A década dourada de Giovanni Trapattoni na Juventus
Nos anos 1960, dois nomes carregaram a fama do Catenaccio pela Europa. Representando os rivais milaneses, Inter e Milan, os treinadores Helenio Herrera e Nereo Rocco se tornaram expoentes desse estilo de jogo. Embora fosse percebida como “negativa” pelo público não italiano, a estratégia se popularizou no Bel Paese, especialmente entre os herdeiros dos citados mestres. Confiável volante milanista por mais de uma década, Giovanni Trapattoni se revelaria um pupilo fiel ao ideário apreendido nos tempos de jogador. Para benefício juventino.
Do Milan à Juve
Trap era um homem do Milan. Nascera na região metropolitana de Milão e era produto das categorias de base do rossonero. Durante a carreira, só deixaria o clube no apagar das luzes, representando o Varese em sua derradeira temporada. E logo retornaria. Em 1972, já integrava, novamente, a cantera milanista, agora como treinador. O passo adiante aconteceria com naturalidade. No final da temporada 1973-74, assumiria o time principal interinamente, e, após uma passagem malsucedida de Gustavo Giagnoni, seria nomeado comandante para o ano de 1975-76 — serviço observado de perto por Nereo Rocco, diretor técnico do clube.
Porém, aquele seria o ponto final. Uma temporada com resultados razoáveis abrira os olhos da Juventus. A Vecchia Signora acompanhara o sucesso indesejado do rival Torino, campeão italiano pela primeira vez desde 1948-49, pouco após o Desastre de Superga. A resposta precisava ser rápida e o presidente Giampiero Boniperti agiu. Ele próprio um ex-jogador de sucesso, desejava uma renovação tática e enxergou em Trapattoni, de 37 anos, a chama da vitória e o desejo de construir uma segunda trajetória sólida no futebol. A partir dali, Trap rodaria o mundo. E nunca voltaria ao Milan.
O que não era imaginável, no início da temporada 1976-77, era o recorte histórico que começaria a ser destacado ali. Um futebol de prosa, não de poesia, como o próprio diria. Um futebol vencedor e que casava perfeitamente com os anseios de Boniperti. A Juventus que Giovanni encontrou possuía jogadores de ótima qualidade, ainda que não exemplificassem o que pode haver de mais mágico em um jogo de futebol.
Dino Zoff, Claudio Gentile, Gaetano Scirea, Roberto Bettega, o capitão Giuseppe Furino, Marco Tardelli e Franco Causio já vinham da temporadas anteriores. Antonio Cabrini, Romeo Benetti e Roberto Boninsegna se tornariam acréscimos providenciais.
Não seria um arrobo de criatividade de Trapattoni o responsável por alinhar o time num energético esquema 4-3-3, pautado em marcação homem a homem. Não havia espaço para o cultuado trequartista, aquele ser que de tempos em tempos iluminava canchas com dribles e passes que outros não viam — mas que podia ser demasiado individualista e pouco aplicado taticamente. Além disso, Furino, o protetor da defesa, até tinha qualidades técnicas, mas se encaixava muito melhor numa ideia de volante convencional do que de regista.
Assim, o espírito juventino de vitórias foi resgatado. Boniperti estava certo: o Torino precisava ser freado. O ataque estrelado por Claudio Sala, Paolo Pulici e Francesco Graziani fazia estragos. Isso ficaria especialmente claro na oitava rodada da Serie A, quando a Juve recebeu o rival e perdeu por 2 a 0. No segundo turno, o empate por 1 a 1 não seria mais impressionante. No entanto, no todo, os Bianconeri fizeram por onde recuperar a coroa italiana.
A Vecchia Signora não teve a defesa vazada em 17 das 30 partidas que disputou. Venceu 23 encontros e até perdeu um a mais do que o Torino. Porém, empatou menos vezes. Também ficou logo atrás dos Granate nas estatísticas de gols marcados e sofridos. No entanto, na tabela que realmente importava, somou um ponto a mais e voltou a ser campeã.
O sabor inesquecível da primeira vez
Paralelamente, as coisas caminhavam com dificuldades, mas adiante. A Juventus nunca vencera competições europeias. E acumulava vices. Os primeiros, pela extinta Taça das Feiras, em 1964-65 e 1970-71, foram derrotas difíceis de engolir, diante de Ferencváros e Leeds United — a primeira por um gol de diferença, a segunda no critério dos tentos marcados fora de casa. Já em 1972-73, na decisão da Copa dos Campeões, outra vez os homens de Turim se viram apartados da taça pela margem mínima. Ao menos, do outro lado estava o virtuoso Ajax, de Johan Cruyff e companhia.
Em 1976-77, a Juventus representava a Itália na Copa da Uefa, ao lado de Milan, Internazionale e Cesena. Já na primeira fase, uma pedreira. Treinado pelo lendário Tony Book, o Manchester City ficaria com o vice-campeonato inglês ao final daquela temporada e alinhava jogadores da qualidade de Brian Kidd. Seria dele o gol da vitória dos Citizens na partida de ida, em Maine Road. Na volta, Scirea e Boninsegna entregariam o elementar, um gol cada. A primeira batalha estava superada.
Como se Manchester fosse um lugar secretamente favorito para a Juventus, o sorteio colocou os Bianconeri no caminho do United, o futuro vencedor da FA Cup naquele ano. No Old Trafford, o goleador Gordon Hill, atacante da seleção inglesa na altura, deu a vitória marginal aos Red Devils. No entanto, então, o lado mancuniano vermelho não tinha a força do rival local. No Stadio Comunale, Boninsegna voltaria a brilhar, com dois gols. Benetti apagaria de vez os ingleses, cinco minutos antes do fim: 3 a 0.
O desafio seguinte era mais difícil de examinar. O Shakhtar Donetsk nunca triunfara no Campeonato Soviético. E nem triunfaria. No entanto, no que acabou sendo um ano de domínio amplo do Dínamo de Kiev, de Oleg Blokhin, com vitória inclusive na Recopa Europeia, os mineiros terminaram a liga em segundo lugar — empatados em pontos com o tradicional Dínamo de Moscou. Dessa vez, havia a vantagem de jogar a partida de ida em Turim.
Bettega, Tardelli e Boninsegna trabalharam antes de carimbar o passaporte para Donetsk: 3 a 0. Porém, outra vez, a Juve sofreu. Perdeu por 1 a 0 e seguiu mostrando dificuldades para se impor no estrangeiro. Era hora de um herói improvável surgir, colocando fim à indesejada sina que o time vinha sofrendo. Antonello Cuccureddu era um defensor à italiana. Podia jogar em qualquer lugar da retaguarda e no meio-campo. A despeito de suas valorosas qualidades e entrega, não era alguém que se procurasse em busca de vitórias.
Porém, a classificação às semifinais começaria e terminaria com ele. Primeiro de cabeça, aproveitando um cruzamento de Boninsegna. Jürgen Sparwasser empataria, mas Benetti e o próprio Boninsegna garantiriam o triunfo diante dos alemães orientais do Magdeburg. Aquela seria a primeira vitória do time fora de seus domínios, no gramado horroroso do estádio Ernst Grube. Em Turim, novo êxito: 1 a 0. Gol de quem? Cuccureddu. Dessa vez, com um petardo, depois de Causio brilhar pela ponta direita e cruzar para Bettega ajeitar para quem vinha de trás.
Os atenienses do AEK não pareciam o maior dos desafios depois dos rivais de Manchester, de um soviético e um tradicional alemão oriental. Porém, eliminaram o Queens Park Rangers, que contava com um de seus maiores jogadores em todos os tempos, Stan Bowles. Ainda assim, a eliminatória correu tranquilamente. Cuccureddu voltaria a fazer um gol, acompanhado de Bettega (dois) e Causio. Lazaros Papadopoulos faria o tento de honra, que não serviria para muita coisa. Na Grécia, Bettega colocaria os turinenses na final.
Para a decisão, o Athletic Bilbao prometeu uma batalha. E entregou uma. Em Turim, a Juventus venceu por 1 a 0, mas na Espanha havia confiança total na remontada. O Mundo Deportivo sinalizou isso ao garantir que a Vecchia Signora fora domada. “Koldo Aguirre jogou muito bem suas cartas estratégicas, sujeitando os homens-chave da equipe italiana a fortes marcações”. Na viagem à Bilbao, em um San Mamés pulsante, Bettega colocaria a Juve em vantagem logo aos sete minutos da primeira etapa. Javier Irureta empataria, Carlos viraria, e os bascos pressionariam.
A narrativa do 2 a 1 seguiu sendo a de que os bilbaínos foram superiores. Mas a campeã, no gol marcado fora de casa, era a Juve. Para exorcizar velhos fantasmas. Vencendo, como faz a Juventus. “Estou muito feliz por ter vencido a Copa contra rivais magníficos como o Athletic, que estiveram muito fortes. Não pensei que pudessem ser tão resistentes. Sinceramente, jogaram um bom jogo [...] Nos últimos minutos até temi pela vitória”, falou Trapattoni, antes de sair para celebrar seu primeiro título internacional como treinador.
Há quem diga ter sido essa conquista a responsável pela virada de chave experimentada em Turim.
Os estrangeiros estão de volta
Com mais conforto do que no ano anterior, a Juventus renovaria o título italiano em 1977-78. Mas, nos dois anos seguintes, os rivais de Milão retomariam o topo; uma Coppa Italia evitaria um biênio de seca para os Bianconeri. No entanto, é impossível evitar a lembrança dos eventos que se desenrolaram em março de 1980. Na altura, a Guardia di Finanza, órgão responsável pela apuração de crimes financeiros na Itália, deflagrou a operação Totonero.
O relatório final das investigações confirmaria que uma série de equipes, dirigentes e atletas se envolveram em manipulação de resultados. O nome da Juve estava citado, mas não foram descobertos malfeitos. Na Serie A, Avellino, Bologna, Lazio, Milan e Perugia seriam penalizados. Entre os atletas apenados estava um certo Paolo Rossi, suspenso do futebol por três anos, posteriormente reduzidos para dois. A vergonha pública provocou mudanças no futebol do Bel Paese. Entre elas, a reabertura do mercado italiano aos atletas estrangeiros.
O primeiro forasteiro a aterrissar em Turim seria o irlandês Liam Brady. Ídolo do Arsenal, o meia carregava um pé esquerdo famoso pela execução de passes feitos sob medida. O acerto do atleta, que receberia cinco vezes o salário pago pelos Gunners, foi intermediado pelo empresário Gigi Peronace. Já na recepção, diante de milhares de juventinos, Brady entendeu que se esperava coisas boas dele. Ele as entregou. Na Serie A 1980-81, foi o artilheiro alvinegro, com oito gols. E conquistou a competição.
A história foi parecida no ano seguinte. Paolo Rossi fora recontratado, embora precisasse cumprir mais um ano de banimento. Por outro lado, Franco Causio partira chateado com a equipe, rumo à Udinese. Na Serie A, a grande diferença foi o despontar de uma Fiorentina que lutou até às últimas consequências pelo título. Mas, no fim, à moda juventina, o título ficou em Turim. Uma equipe perfeitamente organizada e defensivamente azeitada deu as cartas e conquistou seu 20º título nacional, ganhando o direito de exibir duas estrelas na camisa. Mas ainda era preciso melhorar. E Brady não faria parte desses planos.
“Ele [o presidente] disse que estava me substituindo por Platini. Foi totalmente inesperado”, contou o meia ao Independent. Sai Liam, entram Michel e Zbigniew Boniek, vindo do Widzew Lodz — os clubes já podiam contar com dois estrangeiros. A Juventus ia mudando. Ainda que, para seu desagrado público, Platini não fosse tão livre como era suposto um trequartista ser, a Juventus abrira mão de um meio-campista mais ortodoxo em prol do francês. No ataque, Boniek e Rossi eram as prolíficas referências. A Juve aperfeiçoava o Gioco all'italiana começado para acomodar Brady, um 4-4-2 torto que faria tendência.
Mas esse time teve problemas. Perdeu a Serie A para a Roma, mesmo com a artilharia de Platini, autor de 16 gols. E, mais uma vez, foi assombrada pelos fantasmas de seu passado. A equipe avançou à decisão da Copa dos Campeões, encontrando-se com o Hamburgo. O treinador austríaco Ernst Happel não era um novato em decisões, amarrando o time de Trap e vencendo por 1 a 0, gol de Felix Magath. O consolo viria com uma sofrida vitória na Coppa Italia, com gol de Platini no último minuto da prorrogação.
Completando o currículo
Para 1983-84, uma mudança substancial era a troca de Zoff, aposentado, por Stefano Tacconi, contratado ao Avellino. Michael Laudrup também chegara, mas passaria a época emprestado à Lazio. Recuperando o fôlego, a Juventus voltou a encabeçar a Serie A. Outra vez, Platini foi o artilheiro máximo do certame, agora com 20 gols. Chegara a hora de acrescentar mais uma taça inédita à sala de troféus juventina. O título da Coppa Italia do ano anterior classificara a Juve para a Recopa.
É bem verdade que a tropa de Trap podia ter se ajudado um pouco mais no caminho à decisão europeia. A única fase levada com tranquilidade seria a primeira. Diante dos poloneses do Lechia Gdańsk, a equipe não poupou energia e sapecou um sonoro 7 a 0 em Turim. O placar agregado anunciaria um triunfo por 10 a 2. Porém, já na sequência, as dificuldades ficariam claras. Contra o Paris Saint-Germain, o avanço só aconteceu pelo critério do gol marcado fora de casa, após dois empates.
É difícil pensar que o imaginário coletivo não tenha projetado um atropelo alvinegro, quando se soube que a Juventus enfrentaria os finlandeses do Haka, nas quartas de finais. Nada disso. Em dois jogos, duas vitórias magras de deixar os pés bem presos no chão: 1 a 0. Nas semis, os italianos reencontraram o Manchester United. E fizeram o mínimo, vencendo por um placar somado de 3 a 2. Na decisão, a Vecchia Signora era esperada pelo Porto. A vitória, 2 a 1, viria. Não sem uma dose de polêmica.
Antes do decisivo gol de Boniek, houvera falta no portista João Pinto. Isso, e outros lances menores, amarguraram o vestiário lusitano. “Claro que a Juventus sempre foi um colosso e uma equipe muito conhecida. Naquela altura, o Porto não era conhecido. O árbitro deve ter tido um bom prêmio e uma boa casa de férias na Itália. Acho que foi por aí que fez aquela arbitragem”, falou o meia Jaime Magalhães, ao O Jogo.
Seja como for, faltava bem pouco para a Juventus alcançar o ápice. Na esteira do título da Recopa, a equipe venceu a Supercopa Europeia, subjugando o Liverpool. Foram dois gols de Boniek os responsáveis por mais um triunfo. Surpreendentemente, a Itália seria dominada pelo Hellas Verona, com a Juve terminando a Serie A 1984-85 em sexto lugar. Só que, dessa vez, não haveria desespero ao final da temporada, mas festejos (ainda que menores do que seria suposto).
A corrida pela vitória na Copa dos Campeões começara em uma nova viagem à Finlândia. O modesto Ilves nada pôde fazer para evitar sua eliminação. Platini e Rossi marcaram três gols cada na eliminatória. Também os suíços do Grasshoppers não apresentaram oposição suficiente para frear os italianos. Com os méritos de quem venceu a partida de volta por 1 a 0, o Sparta Praga, que já tinham três bolas de desvantagem, igualmente não combateu com suficiente pujança. O caminho às semifinais fora tranquilo e a sugestão era a de que assim continuaria.
Na ida, em Turim, Boniek, Massimo Briaschi e Platini pareciam condenar os franceses do Bordeaux a um atropelo. Porém, o campeão francês vigente não desistiria. A equipe de Patrick Battiston, Jean Tigana, Alain Giresse, Dieter Müller e Fernando Chalana fez a Juventus suar. Na segunda partida, passados 35 minutos da etapa final, na Nova Aquitânia os donos da casa venciam por 2 a 0. Terminaria assim. Mais uma vez, os italianos estavam na decisão. O problema é que o adversário estava mais do que acostumado a vencer.
O Liverpool conquistara quatro campeonatos europeus no último decênio e, por isso, era favorito. Não obstante, a tragédia marcaria a decisão em Heysel muito mais do que o jogo. 39 mortos e mais de 600 feridos após a torcida inglesa avançar sobre a italiana, que não teve para onde correr, eram inquestionavelmente mais importantes do que futebol. No campo, um gol de pênalti de Platini garantiu à Vecchia Signora a glória continental máxima pela primeira vez. “A final em Bruxelas foi uma derrota para todo mundo, em todos os níveis”, falou Tardelli, ao Guardian.
Vale dizer que, em 1983, 84 e 85, Platini foi consagrado o Ballon d’Or.
O fim estava próximo. Rossi, Boniek e Tardelli foram alguns dos atletas negociados para a temporada 1985-86. O grande negócio dos Bianconeri seria a chegada de Aldo Serena, desde a Inter. Porém, efetivamente, o maior reforço foi o retorno de Laudrup, mais pronto para assumir o protagonismo. Com esses dois no ataque, a Juve venceu o Argentinos Juniors, nos pênaltis, na decisão do Mundial de Clubes. A campanha seria finalizada com mais um título italiano, o sexto de Trap. Era a hora de partir.
Em 1976, a Juventus precisava se reconectar com sua história, buscava voltar ao caminho das vitórias e do protagonismo. Trapattoni ansiava a chance de colocar em campo o que aprendera durante a carreira de jogador e no período no Milan. Com uma base de conhecimentos sólida, e uma reputação como atleta que lhe conferia o respeito necessário, Trap entregou à Juventus tudo o que Boniperti queria. Recebeu um currículo sem conquistas europeias, devolveu-o devidamente preenchido com todas, e mais a dominância nacional. Em 1986, partiu para a Inter como o técnico mais longevo da história alvinegra. O trabalho estava concluído.
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