Quando um gol afastou o Malmö da glória europeia

O acesso ao panteão dos vencedores da Copa dos Campeões é exclusivo. Considerando a extensão territorial da Europa, a chegada de representantes de apenas 10 países evidencia tal realidade, em mais de 60 anos de competição. Há regiões inteiras que apenas sonham com tamanha glória. Entre elas, a Escandinávia. Somente uma de suas equipes desafiou a história. E perdeu. Em 1978-79, o Malmö buscou o passe para a Suécia. Com técnicas inglesas, é verdade.

Malmö 1978-79
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Na missão, Bob Houghton


O futebol deve sua história aos ingleses. Embora haja referências antiquíssimas à prática de atividades lúdicas com bola e o uso dos pés nas mais diversas partes do mundo, os livros registram a institucionalização do esporte apenas em 1863. Sua propagação, por meio de viagens marítimas, também contaria com méritos britânicos. No entanto, há lugares em que a influência inglesa foi muito além da criação das regras ou da difusão da prática. É o caso da Suécia, que também usufruiu da transmissão do saber.

O desenvolvimento do futebol nos países da Escandinávia foi dos mais retardados. Enquanto a Inglaterra profissionalizou o esporte em 1885, Espanha e Itália em 1926, a Argentina em 31, ou a França em 32, os suecos somente deram semelhante passo em 67. A despeito disso, a seleção já registrava marcas expressivas — notadamente o terceiro lugar na Copa do Mundo de 1950 e o vice-campeonato, oito anos mais tarde.

Nas duas ocasiões, o treinador sueco era inglês: George Raynor, indicado por Stanley Rous, então secretário da FA inglesa e, mais tarde, presidente da FIFA. O comandante, um tanto incógnito na época da contratação e alguém em quem pouco se confiava no início do trabalho, seria o responsável por moldar uma geração de grandes jogadores, liderada por nomes como Nils Liedholm e Gunnar Nordahl.

A continuidade da influência britânica na Suécia se verificaria já sob os auspícios do profissionalismo e no nível do futebol de clubes. Bob Houghton fora um meio-campista sem distinção na cena inglesa, mesmo atuando por clubes como Fulham e Brighton. Ainda jovem, dedicou-se ao curso de treinamentos oferecido pela FA e conduzido por Allen Wade. Com as melhores notas daquele estágio, Bob seria escolhido para dirigir o Malmö, em 1974.

Bob Houghton Malmö
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Não era o caminho mais ortodoxo para um inglês. Mas o plano deu certo. Os Blåe trilhavam uma nova trajetória na altura. Aos 76 anos, 37 deles dedicados à presidência do clube, Eric Persson passara o bastão para Hans Cavalli-Björkman, um famoso banqueiro sueco que via o futebol local profundamente atrasado. Já nos dois primeiros anos de clube, Houghton conduziu o Malmö ao bicampeonato sueco. Como Raynor no passado, ele transformou, rapidamente, as suspeitas em adoração.

Influenciados pelo futebol alemão, apostando frequentemente na escalação de um líbero e em marcações ao homem, os rivais do Malmö tiveram dificuldades para combater uma equipe que optava pelo esquema tático 4-4-2, com marcação zonal, pressão constante e linha de impedimento alta. Quem melhor explica o que se viu é Roy Hodgson, amigo pessoal de Houghton, antigo colega de classe, e indicado por ele para assumir o Halmstads, em 1976.

“Mais do que um ‘futebol inglês’, com bolas longas etc., o que Bob e eu introduzimos na Suécia foi um estilo diferente na defesa. Em vez de jogar com um time bem espalhado pelo campo, um líbero parado na própria área e um centroavante que nunca volta, nós armamos um sistema de defesa por zona, com quatro atrás, jogadores que avançavam e, claro, assim fazíamos a bola chegar à área adversária muito mais rápido”, registrou o jornalista Jonathan Wilson, em A Pirâmide Invertida.

O Malmö era o campeão de 1977


Depois de Hodgson estrear no futebol sueco com o título nacional, a exemplo do que ocorrera com Houghton, o Malmö recuperou a coroa em 1977. A conquista classificou a equipe para a Copa dos Campeões da Europa. Porém, não para a edição de 1977-78. Em decorrência das condições climáticas típicas da Suécia, o campeonato local não acompanha o calendário da maior parte dos países europeus e da competição continental.

Na península escandinava, o frio extremo obriga as atividades futebolísticas a se iniciarem em abril, quando a neve, surgida em novembro, começa a desaparecer — portanto, na parte final da temporada regular europeia. O campeonato se prolonga por todo o ano. Em 1977, começou com vitória azul em casa, diante do BK Derby. Era 17 de abril. O fim ocorreu em 16 de outubro, com novo triunfo, na visita ao Elfsborg. O título foi inapelável.

Em 26 partidas, o Malmö venceu 15, empatou oito e perdeu apenas três, para Sundsvall, Halmstads e AIK (estes dois últimos resultados quando já era campeão). Anotou 41 tentos, concedendo míseros 19, no que foi de longe o melhor desempenho defensivo da liga. Em um período em que a vitória concedia dois pontos ao triunfante, os sete que os Blåe impuseram ao segundo colocado foram, por si só, demonstração de força.

Bayern Malmö 1975
Foto: Bayern/Arte: O Futebólogo

A volta à Copa dos Campeões só aconteceria dali a um ano, em setembro de 1978. Seria a oitava participação do Malmö. Até então, o melhor resultado ocorrera em 1975-76, a única vez em que os representantes da região da Gotalândia superaram a primeira fase. Na ocasião, bateram o Magdeburg, da Alemanha Oriental, nas penalidades máximas. Contudo, logo cairiam perante o futuro campeão, o Bayern de Munique.

O mais distante que um time sueco caminhara fora alcançado por três equipes, em momentos diferentes e diante de formatos distintos da competição. O Djurgårdens avançara às quartas de finais da edição inaugural, em 1955-56, assim como o IFK Malmö, em 1960-61, e o Åtvidabergs, em 1974-75. O primeiro caíra perante os escoceses do Hibernian, o segundo diante dos austríacos do Rapid Viena, e o terceiro ante o Barcelona. Não havia grandes expectativas quanto às participações suecas em solo continental.

Com vocês, a bola parada


A volta do Malmö aos palcos europeus começou em casa, contra o Monaco. Liderado por Lucien Leduc, o representante da França apostava suas fichas nos gols do ítalo-argentino Delio Onnis e nas defesas do arqueiro Jean-Luc Ettori. Se o primeiro viria a ser o maior artilheiro da história monegasca, com 223 gols, o segundo seria quem mais defendeu o clube, com 775 aparições. Na Suécia, prevaleceu a igualdade: 0 a 0.

O tom da eliminatória estava dado. Seriam os detalhes os responsáveis por decidi-la. O Monaco apertou os escandinavos. Repetidas vezes, parou no goleiro Jan Möller e acabou caindo em situações de impedimento. Também foi freado pela trave. Por outro lado, depois de uma cobrança de falta longa, uma cabeçada sueca escapou do alcance de Ettori (de 1,73m), bateu no travessão e sobrou limpa para a conclusão de Jan-Olov Kindvall. Era o único gol da disputa.


O desafio seguinte era mais exigente. Valeriy Lobanovskyi estava na casamata adversária, com sua abordagem moderna do jogo, que inspiraria gerações de treinadores. Na defesa, havia Sergei Baltacha; e, no ataque, o lendário Oleg Blokhin. Aqueles eram os campeões soviéticos do Dínamo de Kiev. Na partida de ida, na URSS, novo empate sem gols. A conhecida pressão kievana encontrara páreo nas ideias de Houghton.


Na volta, a bola parada voltaria a ser o fiel da balança. O primeiro gol sueco surgiu de uma falta de longa distância alçada na área soviética. O goleiro Viktor Yurkovskiy saiu mal do gol, originando um bate e rebate em sua área que resultaria em tento de Tore Cervin. O segundo gol viria de uma cobrança de escanteio e de outra bagunça na área do Dínamo. Com o 2 a 0, o Malmö chegava às quartas de finais pela primeira vez.

Contra um time que emplacou quatro jogadores na seleção polonesa que disputou a Copa do Mundo de 1978, o Malmö viveu seu momento mais agônico e seu êxtase mais libertador. Em Cracóvia, viu o Wisła abrir uma vantagem de 2 a 1, de virada. Como anfitrião, o time saiu em desvantagem. Estava tudo perdido, até Anders Ljungberg converter uma penalidade máxima, aos 65 minutos. O jogo virou. Outra vez, na bola parada.


Um gol de cabeça marcou a virada. Outro, após rebote do goleiro Stanisław Gonet em cobrança de falta, aproximou o Malmö do inédito avanço dos suecos às semifinais. Por fim, nova penalidade, também convertida por Ljungberg, devolveria os Blåe à vida. Com muita emoção.

Liderado pelo talento de Herbert Prohaska, o Áustria Viena, finalista da Recopa Europeia de 1977-78, entrava no caminho dos comandados de Houghton. Na capital austríaca, pela terceira vez na competição, as balizas permaneceram imaculadas, em mais um 0 a 0. Na volta, para a surpresa de quem quis ser surpreendido, bola alçada em cobrança de falta encontrou a cabeça de Tommy Hansson e, de lá, foi para o gol. Suficiente. O Malmö estava na final.


Em Munique, a busca pelo inédito


A final, marcada para o Estádio Olímpico de Munique, consagraria um novo vencedor. Depois de bater o favorito Liverpool, os gregos do AEK, os suíços do Grasshoppers, e os alemães do Colônia, o Nottingham Forest, treinado por Brian Clough, aguardava o Malmö. Seriam as ideias de um compatriota aquelas capazes de neutralizar o trabalho de Bob Houghton?

Duas temporadas antes, o Forest andava pela segunda divisão inglesa. O mais elevado palco do futebol europeu era, também para ele, novidade. Antes da decisão, o prestigiado Brian Glanville, considerado o decano dos escritores de futebol na Inglaterra, previa o que o confronto traria.

“Amanhã, 30 de maio, o Nottingham Forest atacará como um time jogando em casa: o sueco Malmö se defenderá tenazmente, como se estivesse jogando fora. Isso significa que o Forest, que corajosamente impôs o ritmo contra o Colônia na partida de volta da semifinal, terá muito menos espaço e tempo do que teve lá [...] o Malmö vai contra-atacar. Eles não são um time muito atraente, embora seu treinador inglês de 32 anos, Bob Houghton, tenha feito maravilhas [...] É um triunfo da mente sobre a matéria, uma equipe dedicada ao futebol defensivo e duro com contra-ataques rápidos”, publicou.

O que se viu não foi tão diferente dessa prévia. E o feitiço virou contra o feiticeiro. Depois de se livrar de dois marcadores, o ponta esquerda John Robertson foi à linha de fundo e cruzou. O atacante Trevor Francis, então o primeiro jogador a custar £1 milhão, se jogou de cabeça em direção à bola, nas costas da defesa sueca: 1 a 0. Era o fim do primeiro tempo, ou poderia ser o final do jogo, já que o Malmö não conseguiria acertar um chute contra a meta defendida por Peter Shilton.


Embora derrotado, o Malmö saía com a melhor campanha de um time escandinavo na história. Além disso, o ano seguinte reiteraria a dificuldade do desafio encontrado pelos Blåe, já que o Nottingham conquistaria o bicampeonato, superando o Hamburgo.

O Malmö até teria a chance de diminuir o sabor agridoce por fazer história mas não conquistar a Copa dos Campeões. O Forest abriria mão de enfrentar os paraguaios do Olímpia na luta pelo Mundial de Clubes, o último a ser disputado em partidas de ida e volta. Mas os suecos não fizeram o suficiente para aplacar o bom momento vivido pela equipe treinada por Luis Cubilla. Os guaranis venceram tanto na visita a Malmö, 1 a 0, quanto em seu território, 2 a 1.

Era a hora de Houghton partir para uma nova empreitada. Em 1980, assinou com os gregos do Ethnikos Piraeus. O substituto também seria inglês, Keith Blunt, mas o clube viveria uma época de entressafra. O caminho das vitórias seria retomado a partir de 1985, sob a batuta de mais um britânico. Era a hora de Roy Hodgson resgatar o trabalho de seu amigo e levar o Malmö aos títulos da Allsvenskan de 1985, 86, 87, 88 e 89, um recorde. Destaque na Copa dos Campeões, entretanto, seguiria sendo apenas um.

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