Em 2002, o polêmico fim de jejum do América do México

No México, a popularidade do futebol é indiscutível. As provas são muitas e vêm de todos os cantos. A final do Mundial de 1970, por exemplo, contou com a presença de 107.412 espectadores. 16 anos depois, o número seria superior, batendo os 114 mil. No campo dos clubes, estima-se que o América tenha mais de 30 milhões de torcedores, disputando com o Chivas o lugar de time mais amado do país. Tamanha paixão não permite que um jejum de 13 anos sem títulos nacionais transcorra sem desconforto.

Iván Zamorano América 2002
Foto: David Leah/Mexsport / Arte: O Futebólogo


1990: A década perdida


O América encerrou os anos 1980 em bom tom. Era a temporada 1988-89 e, com ótimas referências ofensivas — notadamente, Carlos Hermosillo e Zague —, as Águilas davam alegrias ao seu torcedor. Pela quinta vez na década, o gigante da Cidade do México triunfava no Campeonato Mexicano. De longe, era o mais bem-sucedido do país. Como comparativo, o maior rival azulcrema, o Chivas, conquistara apenas uma edição do nacional no decênio. A disparidade era flagrante.

Nada acontecia ao acaso. A partir de 1959, o América passara a ser propriedade da Televisa, gigantesco conglomerado de mídia do país. No Brasil, a empresa seria recordada por telenovelas como A Usurpadora. Seja como for, o clube capitalino tinha o que precisava para alcançar sucesso: a estrutura de um estádio enorme como o Azteca, uma massa associativa capaz de preencher a imensidão da construção, e recursos para manter um elenco competitivo. Além disso, estar em uma urbe como a Cidade do México facilitava a contratação de bons jogadores.

A vinda dos anos 1990 sugeria a manutenção da dominância do América, após o que ficaria conhecido como a Década Dourada. Mas a equipe se sentou nessa precária impressão. Destaques envelheceram, enquanto outros buscaram novos desafios; algumas reposições não corresponderam e o extracampo, por vezes, pesou. A força da queda seria tanta que apenas uma vez as Águilas terminariam com o vice-campeonato — em 1990-91.

Nacionalmente, o período seria recordado pelo equilíbrio. Puebla, Pumas, León, Atlante, Tecos, Necaxa, Santos Laguna, Chivas, Cruz Azul, Toluca, Pachuca e Morelia venceriam o Campeonato Mexicano. Vale ressalvar que, a partir de 1996, passaram a ser jogados torneios de inverno e verão. Eram dois campeões por ano.


A situação do América era ainda mais esquisita tendo em vista os triunfos do Necaxa, liderado pelo talento do equatoriano Álex Aguinaga. Isso porque, desde 1988, o clube de Aguascalientes também era propriedade da Televisa, ainda que não fosse seu carro-chefe.

A vida americana só não era pior porque, tanto em 1990 quanto em 92, o time conquistou a Copa dos Campeões da Concacaf, logrando, ainda, a Copa Interamericana de 1991 — superando o Olimpia, campeão da última Copa Libertadores.

O time tinha dinheiro, indubitavelmente. Em 1992, buscara ninguém menos do que Hugo Sánchez, no Real Madrid. Dois anos depois, traria o treinador Leo Beenhakker, ex- Ajax e Real. Na altura, contrataria ainda o atacante camaronês François Omam-Biyik, uma das referências dos Leões Indomáveis na Copa do Mundo dos EUA. Outro jogador internacional a desembarcar na Cidade do México seria o zambiano Kalusha Bwalya, ex-PSV Eindhoven. E isso é uma pequena amostra.

Leo Beenhakker América
Foto: 90 min/Arte: O Futebólogo

Paralelamente, as categorias de base do clube produziram talentos em profusão, como o habilidosíssimo Cuauhtémoc Blanco, o volante German Villa e o atacante Christian Patiño. Era difícil entender o que impedia o América de alcançar sucesso esportivo. Por trás do que acontecia nos campos, não ficavam claros os problemas.

Sob as ordens de Beenhakker, por exemplo, o quadro azulcrema exibiria futebol de altíssimo nível e, mesmo assim, sem justificativas convincentes, ele seria demitido antes do fim da temporada. Supostamente, a diretoria queria interferir nas escalações do neerlandês.

Um treinador e artilheiros veteranos


Com o peso dos sucessivos fracassos, o América entrou no novo milênio. “O América tem cerca de 28 milhões de mexicanos entre o México e os Estados Unidos, essa era a pressão, mais a da Televisa, o que era muito difícil. Toda semana eles avaliavam o meu trabalho”, relataria o presidente Javier Pérez Teuffer, ao portal Mediotiempo. Outra ameaça imposta ao clube vinha do fato de que o Chivas assumira a liderança no número de títulos nacionais.

O mandatário eleito em 1999 encontraria um time relaxado. O início do fim do jejum se daria pelas mãos do treinador Alfredo Tena. “Ele ajudou muito na questão da disciplina e depois ajustamos algumas peças, com jogadores da base para dar outra dinâmica à equipe”. A reestruturação funcionava, mas os resultados seguiam escassos. O melhor que Tena conseguiria seria a semifinal do Torneio de Inverno de 1999.

No entanto, com ele na casamata, os Millonetas fariam bons negócios. O melhor exemplo seria a contratação do meio-campista Pavel Pardo. Aos 23 anos, vinha do Tecos, tendo se formado no Atlas, onde passou pelas mãos de Marcelo Bielsa. O lateral José Antonio Castro seria promovido aos profissionais. Estrangeiros, como o zagueiro chileno Ricardo Rojas, e veteranos seguros, como o goleiro Adolfo Ríos, também chegariam.

Pavel Pardo América
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Em meados de 2000, Tena cairia. Destacadamente, o mexicano ainda conduziria os capitalinos às semifinais da Copa Libertadores de 2000. O confronto com o Boca Juniors, de Carlos Bianchi, terminaria com um placar agregado de 5 a 4 para os Bosteros. Um gol poderia ter mudado bastante os rumos do clube.

As Águilas voltariam a apostar em um estrangeiro. A bola da vez era Alfio Basile. O fim do jejum se aproximava, mas o argentino teria que se contentar com a conquista da Copa de Gigantes da Concacaf. Era pouco para as pretensões do presidente e as ambições da Televisa.

No início de 2002, Manuel Lapuente se tornaria o terceiro treinador da gestão de Teuffer. Era a primeira vez que assumia a crema, mas no currículo trazia quatro conquistas nacionais, distribuídas entre Puebla e Necaxa. Além dele, o torcedor do América passaria a apostar muitas fichas no atacante argentino Hugo Castillo e no retorno do veterano Luis Hernández. Claro, não se pode olvidar: fazia seis meses que outro estrangeiro abrilhantava o ataque do América, o chileno Iván Zamorano.


Curiosamente, o Torneio de Inverno de 2001 consagraria o Pachuca. Treinado por quem? Alfredo Tena.

Campanha fraca


Os primeiros meses da gestão de Lapuente não seriam animadores. Em 6 de janeiro de 2002, o América estreou no Torneio de Verão, justamente contra o último campeão, Pachuca. A derrota seria doída, 3 a 2 e de virada. As Águilas haviam saído na frente, com José Mendoza e Castillo.

A resposta viria rapidamente, com vitórias ante o Tigres e o Tiburones Rojos, mas o time viveria instabilidade, um verdadeiro perde e ganha. Revés ante o Atlas, triunfo frente ao La Piedad; derrota para o Cruz Azul, empate com o Pumas e vitória perante o León. O campeonato inteiro seria levado assim.

O torneio era disputado em turno único, em que todos se enfrentavam. Os melhores avançavam aos playoffs. O América chegaria à última rodada precisando vencer o Puebla, fora de casa. Perder significava ficar fora dos mata-matas e o clube não podia sequer cogitar essa hipótese. A classificação viria, mas com muito mais emoção do que a desejada. Aos 44 minutos do segundo tempo, o placar sinalizava empate por 1 a 1. Nos finalmentes, Patiño marcaria o tento definidor: 2 a 1.


“Estávamos a ponto de não nos classificarmos, entramos na Liguilla em oitavo e tínhamos o La Piedad, que era um time que jogava bem”, diria Teuffer, ao Mediotiempo. O América, enfim, acordou. Venceu as duas partidas da eliminatória, ambas por 3 a 1. “Isso motivou muito os torcedores e atletas”, acrescentaria o presidente.

Na altura, o azulcrema tinha que gerir outra questão complexa. O planeta se via às vésperas da Copa do Mundo, a ser jogada em Japão e Coreia do Sul. Villa e Hernández tinham sido convocados pelo treinador Javier Aguirre e representariam o México. Portanto, estavam concentrados com El Tri, na hora das decisões mais agudas. Mesmo assim, o time superou o Pumas, nas semis. Em casa, prevaleceria a igualdade sem gols. Fora, mais uma vez, Patiño decidiria, em uma vitória por 2 a 1.

Do outro lado da chave, depois de passar por Toluca e Santos Laguna, o Necaxa despontava como o outro finalista. A ocasião não era estranha apenas por opor duas equipes que possuíam o mesmo proprietário. Mas também porque, no comando do ataque, os Rayos tinham um eterno ídolo capitalino. O maior artilheiro da história das Águilas, com 190 gols, Zague tinha 34 anos e agora era rival.

Zague Necaxa
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Polêmica


“Estávamos em um espaço que abriram para nós lá na Coreia”, diria Hernández, que sofria à distância, ao Record. Os dois jogos da decisão seriam disputados em Coapa, no Azteca. O Necaxa ainda não inaugurara o Estádio Victoria. Evidentemente, isso gerava uma vantagem para o América, alimentando, desde o princípio, teorias conspiratórias, no sentido de que a Televisa interferia para que o título ficasse na Cidade do México.

Apesar disso, o primeiro jogo colocou interrogações nessas teses. “Ficávamos fora dessas situações, era algo que tinha a ver com a mídia [...] aquela final maravilhosa nos deu a oportunidade de devolver o América ao lugar que o América merece”, relatou Zamorano à infoBae.

Com 12 minutos da etapa inicial, Víctor Ruiz cobrou, magistralmente, uma falta. O goleiro Adolfo Ríos nem se mexeu. Ainda no primeiro tempo, depois de receber um passe por elevação, Zague daria o golpe de misericórdia, com um chute cruzado, de perna canhota: 2 a 0. Se o Necaxa ia entregar a decisão, escolhera uma forma bem estranha de demonstrar suas intenções. Ainda naquele primeiro jogo, os dois times teriam chances de movimentar o marcador, mas não aconteceria.


Três dias depois, num domingo, o América teria uma missão dura para quebrar seu jejum. Era um jogo aberto e nervoso. O primeiro tempo acabaria sem gols. Ríos ia salvando as Águilas repetidas vezes. Em mais de uma oportunidade, os jogadores do grupo de Aguascalientes pediriam pênalti. Nada a marcar, diria o árbitro Armando Archundia Téllez.

Enfim, decorridos 14 minutos da etapa final, Patiño completaria um cruzamento da direita. Era o 1 a 0. Três minutos depois, Zamorano, que vinha do banco e envergava a braçadeira de capitão, fuzilaria Nicolás Navarro, de canhota: 2 a 0.

Com a prorrogação assegurada, os times se arriscaram menos. Do lado alvirrubro fazia todo o sentido, especialmente após a justa expulsão de Luís Ernesto Pérez, que entrou duríssimo em Rojas. A questão é que não era uma prorrogação convencional, mas gol de ouro. Marcar significava vencer e o Necaxa colocou as manguinhas de fora. No entanto, seria Zamorano quem balançaria as redes após um corner. Anulado. Era um ensaio.

“Aquele gol de ouro e aquele campeonato me marcaram de forma importante porque foi quebrada uma seca de 13 anos. É uma boa memória. O momento foi espetacular e indescritível pelo que significava, pela quantidade de gente que estava ali e porque era agonizante e a adrenalina transbordava”, afirmaria Castillo ao Mediotiempo.


O atacante argentino completaria um segundo escanteio, para o fundo das redes. 3 a 0 e fim de papo. Jejum bom é jejum morto, certamente pensou algum torcedor aliviado. “Assistimos ao jogo com confiança naquele dia e gostamos. Apesar de começarmos em desvantagem, depois veio a reviravolta, os gols, o do Iván e depois o do Misionero, e as grandes defesas do Adolfo”, acrescentaria Hernández. Mesmo de longe, ele também era campeão, afinal.

A espera acabara. Os murmurinhos, não. Os anos passariam e a polêmica não cessaria. Teria o Necaxa entregado? Haveria um acordo entre clubes irmãos? 

“Vocês não se lembram como [o treinador] Raúl Arias e os jogadores do Necaxa saíram quando os vencemos naquela final no Estádio Azteca?, diria, seco, o treinador Manuel Lapuente, ao El Universal.

Assistindo ao encontro, é muito difícil dar razão às teorias de combinado prévio. A emoção foi intensa, com os times se expondo e os goleiros participando decisivamente. Se houve armação, os envolvidos merecem algum reconhecimento. Controlar todas as variáveis de um jogo como esse não era missão para amadores. Dali em diante, o América não se tornaria hegemônico, mas não voltaria a viver tamanha sangria.

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