídeo para transmissão de algumas fases na televisão.
El País - 2 de março de 1981
O jogo Levante-Palencia limitou-se a girar em torno da presença de Cruyff, embora em campo o holandês tenha atuado [...] em zona confortável, dando ordens aos companheiros, e, sim, cobrando vários lançamentos laterais. As notas positivas foram três passes lindamente elaborados que não encontraram finalizador.
Mundo Deportivo - 4 de março de 1981
Após a contratação de Cruyff e o reaparecimento do famoso holandês no futebol espanhol ontem, segunda-feira, surgiram notícias nas rádios da capital espanhola de que a contratação do craque holandês seria impugnada pela AFE e pela Federação Espanhola de Futebol, porque as dívidas que o Levante pagou em vez de 15 milhões de pesetas ascendiam na verdade a 25. Esta é a notícia que ouvimos da estação da capital espanhola.
The Washington Post - 4 de março de 1981
Na Espanha – cuidado, Johan Cruyff – o artilheiro da temporada de futebol da Liga Espanhola, Enrique Castro, popularmente conhecido como Quini, foi sequestrado [...] culpados desconhecidos, rumores de pedido de resgate.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
O retorno de Cruyff à Espanha era um evento midiático, acima de qualquer outra coisa. Se o presidente Francisco Aznar queria que se colocasse holofotes no Levante, ele conseguiu. Com a contratação do astro holandês, o futebol, paradoxalmente, ficou em terceiro plano. Em primeiro estava Cruyff; em segundo as dívidas da equipe. Os credores não evitam questionar: como um time à bancarrota contrata um dos maiores de sempre? Como lhe oferece parte das receitas de bilheteria e não o faz conosco?
No primeiro jogo de Cruyff longe do estádio Ciutat de València, não se
sentiram efeitos positivos de sua contratação. Resultado: Granada 1, Levante
0. O acesso ia ficando distante.
Mundo Deportivo - 9 de março de 1981
A PRIMEIRA DERROTA DO LEVANTE DE CRUYFFA presença de Cruyff nas fileiras do Levante trouxe a Los Carmenes um grande público e, sem sequer registar lotação máxima, o jogo de hoje foi sem dúvida a melhor bilheteria da temporada. O Granada venceu por um gol a zero.
Faltavam 11 jogos para o final da temporada e o Levante começava a cair pelas tabelas. Seria possível que o quadro azulgrana não conseguiria uma mísera vitória com Cruyff em seu elenco? Não. Finalmente, o time conseguiu passar uma semana longe de polêmicas e aparecendo pouco nos principais jornais do país. Os valencianos venceram o Barakaldo, 1 a 0, mas nem tudo foram flores.
Mundo Deportivo - 16 de março de 1981
Após o intervalo e devido a um pisão do seu marcador [...] Cruyff não pôde continuar, sendo substituído por Eulate. Cruyff, que foi transferido para um centro de atendimento, foi submetido a radiografias que permitiram acalmar seus sentimentos alarmantes.
Cruyff era um jogador de exibição. Não corria, queria fazer o jogo correr. Se
recebesse a bola, o Levante construía jogadas. Foi o suficiente para voltar a
ser convocado para a seleção holandesa. Ele foi chamado em 20 de março,
contudo estava em disputa com a Federação Holandesa. Queria vestir Puma, mas a
Oranje exibia as três listras da Adidas. Nada feito. Não jogou no amistoso
contra a França.
Na 29ª rodada, o Levante voltou a perder. Desta vez, para o Alavés: 1 a 0.
Johan não jogou. Chegou a viajar a Vitoria-Gasteiz, mas retornou a Valência depois de,
supostamente, receber um telefonema de sua esposa, que teria tido uma
emergência médica. Nos bastidores, disse-se que o Levante exigiu receber
metade da bilheteria. Sem trato, Cruyff refez as malas e voltou para casa.
As chances de o Levante voltar à primeira divisão iam decaindo. O técnico
Pachín foi trocado por Rifé, velho conhecido de Cruyff dos tempos de
Barcelona. Na estreia, mais um soco no estômago do torcedor: Málaga 4 a 2, em
pleno Ciutat de València. Passado um mês de clube, Cruyff tinha quatro jogos,
apenas uma vitória e nenhum gol.
Mundo Deportivo - 6 de abril de 1981
NÃO HÁ CRUYFF QUE O “LEVANTE”O Cádiz ficou descaradamente atrás, renunciando completamente ao ataque e o Levante lhe deu toda sorte de facilidades, aglomerando homens no meio do campo sem fazer penetrações [...] Ao menos em relação ao jogo, porque em suas clássicas reclamações prosperou muito, a atração Cruyff decepcionou.
Arquivo: Mundo Deportivo |
Na Andaluzia, o Levante caiu também diante do Cádiz: 2 a 0. A cada semana, os
jornais citavam menos o nome do holandês. Em algum momento, ele teria que
jogar um futebol melhor. Aconteceu contra o Oviedo.
Mundo Deportivo - 12 de abril de 1981
FESTIVAL SOLITÁRIO DE CRUYFFRifé já tinha anunciado na véspera: “Cruyff vai jogar amanhã e tentar marcar um gol. Ele está ciente da situação em que a equipe se encontra e me garantiu que amanhã tentará marcar algum tento”. Assim aconteceu. Cruyff jogou, lutou, e, o que é mais importante, não desistiu apesar do resultado contra ele e apesar de seu futebol estar longe, mas a muitos anos-luz de distância, do que seus outros colegas podem desenvolver.
O holandês fez não um, mas dois gols. E, ainda assim, o Levante ficou apenas
no empate, diante de um público fraco. Faltavam seis jogos e, naquela altura,
só um milagre poderia reconduzir os azulgranas à elite.
Mundo Deportivo - 20 de abril de 1981
O Levante, por sua parte, se apresentou com Cruyff em suas fileiras. O holandês deu ordens aos seus companheiros, os instruiu, deu broncas, cobrou todas as faltas, os escanteios e laterais e, de vez em quando, com a bola dominada, driblava três ou quatro adversários para ganhar os aplausos do público. Hoje esteve voluntarioso, mas sua atitude protagonista coloca o trabalho de seus companheiros em segundo plano.
O ânimo de Cruyff não foi suficiente para fazer o Levante vencer o Rayo
Vallecano e o empate por 0 a 0 marcou mais um dia decepcionante. Tic-tac,
tic-tac, batia o relógio. Faltava apenas um jogo de segunda divisão para o mês
de abril terminar. Enfim, os homens de Valência venceram. Por 3 a 2, superaram
o Atlético Madrileño, equipe B do quadro colchonero. Um dos gols da partida
surgiu de um escanteio cobrado pelo holandês.
Estava o Levante no imperativo? Alto lá, na Copa do Rei, o Sporting Gijón
reafirmou sua condição de substantivo próprio. Entre as duas derrotas e
consequente eliminação copeira, contudo, o Azulgrana surpreendeu o líder.
Mundo Deportivo - 4 de maio de 1981
No primeiro tempo, maior domínio da equipe azulgrana e algum nervosismo na defesa do Castellón, onde [Javier] Ibeas nunca conseguiu segurar bem Cruyff. No segundo tempo, a decoração mudou quase completamente, o dominador passou a ser dominado, mas com um domínio infrutífero.
O triunfo não melhorou a posição do Levante na tabela. Os valencianos seguiam
em oitavo lugar. Restavam três rodadas apenas. Cruyff marcou presença apenas
nas arquibancadas diante do Linares, que lutava contra o rebaixamento. Sem o
holandês, os homens de azul e grená voltaram ao habitual: perderam por 3 a 1.
Mundo Deportivo - 14 de maio de 1981
CRUYFF NÃO CONTINUARÁ NO LEVANTEJohan Cruyff ainda não decidiu se continuará ou não na próxima temporada no Levante. No contrato que o holandês assinou há poucos meses com a entidade azulgrana havia uma cláusula que especificava que Cruyff continuaria na próxima temporada no Levante caso o clube fosse promovido, algo que, como visto, é impossível [...] em contato com o presidente do clube, sr. Aznar, ele disse-nos: “Ainda não está nada decidido. Oportunamente estudaremos o tema e conversaremos. Ele — refere-se ao holandês — ainda não decidiu se mudar, embora pareça estar muito confortável na Espanha e em Valência”.
Arquivo: Mundo Deportivo |
Na penúltima rodada, gentilmente, o Levante deu a mão para o Recreativo
Huelva, quase rebaixado, e ofereceu-lhe um triunfo por 2 a 0. Cruyff só foi
visto reclamando e recebendo um cartão amarelo, no que foi sua despedida do
estádio Ciutat de València.
El País - 24 de maio de 1981
Há um clima de indignação do Rayo Vallecano devido à ausência voluntária do holandês Cruyff com a sua equipa, o Levante, em Santander, jogo que pode ser decisivo para evitar a promoção do Rayo. Cruyff preferiu jogar na homenagem a Asensi [Juan Manuel, ex-companheiro]. O Levante terá mais baixas em Santander, uma semana depois do polémico resultado do jogo com o Huelva, sobre o qual há investigação aberta.
O Levante perdeu por 1 a 0 e o Racing Santander subiu. Cruyff sofreu uma lesão
no amistoso.
Mundo Deportivo - 27 de maio de 1981
A lesão de Johan Cruyff e a subsequente operação em Barcelona causaram descontentamento em Valência. Toda a imprensa da cidade criticou o jogador holandês e, por outro lado, a própria diretoria do Levante reclamou que só soube da operação cirúrgica através da mídia. O motivo do desconforto é que o Levante tinha uma série de amistosos marcados que agora não podem ser realizados porque havia a condição “sine qua non” de que Cruyff teria de participar.
Menos de 10 dias depois da polêmica, o Levante já era coisa do passado para
Cruyff.
Mundo Deportivo - 5 de junho de 1981
O holandês Johan Cruyff se ofereceu ao Milan para ser o estrangeiro da equipe durante a próxima temporada, em que este clube retornará à primeira divisão.
A passagem pelo Milan não chegou a ser confirmada oficialmente, apenas em um
torneio amistoso, mas a carreira de Cruyff prosseguiu.
Mundo Deportivo - 20 de junho de 1981
CRUYFF VOLTA AO WASHINGTON DIPLOMATSO contrato do internacional holandês com o Diplomats, que joga na Liga Norte-Americana, terá a duração de três meses. O porta-voz não quis revelar o salário que o jogador receberá neste período, mas declarou que ele fará sua primeira partida no dia 1º de julho, quando o Diplomats enfrenta o San Diego.
Arquivo: Mundo Deportivo |
Cerca de quatro meses depois de sua chegada a Valência, como veio, Cruyff se
foi. Fez 10 jogos, marcou dois gols, não conseguiu o acesso — a bem da verdade
o Levante perdeu força após a contratação do astro. Algum dinheiro de
bilheteria foi arrecadado, mas o sucesso imaginado pelo presidente Aznar não
veio. Houve suspeitas de que a equipe se vendeu nas rodadas finais e, por
alegadas razões médicas, o mandatário pediu o boné e também deixou o comando
do clube naquele tumultuado mês de junho.
Em 1981-82, o time caiu para a
terceira divisão.
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