O batismo da Costa Rica em 1990
Foram tacos, nachos, ou o guacamole? O clima? Decerto, a presença de Mari Carmen teve parte na decisão. Os motivos, todavia, não são tão importantes quanto o fato: Bora Milutinović nunca se arrependeu da decisão de estabelecer residência no México. “Sou mais mexicano do que iugoslavo”, garantiu em 1994. Lá, foi de jogador não muito notável a treinador afirmado, adquirindo fama de milagreiro, nas palavras de Alan Rothenberg, antigo presidente da U.S. Soccer Federation. O futebol da Concacaf o adotou, apreciando o confessado gosto por estar na estrada e a disposição para aprender um novo idioma ou outras formas de se jogar futebol. Milutinović se alatinou. O acerto com a seleção da Costa Rica, em 1990, foi calculado; uma boa oportunidade para as duas partes.
Bora foi convocado a apagar um incêndio. Para o observador desinformado, o fogareio não fazia o menor sentido. Em novembro de 1989, a Costa Rica conquistara o Campeonato da Concacaf, que servia de eliminatória para a Copa do Mundo do ano seguinte. Estadunidenses, mexicanos, cubanos, salvadorenhos, haitianos, hondurenhos e canadenses conheciam a sensação. Costarriquenhos não, embora já tivessem vencido o torneio continental em 1963 e 68. Enquanto o futebol do país aguardava a chegada de sua primeira experiência internacional de primeira classe, nem tudo eram flores. A paz não reinava entre Los Ticos.
Los Cachirules afastam o México
Nos anos 1980, o México tentava recuperar o prestígio nas disputas da Concacaf e da FIFA. Após a sentida ausência na Copa do Mundo de 1982, La Tri herdou a sede de mais uma Copa do Mundo. Era suposto que a Colômbia recebesse o certame de 86, mas toda sorte de problemas levou o país andino a entregar os pontos. Nas Américas, não havia lugar melhor para receber a competição que não o México. A infraestrutura construída para o Mundial de 1970 estava preservada e, em que pese a Argentina ter sido a última nação latino-americana a sediar o certame, em 78, o país também enfrentava seus fantasmas, após a Guerra das Malvinas e o fim da Ditadura Militar.
Automaticamente classificada para o certame do mundo, a seleção mexicana apostou suas fichas nos sucessos recentes de Bora Milutinović. Após encerrar a carreira de atleta no Pumas, o iugoslavo assumira o comando técnico, alcançando ótimos resultados. Com ele na casamata, os Felinos conquistaram um campeonato mexicano, duas Copas dos Campeões da Concacaf e uma Copa Interamericana. Fluente em espanhol, adaptado e radicado no país, tratava-se do melhor nome disponível. Era preciso montar um time forte ao redor da estrela do atacante Hugo Sánchez, então no Real Madrid.
Milutinović triunfou. Liderou o Grupo B, superando Bélgica, Iraque e Paraguai, e avançou aos mata-matas. Nas oitavas de finais, encontrou a Bulgária, também subjugada: 2 a 0. O freio da Tri seriam as penalidades máximas. Contra a Alemanha Ocidental, o placar se manteve inalterado e a marca da cal foi convocada a decidir a parada, fazendo-o favoravelmente aos interesses europeus. Por pouco, o México não alcançou as semifinais. Moralizado, Bora viajou à Argentina para treinar o San Lorenzo. E na sua ausência uma falta ética condenaria o país que adotara.
Em 1988, o México preparava um time de jovens para buscar uma vaga no Mundial Sub-20 do ano seguinte. Quase acidentalmente, os jornalistas Antonio Moreno e Alfredo Ruiz se depararam com datas conflitantes nas fichas de quatro atletas, Aurelio Rivera, Gerardo Jiménez, José de la Fuente e José Luis Mata. O fato foi investigado e a conclusão foi a de que os jovens estavam além do limite etário da disputa qualificatória. No popular, os quatro eram “gatos”.
Exemplarmente, a FIFA excluiu o México de suas competições por dois anos. Membros da Federação Mexicana de Futebol foram banidos do esporte para sempre e uma reformulação no esporte se iniciou. A consequência mais grave para a Tri foi a impossibilidade de disputar a Copa do Mundo de 1990. O bom desempenho do último mundial não seria colocado a prova e o caminho estava livre para outros países buscarem as duas vagas reservadas à Concacaf. A notícia era especialmente boa para os Estados Unidos, em processo de formação de um time voltado para 1994, quando já sabia que sediaria o Mundial. Mas quem melhor aproveitou a abertura foi a Costa Rica.
20 anos depois, as Américas Central, do Norte e o Caribe se curvam à Costa Rica
A Costa Rica iniciou a corrida ainda em 1988, superando o Panamá na primeira fase do Campeonato da Concacaf. Curiosamente, apenas empatou em Alajuela, tendo que vencer fora de casa. Na altura, o país ainda era comandado pelo uruguaio Gustavo de Simone. O avanço costarriquenho às fases decisivas foi abreviado, já que o México seria o adversário dos Ticos. A vitória por W.O. levou o time adiante.
Veio o ano de 1989 e, com ele, novidades. Ex-jogador e treinador da própria seleção da Costa Rica, Marvin Rodríguez estava de volta ao comando nacional. Dividiria o trabalho com o espanhol Antonio Moyano. Este também era um velho conhecido do país. Em 1980 e 84, conduzira os costarriquenhos à disputa dos Jogos Olímpicos, ainda que sem sucesso. Conhecia, portanto, alguns dos jogadores que, naquela altura, eram selecionáveis absolutos.
O início da fase final foi marcado por raros percalços. Na Guatemala, a seleção da casa venceu pela margem mínima. A Costa Rica devolveria a gentileza em seus domínios. Essa história se repetiria nas rodadas seguintes, dessa vez diante dos EUA. A quinta partida traria o único empate dos Ticos, diante de Trinidad e Tobago. E logo após os mesmos trinitário seriam batidos. Assim como El Salvador, duas vezes. Porém, a última partida diante dos salvadorenhos não renderia apenas a história da primeira classificação costarriquenha à Copa do Mundo.
No dia 16 de julho de 1989, os presentes no Estádio Nacional de Costa Rica sabiam que um triunfo bastava para colocar o país no panteão do futebol. Certezas sobre o título do Campeonato da Concacaf aguardariam mais alguns meses, já que os EUA, fortes perseguidores dos Ticos, ainda teriam partidas a disputar. A expectativa era enorme. O que não se esperava era que Evaristo Coronado, artilheiro costarriquenho até então, tornasse-se baixa de última hora.
“Foi uma mudança e tanto. Pode-se dizer que existe um Pastor antes e outro depois desse gol. Agora todas as pessoas da Costa Rica me conhecem, me amam muito e se identificam comigo [...] Na noite anterior eu nem estava entre os suplentes. Na manhã seguinte [...] Don Marvin decidiu me incluir no time titular. Foi a mão de Deus que interveio”, contou Pastor Fernández, o autor do solitário e suficiente gol de seu país, ao La Nación.
Lendário, o tento se deu a conhecer como “O Rugido de San José”. Pouco tempo depois, os estadunidenses também se confirmariam no Mundial, mas sem conseguir superar a Costa Rica, que ficou com a conquista continental.
A festa durou pouco, entretanto. “Era uma questão de princípio. Não acreditava no que estava sendo feito e decidi desistir, mesmo sendo minha última chance de jogar uma Copa do Mundo e a primeira vez que íamos a uma. Foi uma decisão muito complicada. Se não tivesse falado, teria me sentido hipócrita. Conversei com Don Marvin, falei com ele cara a cara, na frente de todo o grupo [...] Eu não acreditava no trabalho que estava sendo feito e sabia que o que estava por vir era muito sério e que algo muito diferente tinha que ser feito”, relatou o lateral José Carlos Chaves, uma das lideranças do elenco da Costa Rica, também ao La Nación.
A preparação para o Mundial não ia bem. A euforia e as distrações eram excessivas e as táticas precisavam ser modificadas. Faltando menos de três meses para a Copa do Mundo de 1990, a Federação Costarriquenha de Futebol tomou a arrojada decisão de depor uma referência nacional. Marvin Rodríguez levara os Ticos ao céu, mas sua gestão posterior sinalizava o risco de queda ao inferno.
“A troca de comando se deu posterior a uma gira da seleção, alguns jogos amistosos, pela Itália. Terminando essa gira, que foi muito ruim em todos os aspectos, de proposta de jogo, em termos de organização interna, administrativa, a Federação ficou muito preocupada com o que podia acontecer na Copa. Voltando para a Costa Rica, analisaram opções e pensaram que a opção do Bora era a melhor, principalmente porque ele já tinha estado no comando do México em 1986, tinha experiência de Copa do Mundo e vinha muito bem recomendado para os diretores da Costa Rica”, relatou o brasileiro naturalizado costarriquenho Alexandre Guimarães, com exclusividade, a'O Futebólogo.
Bora Milutinović vai à Itália
“Cheguei à seleção apenas 70 dias antes da Copa do Mundo de 1990. Mesmo tendo tão pouco tempo, fiz as mudanças que considerei apropriadas [...] Na preparação para a Copa do Mundo, não fizemos nenhum amistoso com os 11 titulares. Acho que essa foi a melhor maneira de preparar todos aqueles jogadores. Eu tinha jogadores muito responsáveis naquela equipe, com grande personalidade e taticamente muito bons”, contou Bora Milutinović, ao Coaches Voice.
Experiente e viajado, o iugoslavo foi bem aceito pelo elenco e trabalhou. Inclusive, com sua contratação, Chaves voltou ao time. Não é que tenham existido sentimentos mesquinhos em seu atrito com o antigo chefe, mas era inegável que ele vencera a queda de braço — para benefício maior da Costa Rica. De cara, Bora deixou de contar com atletas populares, entre os quais o antigo capitão. À época, justificou que, para competir, precisaria de mais do que o talento dessas peças; eram necessárias velocidade e força, além de mais entendimento tático. Outro ajuste seria a antecipação da viagem à Itália para cinco semanas antes do previsto. Era necessário trabalhar em um clima menos ebuliente.
O eslavo construiu a equipe ao redor de algumas pedras angulares. O goleiro Luis Gabelo Conejo seria uma delas, não tardando a se tornar o maior destaque dos Ticos na Copa do Mundo. Como líbero e capitão, Róger Flores assumiu funções de liderança técnica e moral. Segundo Juarez Soares, da TV Bandeirantes, tratava-se do “Baresi da Costa Rica”.
Às vésperas de completar 20 anos, Rónald González ofereceu ao meio-campo o aporte pulmonar que Milutinović esclarecera precisar, firmando pacto com Óscar Ramírez, ídolo do Alajuelense. No ataque, El Nene Juan Cayasso, um dos remanescentes das Olimpíadas de 1984, acrescentava poder de fogo ao time. Reservas como Alexandre Guimarães ainda auxiliavam o time quando Bora acionava o banco de reservas.
“Quando chegou aqui, o Bora começou a assistir aos jogos do campeonato para ver o nível dos jogadores, não só dos que tinham conseguido a classificação para a Costa Rica, senão outros, entre esses eu [...] quando o Bora entrou, voltou a abrir as opções a certos jogadores, entramos uns três ou quatro diferentes na lista final [...] ele queria jogadores mais polifuncionais e que tivessem uma disciplina tática muito mais forte”, acrescentou Guimarães.
Se, por um lado, parecia que a Costa Rica estava resolvendo bem os seus problemas internos, por outro, o sorteio da Copa do Mundo a colocara em um grupo que sugeria sua imediata eliminação. A ideia de que os estreantes da América Central pudessem passar por Brasil, Escócia e Suécia era risível. Mas, como Bora afirmaria com o tempo, ele não teria assinado seu contrato se não acreditasse no seu trabalho e nas chances de surpreender. A Federação Costarriquenha compraria as passagens de retorno da Itália para a data imediatamente subsequente ao último jogo da fase de grupos, não fosse pela intervenção do treinador.
Pelo sonho, valeu até mudar de roupa
Antes do início da competição, a Costa Rica fez amistosos nos Estados Unidos, “um triangular com um time do México, o Atlas, e a seleção da Colômbia”, citou Alexandre. O resultado foi ruim. “Ali, ele [Bora] entendeu e fez a proposta para o presidente da federação de não voltar para a Costa Rica, ir direto para a Itália, com muito tempo de antecipação [...] para evitar o ambiente muito controvertido depois desses jogos”. Na viagem precoce ao Bel Paese, novos amistosos proporcionaram o ajuste fino procurado pelo treinador.
A estreia da Costa Rica aconteceu em Gênova, no dia 11 de junho. O adversário foi a Escócia. Atenta ao que acontecia aos adversários da Canarinho, a imprensa brasileira noticiou o inesperado: “Apareceu a zebra latina”, manchetou O Globo. Segundo a publicação, a soberba britânica fora penalizada pelo destemor de uma Costa Rica que alternara lances de genialidade e de ingenuidade. Já na estreia, Conejo fechou o gol, brilhando especialmente ao parar o atacante Mo Johnstone. No ataque, Cayasso marcou o primeiro gol da história dos Ticos em Mundiais, o único daquela tarde-noite genovesa.
O segundo confronto era uma derrota certa. O Brasil estava à espreita, depois de vencer, sem convencer, a Suécia. Antes da partida, o treinador dos centro-americanos pedia que seus atletas não buscassem autógrafos de seus famosos adversários. Nada parecido aconteceu. Os de verde e amarelo até venceram, mas como ressaltou o Jornal do Brasil: “Gol continua artigo raro”. É bem verdade que os homens de Bora Milutinović não ameaçaram muito o gol de Taffarel, mas tampouco o Brasil foi eficaz no ataque, com Muller marcando o solitário gol do jogo. A curiosidade do encontro seria a tentativa frustrada de os costarriquenhos conseguirem a preferência das arquibancadas
“Bora sugeriu que vestíssemos essa camisa por causa da Juve. Não deu certo porque o estádio estava lotado de torcedores do Brasil”, contou Guimarães, ao site da FIFA. A Costa Rica, cujos uniformes eram assinados pela italiana Lotto, levara trajes reservas idênticos aos da Juventus ao Bel Paese. Com a partida diante da Canarinho acontecendo em Turim, imaginou-se que a semelhança de cores levasse os italianos a alentar os costarriquenhos. Nada feito. A curiosa vestimenta homenageava o Club Sport La Libertad, mais antigo time de futebol do país.
O tudo ou nada seria contra a Suécia, outra vez em Gênova. Antes do jogo, Bora teria levado seus atletas a um balneário, para desestressarem. O treinador esperava e desejava que a Suécia entrasse com três atacantes. Seu contraparte sueco, Olle Nordin, preferiu preencher o meio-campo. Mas não adiantou. “Costa Rica no paraíso”, proclamou O Globo, indicando o goleiro Conejo e o atacante reserva Hernán Medford como os heróis da noite. O 2 a 1 colocou os costarriquenhos na fase seguinte.
“A proposta dele [Bora] foi muito 'conservadora' [...] a Costa Rica foi feita para basicamente contra-atacar, quase num 5-4-1, mas posicionado diferente, com esses quatro do meio-campo fazendo um losango, um três mais um [...] a procura, depois da gira de Chicago, foi conseguir o perfil de jogadores para manter o funcionamento sempre [...] Ele tirou jogadores da posição original. Como exemplo, um dos nossos alas era um carregador de piano no seu time na Costa Rica. Ele tirou um dos 10 e botou como número 8, foi provando diferentes jogadores no triângulo da zaga [...] também foi treinando e vendo que o goleiro teria de ser a grande figura da Costa Rica”, explicou Guima.
Apesar do êxtase, Milutinović sofreu uma baixa gravíssima para a sequência, em que a Tchecoslováquia esperava os centro-americanos. Conejo sofrera uma contusão no tornozelo direito no último treino e teria de ser substituído por Hermidio Barrantes, que praticamente não tinha jogos pela seleção. “Perdemos por 4 a 1 para a Tchecoslováquia nas oitavas de final. Não foi nossa pior partida, mas, infelizmente, tivemos que fazer mudanças no time que não deram certo. Mesmo assim, saímos da Itália com a satisfação de um trabalho bem feito”, relatou Bora, no citado texto ao Coaches Voice. Esse foi o único jogo em que o treinador alterou seu esquema, tornando-o mais ofensivo. Fazia sentido, afinal, perder não era uma opção.
Construção contínua
A derrota contra os tchecos não era o fim de um sonho, mas o início de uma nova fase para o futebol dos Ticos. No ano seguinte, Bora Milutinović seguiria seu périplo pelos países da Concacaf ao firmar contrato com os EUA. Sem surpresa. Seu acerto com a Costa Rica era de curto prazo. Intenso e rápido. Mas os resultados que ajudou a construir repaginaram o futebol local. Os clubes nacionais melhoraram, o mundo passou a valorizar o atleta costarriquenho e a seleção cresceu.
Até o Mundial, o único título da Copa dos Campeões da Concacaf obtido pela Costa Rica viera pelos pés dos atletas do Alajuelense, em 1986. Depois da honrada viagem à Itália, em 1993 e 95, o Saprissa subiu ao lugar mais alto do pódio; e, em 1994, o Cartaginés teve semelhante honra. O Alajuelense também chegaria perto do bicampeonato, com o vice em 1992. Nesse período, jogadores que seriam importantes para a Costa Rica, casos de Rolando Fonseca, Walter Centeno, Wilmer López, Luis Marín e Ronald Gómez foram revelados.
“A Copa de 1990 foi o ponto a partir do qual a Costa Rica mudou totalmente. Antes, a maioria dos meus companheiros faziam um part-time [...] depois dessa Copa, saíram [para a Europa], além do goleiro, o Hernán Medford e o Rónald González, jogadores mais jovens, que foram jogar na antiga Iugoslávia, e o Juan Cayasso, que era o nosso camisa 10, foi para a Alemanha. Esses quatro marcaram o caminho para as outras gerações [...] a Costa Rica não foi para a Copa de 1994, esse grupo já estava desgastado [...] A partir do ano de 1996, mais ou menos, a Federação começa a mudar toda a estrutura de organização das seleções menores, naquele momento o sub-17 e o sub-20 [...] Tudo foi produto dessa participação nossa na Copa do Mundo da Itália, em 1990”, finalizou Alexandre Guimarães.
Inspirados pelos heróis de 1990, os jovens que surgiram naquela década se aproximariam da Copa de 1998 e, doze anos mais tarde, voltariam a colocar seu país em um Mundial. Ali, viviam seu auge e ainda podiam contar com a experiência de gente que estivera na Itália, como Medford e, claro, o treinador da vez: Alexandre Guimarães.
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