A libertação d’Os Belenenses nos anos 1940

O fim da Segunda Guerra Mundial era a grande notícia que, no boca a boca, no rádio e nos jornais, circulava mundo afora. Naquele momento, em Portugal, o futebol seguia crescendo como paixão nacional. Para o Belenenses, era o 27º ano desde a sua fundação. O clube lisboeta era aclamado pela revista Stadium, que garantia se tratar de um “propagandista do seu bairro”, Belém. Ali, era percebido como um de quatro — não três — grandes do futebol português, mas precisava vencer. Enfim, veio a temporada 1945-46, recompensando os esforços do time.

Belenenses 1945-46
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Ascensão rápida


O Belenenses foi instituído em 1919, e não tardou a viver dias de sucesso. Liderados por Artur José Pereira, um dissidente do Sporting, os fundadores buscavam apresentar ao bairro de Belém um clube para chamar de seu. Já nos anos 1920, começaram os festejos. O time venceu os Campeonatos Regionais de Lisboa, em 1925-26 e 1928-29. Também foi duas vezes exitoso na corrida pelo Campeonato Nacional (torneio predecessor da Taça de Portugal), nos idos de 1926–27 e 1928–29.

Os triunfos dos Azuis ficaram evidentes também no selecionado lusitano que disputou os Jogos Olímpicos de Amsterdã, em 1928. Na altura, em período anterior ao da criação da Copa do Mundo, o selecionador Cândido de Oliveira convocou os belenenses César de Matos, Augusto Silva, José Manuel Soares, o Pepe, e Alfredo Ramos. Nesse mesmo ano, o clube inaugurou o Estádio das Salésias, então considerado um dos mais modernos do país. Tudo caminhava bem.

A década seguinte viria carregada de bons resultados, mas também de tragédia — eventos que marcam a identidade de um clube. Se, por um lado, o Belenenses venceu mais um Campeonato de Portugal e mais dois troféus regionais de Lisboa, por outro, perdeu precocemente Pepe. Ele tinha apenas 23 anos quando, em 1931, morreu. O prodígio dos Azuis foi acidentalmente envenenado pela própria mãe. Ao preparar uma refeição para a família, a matriarca trocou sal por soda cáustica. Mais pessoas se sentiram mal, apenas Pepe faleceu.


Vale dizer que os anos 1930 também marcaram a história do futebol lusitano. Em 1934-35, foi disputada a primeira edição do Campeonato Português, originalmente um torneio de oito equipes, que se enfrentavam em dois turnos. No decênio, o Belenenses só se ausentaria do grupo dos quatro melhores uma vez, chegando ao vice-campeonato em 1936-37, apenas um ponto atrás do campeão Benfica.

Chega de ficar em terceiro lugar!


O final da temporada 1939-40 anunciou o que seria tendência durante uma série de anos. O Belenenses terminou o Campeonato Português em terceiro lugar. A marca se repetiria no triênio seguinte, com Porto, Benfica e Sporting se alternando no pódio lusitano. Estava claro que os Azuis tinham de ser considerados uma ameaça séria àquele grupo que, com exclusividade, vinha triunfando consecutivamente. Nesse ínterim, é bom que se diga, o clube de Belém também venceu a Taça de Portugal de 1941-42.

Os ensaios para a glória máxima seguiam sendo feitos. Se a campanha de 1943-44 seria ruim, com um inesperado sexto lugar, ao menos teria alguma compensação, com mais um troféu do Regional de Lisboa. O ano seguinte provaria que aquilo não tinha sido mais do que um leve deslize. O Belenenses terminou a temporada 1944-45 mais uma vez com o terceiro lugar, mas, agora, com a mesma pontuação do vice, o Sporting. Aliás, o saldo de gols dos Azuis era maior do que o dos Leões, superiores apenas nos confrontos diretos.

Augusto Silva Belenenses
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Farta de acumular bronzes, a direção do Belenenses apostou em uma mudança. Na verdade, buscou um velho conhecido. Ídolo do clube pelo que fez dentro das quatro linhas, jogador que mais representou a seleção portuguesa enquanto atleta do Belenenses (21 aparições), e já tendo o treinado em duas oportunidades, Augusto Silva foi contratado para substituir o treinador austro-húngaro Sándor Peics. Ele encontrou um elenco que mesclava experiência e juventude.

Entre os onze escolhidos habituais para o time titular azul, alguns remanesciam do time campeão da Taça de Portugal: António Feliciano, Serafim Neves, o capitão Mariano Amaro, Francisco Gomes, Artur Quaresma, Rafael Correia e José Pedro. Entre os mais jovens, estavam o goleiro Manuel Capela, contratado junto ao Ovarense, o zagueiro Vasco Oliveira, revelação do clube e que formaria com Feliciano as “Torres de Belém”, o atacante Armando Correia, formado na Académica de Coimbra, e Manuel Andrade, outro produto da base belenense, que seria o caçulinha e talismã do time, aos 18 anos.

Revista Stadium Belenenses Torres de Belém
Acervo Revista Stadium

Antes de retornar ao clube, Augusto Silva, com seu auxiliar Rodolfo Faroleiro (outro que tinha larga história nas Salésias), também passara pela formação do Belenenses, ajudando os Azuis a melhorar sua prospecção e, além disso, a desenvolver o potencial de seus jovens. Foi nesse período, ademais, que começou a colocar em prática seus exigentes treinamentos, com ênfase na preparação física.

Um adendo valioso: esse elenco também ganhara notoriedade por ter peças que se opunham aos fascismos aflorados pela Europa. Em 1938, antes de um confronto entre Portugal e Espanha, representados por seus respectivos ditadores, António Salazar e Francisco Franco, Quaresma e Amaro (além de José Simões, já aposentado em 1945-46) se negaram a fazer a conhecida saudação nazifascista. Simões e Amaro, conforme se conta, teriam ido além, erguendo o punho fechado. “Nunca fui político, mas embirrava com aquelas coisas do fascismo”, teria dito Quaresma, como registrado pelo Record.

Aquele valoroso time estava preparado para quebrar o tabu que indicava que apenas Benfica, Porto e Sporting podiam ganhar o Campeonato Português. Isso ficou claro já na disputa do Regional de Lisboa de 1945-46. O Belenenses sequer precisou vencer nas duas últimas rodadas para superar o Sporting e ficar com mais um troféu. Aquilo foi o teste perfeito para o torneio nacional, que começou em dezembro de 1945 e, pela primeira vez, contou com 12 equipes.

Revista Stadium Belenenses Regional Lisboa 1945-46
Acervo Revista Stadium

Virada consagra o Belenenses


O primeiro turno do Campeonato Português de 1945-46 apresentou um Belenenses forte, mas insuficiente para alcançar suas pretensões. Empatar fora de casa diante do Sporting, já na estreia, não era um resultado ruim, muito menos sendo seguido de cinco triunfos — alguns deles maiúsculos: 7 a 0 na Académica, 6 a 1 frente ao Boavista, e 5 a 1 diante do Vitória de Guimarães. O problema viria adiante. Entre as rodadas sete e 10, os Azuis empataram com o Atlético CP; perderam para quem não podiam ser derrotados, o Benfica; venceram o Porto; e voltaram a sofrer um revés, agora diante do Olhanense.

O último jogo do primeiro turno seria animador: triunfo por 5 a 2 diante de uma filial benfiquista, o alentejano Elvas. A campanha era mesmo boa, mas o desajuste supracitado não poderia se repetir na etapa final. Havia mais 11 jogos por disputar e qualquer resultado que não fosse vitorioso poderia entregar ao Belenenses o conhecido desfecho dos anos anteriores, ficando próximo do título, mas o vendo escapar.

O que se seguiu foi uma campanha impecável, sem uma vírgula faltante, ou um porém a apontar. O Sporting seria a primeira vítima, com um resultado magro, mas suficiente: 2 a 1. O time azul emplacaria, superando Académica, Boavista, Oliveirense (por 10 a 0), Vitória de Guimarães, Vitória de Setúbal e Atlético CP. E, na hora crítica, o Belenenses conseguiria manter os nervos no lugar: em casa, bateria seu maior perseguidor, o Benfica, 1 a 0, tornando-se líder do certame; fora, deixaria o Porto pelo caminho, pelo mesmo placar. Faltavam dois desafios.

Aquele Olhanense, que vencera os Azuis no primeiro turno e terminaria o campeonato em quarto lugar, não foi visto na 21ª rodada. Sem medir seu poder, o time de Belém massacrou a esquadra do Olhão: 6 a 0. Esse resultado colocou o Belenenses muito próximo do título. Os homens de Augusto Silva computavam um ponto a mais do que os benfiquistas. Porém, a vitória era essencial. Caso as equipes empatassem em pontos, o confronto direto beneficiaria as Águias. Superar o Elvas era, mais uma vez, um imperativo. E, segundo se conta, o Benfica havia enviado um de seus treinadores para ajudar o time parceiro nas últimas e decisivas semanas.

A Bola Belenenses Elvas
Acervo Jornal A Bola

Tendo chegado ao Alentejo no próprio dia da partida, 26 de maio, o Belenenses entrou em campo com Manuel Capela, Vasco de Oliveira, António Feliciano, Francisco Gomes, Serafim Neves, Mariano Amaro, Manuel Andrade, José Pedro, Armando Correia, Artur Quaresma e Rafael Correia. Passados dois minutos, a equipe já perdia, cortesia de Domingos Carrilho Demétrio, o Patalino, atacante nascido na própria Elvas. Emocionalmente abalado, o time azul não conseguiu responder rapidamente. Quando o árbitro apitou o final do primeiro tempo, o placar ainda sinalizava uma desvantagem de 1 a 0.

No vestiário, em que se soube que o Benfica ganhava por 2 a 0, algo aconteceu. O time que carregava o orgulho de seu bairro não desapontaria sua gente. Aos 66 minutos, gol de Andrade. Era o empate. Minutos depois, foi Rafael quem tirou o engasgo do peito belenense: 2 a 1. O Elvas já não tinha forças para lutar. Feliciano quase marcou um terceiro tento antes do apito final, mas a bola que não entrou foi desnecessária, e o Belenenses foi o grande campeão.

Belenenses Elvas 1946
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Ainda um garoto, Andrade acabaria sendo o artilheiro do time, com 19 tentos (poucos se comparados aos 37 do fantástico Fernando Peyroteo, ídolo sportinguista). A retaguarda azul, protegida pelas “Torres de Belém”, seria a melhor do torneio, concedendo parcos 24 tentos. A linha de frente, extremamente eficaz e autora de 74 gols, ficaria com o segundo lugar, atrás do ataque benfiquista. Além disso, o treinador Augusto Silva se tornaria o primeiro lusitano a vencer o Campeonato Português, juntando-se aos húngaros József Szabo, Lippo Herczka, János Biri e Mihály Siska.

“O Belenenses é o team que joga mais um conjunto e mais conscientemente pratica um plano de futebol estudado e analisado em minúcias. Os seus componentes são também executantes de maestria, que se integram no plano e lhe dão realização com facilidade de movimento. Mais. O team de Belém consegue dar ao seu futebol um cunho de habilidade que não é mais do que a arte no jogo. Deste modo, em dia de acertos, o Belenenses parece-nos um team em que tudo está bem e no seu lugar, e em que todos os jogadores contribuem para a unidade do conjunto [...] Quem poderá contestar o mérito do seu triunfo?”, comentou o cronista Tavares da Silva, da revista Stadium, de 29 de maio de 1946.
Revista Stadium Belenenses Campeão Português 1945-46
Acervo Revista Stadium

O adormecer dos Azuis


Não há qualquer dúvida de que, para os belenenses, o dia 26 de maio de 1946 representou um momento de catarse coletiva. “Foi um caso sério. Toda a gente sabia que éramos obrigados a ganhar. Caso contrário, o Benfica era campeão. O Valadas, antigo jogador do Benfica, tinha ido treinar o Elvas durante uma semana para que, pelo menos, conseguissem empatar”, recordou Manuel Andrade, ao portal MaisFutebol.

O triste foi que o Estádio das Salésias não foi o palco da decisão final e não recebeu qualquer outro título dos Azuis. A equipe encerraria a década com mais dois terceiros lugares no Campeonato Português, entre 1947 e 49. Também faria campanhas de respeito no decênio seguinte, ficando próxima de uma nova conquista. Contudo, quando ela veio, em 1959-60, foi na Taça de Portugal, em decisão jogada no Jamor, quando o Belenenses era treinado pelo brasileiro Otto Glória. Na altura, sua nova casa, o Estádio do Restelo, já tinha sido inaugurada, o que aconteceu em 1956.


No rescaldo do histórico título português, outros fatos deram a dimensão da conquista. O número de sócios do time de Belém vinha em crescente, mas aumentou significativamente. Em 1943, eram aproximadamente 4 mil associados. No princípio da temporada do título, 6,8 mil e, no ano imediatamente posterior, o número já superava os 9 mil.

Além disso, em dezembro de 1947, o Belenenses seria convidado pelo Real Madrid para inaugurar o Nuevo Estadio Chamartín, que mais tarde assumiria nova identidade, como Santiago Bernabéu. Naquela altura, os Blancos venceram por 3 a 1, mas os Azuis de Belém ficaram eternizados na história do clube madrilenho. Somente um grande clube poderia ser convidado para tamanho evento.

Vinte anos mais tarde, o Belenenses ainda emplacaria dois convocados para o Mundial da Inglaterra: José Pereira e Vicente. Porém, ali já não eram vividos muitos momentos de glória. Nada parecido com os eventos da temporada 1945-46, quando o time conduziu uma enorme festa desde a pequena Elvas até Belém, na capital portuguesa.

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