As ascensões do SSV Ulm e de Ralf Rangnick
Pouco após a Euro 2000, uma crise já notada se aprofundara na Alemanha. Desde a demolição mundialista sofrida para a Croácia dois anos antes, a semente de que o outrora vanguardista futebol germânico estava ultrapassado fora plantada. À Folha, o jornalista Rodrigo Bueno sugeria que tal adversidade indicava o fim da linha para o líbero, a derrocada da imagem da excelência alemã nas feições de Franz Beckenbauer. No entanto, observadores atentos já notavam reação a esse fenômeno dentro do próprio país. Um dos principais exemplos vinha do nanico SSV Ulm.
Crise na Alemanha
O surgimento de crises, usualmente, sinaliza a existência de um apogeu precedente. No caso do futebol alemão, os problemas evidenciados no apagar das luzes do Século XXI marcavam a queda de um modelo que se estabeleceu nos anos 1970, com vitórias da seleção, do Borussia Mönchengladbach e do Bayern de Munique. Os sinais adversos foram facilmente suplantados no período, marcado por dois títulos mundiais, em que Beckenbauer era, em um momento, jogador e, no outro, treinador.
Além disso, quando se é um de três países tricampeões da Copa do Mundo, a autoanálise pode demorar mais tempo para começar. As vitórias testemunham competência e know-how; desconstruir para reconstruir demanda o reconhecimento de que há algo errado ao redor de uma história marcada, muito mais fortemente, por acertos do que erros. Mas, em 2000, quando Rudi Völler assumiu a casamata germânica, estava claro que as ideias do passado só cabiam em um lugar: no próprio passado. “Deixo claro que muitas coisas vão mudar”.
A verdade é que, para a seleção, as mudanças demoraram a se materializar. Foi necessária uma transição geracional, em termos de atletas e treinadores, acrescida de alguns nomes de entressafra, como Phillip Lahm e Bastian Schweinsteiger.
A Alemanha até chegou às finais da Copa do Mundo de 2002, mas seguindo um modelo com três defensores, em que o central — Carsten Ramelow — tinha mais liberdades, e fazendo marcação individual. Na Euro 2004, último torneio em que a Mannschaft foi liderada por Völler, uma linha de quatro defensores já existia, mas à frente estavam os grandalhões Dieter Hamman e Frank Baumann, dois volantes bastante defensivos.
As modificações se intensificariam para o ciclo do Mundial de 2006, sob o comando de Jürgen Klinsmann; começariam a revolucionar, efetivamente, quatro anos depois, com seu antigo auxiliar, Joachim Löw. Na altura, porém, a Bundesliga já vinha se acostumando ao novo. Algumas mentes — da própria Alemanha, registre-se — já colocavam em prática conhecimentos adquiridos em outras fontes.
Embora não tenha se tornado o mais distinto, em termos de conquistas, Wolfgang Frank, apontam autores, terá sido o precursor das principais novidades. Mas não o único ícone.
Ralf Rangnick?
“O aprendiz mais proeminente de Frank [Jürgen Klopp], ao lado de outro suábio obcecado por táticas, Ralf Rangnick, foi quem conseguiu estabelecer o projeto visionário de marcação por zona [...] com uma linha de quatro defensores e marcação alta e por pressão, como a nova ortodoxia na Bundesliga a partir do final da década de 2000”, narra Raphael Honigstein, em Klopp. Na altura em que as boas novas chegaram à primeira divisão, já haviam sido testadas à exaustão nos escalões inferiores.
Como em parte das histórias de pioneirismo, por vezes, a autoria de uma novidade é entregue ao nebuloso terreno da especulação. Terá sido, efetivamente, Frank o maior responsável pelo surgimento do que ficaria conhecido como gegenpressing? Os torcedores do SSV Ulm podem ter uma opinião diferente. Ralf Rangnick, um dos nomes mais populares do futebol suábio, é comumente apontado como o genitor da mais profunda revolução tática vivida na Alemanha.
A carreira de atleta sem notoriedade é um mero detalhe biográfico da vida de Rangnick. Insignificante, como também acontece com figuras da estirpe de José Mourinho, Louis van Gaal, Arsène Wenger e do próprio Klopp — sem mencionar personalidades que sequer pisaram os gramados, como Arrigo Sacchi. O italiano, aliás, foi uma das fontes em que bebeu o jovem Ralf. Como também foi o trabalho de Valeriy Lobanovskiy, sobretudo no Dinamo de Kiev, e o de Johan Cruyff. O alemão sabia o que queria. Durante a trajetória de jogador, estudou Educação Física e se educou como um crítico do esquema 3-5-2, na expressão praticada à época.
“Ficou claro para mim que eu não queria jogar aquele 3-5-2 com líbero e marcação homem-a-homem [...] eu achava que o futebol deveria ser mais proativo e complexo, tive que olhar para o exterior. Foi assim que descobri Valeriy Lobanovskiy e Arrigo Sacchi. Eles tiveram uma grande influência na minha ideia de pressão orientada para a bola e marcação zonal com uma linha de quatro [...] Até 1999-00 nós, alemães, éramos famosos por nossas virtudes alemãs (ser agressivo e comer grama), mas não por nossa estratégia”, comentou Rangnick, ao El País.
Com efeito, faz-se imperativo pontuar uma aparição do jovem Ralf no programa televisivo Das aktuelle Sport-Studio, em 1998. Na altura, o SSV Ulm já vinha chamando a atenção e o treinador surgia como uma espécie de guru: amado por progressistas e odiado por conservadores. Em rede nacional, o comandante explicava o que conferia vantagem ao seu time.
“Tentamos atrair o time adversário. Não queremos 'bloqueá-lo' no início. Por exemplo, se o jogador número 4 tem a bola, cabe ao jogador número 11 (nosso atacante que está mais próximo da bola) mover-se nesta direção. Ao mesmo tempo, o número 8 tem que ir em direção ao jogador que possui a bola também, mesmo que ele tenha que cobrir o jogador número 2 antes. Então criamos uma situação em que temos dois jogadores que podem atacar o adversário”.
Futebol jogando com as pernas, mas também com o cérebro. Como confirmaria Honigstein, em Das Reboot: “Rangnick pode nunca ter ganhado um título, mas ganhou a discussão”.
Acessos para o SSV Ulm
O jornalista Axel Torres e seu amigo, André Schön, autores de Gol da Alemanha, recuperam jornais que, no final dos anos 1990, proclamavam que na Suábia, o SSV Ulm jogava como o Brasil de 1970. Exageros comparativos à parte, a sensação provocada pela equipe, treinada justamente por Ralf Rangnick, sugeria-se exatamente essa. Havia algumas equipes e havia o Ulm, que, irresistivelmente, jogava outro futebol.
Quando o treinador retornou a Ulm, tendo tido uma passagem rápida como atleta nos anos 1980, o clube estava na terceira divisão germânica. E fazia tempo. A cidade não conhecia futebol de alto nível e somente um milagre poderia mudar a realidade. Ou um grande treinador. Chegar à primeira divisão parecia um objetivo, além de inédito, inalcançável e, efetivamente, os dias precisavam ser vividos um de cada vez. Não se acessaria a Bundesliga sem se conseguir, primeiro, a subida para a segunda divisão.
Em 1997-98, a Regionalliga era disputada em quatro zonas: norte, nordeste, sudoeste e sul. Lotado em Baden-Württemberg, o Ulm teria como principal desafiante o Offenbacher Kickers, ainda que também estivessem na disputa equipes como o Bayern II. A busca pela ofensividade ficou evidente com os 63 gols anotados, em 32 jogos, recorde do certame. Obscuro em seu país, o iugoslavo Dragan Trkulja foi o artilheiro da equipe com 19 gols, dois a menos do que o principal goleador, Dieter Eckstein, do Augsburg. Os 60 pontos alcançados foram suficientes para os Pardais conquistarem a zona sul e subirem à 2. Bundesliga.
Convém notar que, no elenco do Ulm, estava um zagueiro de nome Thomas Tuchel e que se aposentaria pouco após o final da campanha de acesso, com uma lesão na cartilagem do joelho. Tinha 24 anos e começava a se apropriar da bagagem de conhecimentos construída por Rangnick.
"Antes de tudo, ele foi meu treinador como jogador. Ele nos guiou, abriu nossos olhos. Na Alemanha, acreditávamos que os zagueiros correm atrás dos atacantes, não importa onde eles vão. Se eles vão ao banheiro, você segue [...] Ele nos mostrou que isso não é necessário; podemos defender em uma zona [...] Ele nos deu a oportunidade de subir para a segunda divisão e depois para a primeira divisão. Neste momento, realmente não acreditávamos que isso pudesse acontecer, ele nos mostrou o caminho”, disse Tuchel ao Sky Sports.
Com o perdão do spoiler, o Ulm conseguiu manter a boa forma no segundo escalão. O clube entrou em março de 1999, após a parada de inverno do futebol alemão, na liderança. No entanto, o cristal havia se rompido durante a citada suspensão do torneio. Conhecido na região e bem-sucedido no último ano e meio, Rangnick acertara com o Stuttgart, que seria sua casa a partir da temporada seguinte. Sentindo-se abandonados, os jogadores do Ulm perderam a forma.
Entre os dias 1º de março e 16 de abril, os Pardais jogaram seis partidas — duas derrotas e quatro empates. Quando retomaram o caminho das vitórias, o treinador já era outro e Arminia Bielefeld e Unterhaching haviam crescido na competição. Um esforço final acabaria sendo empreendido e, nos últimos nove jogos, o Ulm venceria cinco, empataria e perderia dois. Consolidando-se na terceira colocação, ascenderia à elite.
Festa de uma temporada na Suábia
Em 1999-00, os suábios tinham um lema, “viver um ano de festa”. Desde o início da temporada, a sensação era a de que, em que pese seu elevado estado de evolução tática, a qualidade técnica dos times da primeira divisão era extremamente superior. E, ao invés de baixo astral, o sentimento uniu a torcida ao redor da ideia de estar com o clube em um momento único. Para comandá-lo no final da segundona e, após, na elite, fora contratado Martin Andermatt, aos 38 anos.
“Vim para Ulm como um ninguém e encontrei um time que funcionava. Rangnick os deixou jogar no espaço. Não era nada novo para mim, eu tinha visto isso na Suíça. Então nos encontramos no resto, sendo mais inteligentes do que alguns adversários na área tática [...] Até então, o Ulm na Bundesliga era inimaginável. Então tivemos que pensar em como iríamos fazer isso. No final, decidimos festejar por um ano e esperávamos que um segundo ano pudesse ser adicionado. Queríamos ter uma abordagem positiva para esta enorme tarefa”, comentou em entrevista ao Goal.
Para dar forma à folia, o Ulm aumentou a capacidade do estádio para 23 mil lugares, e, como prêmio, vendeu 15 mil carnês da temporada. E a festa não ficou restrita aos jogos em casa. Decepcionada com seu time e admirada com a coragem dos visitantes, a torcida do Dortmund chegou a ovacionar os jogadores do Ulm, após um empate por 1 a 1, no Westfalenstadion. Ali, havia insatisfação com o time do coração, mas também respeito pelo nanico que não perdia sem entregar uma boa luta.
Com efeito, quatro rodadas foram suficientes para confirmar que os torcedores tinham razão. O Ulm empatou com Freiburg e perdeu sucessivamente diante de Munique 1860, Borussia Dortmund e Hansa Rostock. O clube estava em um lugar incompatível com seu potencial técnico. Sua coragem seria notada, entretanto. No fechar de cortinas da temporada, apenas três pontos o separaram da permanência na Bundesliga.
O time chegou a vencer mais jogos do que dois dos que se mantiveram na elite e o mesmo número relativamente ao Dortmund. Porém, também foi massacrado em ocasiões como um 9 a 1, aplicado pelo Bayer Leverkusen, ou um 6 a 2, diante do Kaiserslautern. “Na Bundesliga, você pode jogar bem taticamente, correr e lutar. No final, no entanto, muitas vezes é a qualidade individual que conta”, pontuou Andermatt.
Os festejos acabaram com o rebaixamento. Em crise financeira, o Ulm não conseguiu se preparar para a disputa da 2. Bundesliga de 2000-01 e foi, outra vez, rebaixado. Com a mesma velocidade que subira, descera. E o desfecho foi ainda pior. Insolvente, não conseguiu arcar com a licença para disputar a terceirona e acabou no quinto escalão alemão. Triste como se supõe ser, tal fim sinalizou novo adormecimento para os torcedores do clube.
Em que pese o pouco consolo do argumento, os Pardais ganharam páginas definitivas na história do futebol alemão, apesar de sua ruína. Isso porque o final de uma crise nacional sem precedentes, estourada no fracasso da Euro 2000, começou a ter fim ali, às margens do Danúbio, na Suábia — em Ulm.
Comentários
Postar um comentário
Agradecemos a sua contribuição! ⚽