Camarões e um rugido para a África em Mundiais
A história das participações africanas em Copas do Mundo ainda registra os sucessos como exceção. Por mais que seja o berço da humanidade, o continente vê seu futebol refletir, em grande medida, as consequências da multifacetada exploração estrangeira, das guerras civis e do sofrimento nas mãos de governos corruptos. Ainda assim, a África nutre uma relação de amor profundo pelo futebol. Foi isso o que uma geração de Camarões começou a mostrar na década de 1980, vindo a alcançar a consagração definitiva no Mundial de 1990.
Da Independência política à futebolística
Quando o Egito se classificou para a Copa do Mundo de 1934, tornando-se o primeiro africano a disputar o torneio, Camarões estava dividido. A derrota da Alemanha, na Primeira Guerra Mundial, impactou o território africano, que foi entregue, mas não anexado, à França e à Grã-Bretanha. Este processo implicaria em complicações históricas. Enquanto os franceses incorporaram a economia camaronesa à sua própria, os britânicos comandaram sua porção à distância, desde a Nigéria. Os trâmites de independência política seriam complicados.
Segundo o historiador Eric Hobsbawn, em A Era dos Extermos, “a última parte do século XX foi uma nova era de decomposição, incerteza e crise e [...] para grandes áreas do mundo, como a África [...] de catástrofe”. As discussões em Camarões começaram a se acirrar em 1959. Porém, não havia uma ideia única e clara acerca dos caminhos da nação que buscava sua autonomia.
Parte dos envolvidos na causa independentista entendia que, antes de romper relações com as nações europeias, o país deveria retomar seu senso de unidade, com as parcelas francesa e britânica se juntando. No entanto, existia também o entendimento de que as independências deveriam preceder a reunião.
Como registra a Deutsche Welle, na virada para o ano de 1960, em meio ao caos, com tiroteios por toda a cidade, o primeiro-ministro Ahmadou Ahidjo proclamou a independência camaronesa francesa. Porém, não havia real interesse de sua parte na cessação da influência europeia, que jamais acabou completamente. Por si só, aquela situação já foi extremamente controversa.
Camarões não pertencia à França para se declarar independente dela. O modo como tudo foi feito evidenciou o caráter de subalternidade do governante camaronês em face dos franceses. O território se tratava de um protetorado da Liga das Nações, antecessora da ONU. Segundo o historiador Edward Nfor: "Os camaroneses deveriam ter obtido a sua independência através de um referendo organizado pelas Nações Unidas, como aconteceu na parte anglófona do país". A citada liberação junto aos britânicos aconteceria em 11 de fevereiro de 1961. Meses mais tarde, o território seria reunido em um só, ainda que uma parte tenha sido anexada à Nigéria.
Diante disso, os registros dão conta de que o futebol camaronês começou a se organizar em 1962, com sua filiação à Fifa. Curiosamente, esse movimento aconteceria antes de sua entrada na Confederação Africana de Futebol — confirmada apenas em 63.
Um pouco mais tarde, às vésperas do Mundial de 1966, o país se veria no meio de uma polêmica. A Copa do Mundo da Inglaterra não conferia sequer uma vaga direta para os países africanos. Para chegar à competição, africanos, asiáticos e países da Oceania teriam que se matar por uma vaga. Os africanos boicotaram a disputa e se recusaram a disputar o torneio.
“Países afro-asiáticos lutando contra duras e caras eliminatórias por uma vaga é patético e insano”, registraria o ganês Ohene Djan, membro do comitê executivo da Fifa, em um telegrama enfático, como registrou a BBC. Apenas em 1970, seria garantido um lugar para a África, que foi representada pelo Marrocos naquela oportunidade.
Rumo à Galícia
A primeira vez em que os camaroneses pisaram em gramados internacionais, para disputas oficiais, foi durante as Eliminatórias para a Copa Africana de Nações de 1968. Os resultados não foram bons; o país não se classificou. Essa história começaria a ser reescrita em pouco tempo. Em 1970, embora não tenha conseguido vaga na Copa do Mundo, o país disputou a sua primeira CAF. O saldo foi ruim, com Camarões caindo na fase de grupos, mas ali começava a se ver seu potencial para o futebol. Em três jogos, venceu dois e perdeu um. Parou diante da dureza dos critérios de desempate.
Na competição continental de 1972, aquela equipe faria barulho, terminando em terceiro lugar. Porém, o que poderia servir de incentivo conduziu, com efeito, a um breve adormecer. No restante daquela década, os camaroneses não disputariam qualquer competição internacional de relevo. Os Leões Indomáveis pareciam mais gatinhos domésticos. A Copa Africana de Nações não os viu em 1974, 76, 78 e 80. Os Mundiais tampouco, já que, em 74, o africano classificado foi o Zaire e, quatro anos depois, a Tunísia.
Mas a revolução estava próxima. E, registre-se, no futebol de clubes, a situação era diferente. O Canon Yaoundé conquistara a Liga dos Campeões da CAF em 1971, 78 e 80; e o Union Douala em 1979. Além disso, o regulamento da Copa do Mundo de 1982, a ser disputada na Espanha, traria uma novidade: 24 equipes teriam a chance de se sagraram campeãs, não mais 16. Para os africanos, isso significou o aumento do número de vagas, de uma para duas.
Os times camaroneses que vinham alcançando sucesso formaram a base de uma seleção que daria seus primeiros passos, rumo a um futuro admirável. Depois de superar Malaui, Zimbábue e Marrocos, Camarões se classificou para o Mundial de 1982. O atacante Roger Milla só não fez chover, tendo sido o artilheiro daquela disputa, autor de seis gols. Os Leões Indomáveis, acompanhados da Argélia na viagem à Europa, começaram a rugir.
A primeira aparição de Camarões nas Copas do Mundo foi marcante. O Grupo 1, com Itália, Peru e Polônia, disputado na Galícia, em Vigo e na Corunha, era duro. Todavia, os africanos deram seu recado e não perderam nenhum jogo. Tudo bem, também não venceram. O trio de empates acabaria favorecendo os italianos e eliminando os camaroneses, mas algumas marcas ficaram registradas ali.
A primeira delas foi a qualidade do goleiro, e capitão, Thomas N’Kono. À época no Canon Yaoundé, o arqueiro, que passaria anos no futebol europeu, esteve soberbo debaixo dos paus. Reza a lenda que, durante a partida diante dos peruanos, um dos membros da comissão técnica sul-americana, percebido como curandeiro, estaria indignado, exigindo que o camaronês fosse revistado, com o auxílio de um cão de segurança. Sua atuação, maravilhosa, só poderia ser obra da magia negra.
A outra foi o enorme apelo do selecionado junto ao povo. Após a eliminação, em pleno feriado nacional, milhares de pessoas madrugaram e se aglomeraram no Aeroporto Internacional de Yaounde, aguardando a oportunidade de ver de perto seus ídolos. Mais tarde, os atletas seriam recebidos com pompa e circunstância também no Palácio da Unidade.
Sucesso continental, mas uma pausa indesejada
Aquela geração de atletas camaroneses, em sua maioria no auge da carreira, entre os 25 e os 30 anos, conseguiria uma sequência de bons resultados. Em 1984, os Leões Indomáveis conquistaram seu primeiro título. Na Costa do Marfim, subjugaram os anfitriões, além das equipes de Togo, Argélia e da vizinha Nigéria. Assim, venceram sua primeira Copa Africana de Nações.
Dois anos mais tarde, Camarões ficaria com o vice-campeonato continental, perdendo para o Egito, mas apenas nas penalidades máximas. Antes de avançar no tempo, um adendo.
Estranhamente, em 1985, quando o time de Milla e N’Kono consolidava seu domínio na África, veio um revés inesperado. Nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1986, o time treinado pelo popular francês Claude Le Roy tombou diante da fraca equipe de Zâmbia. Em Lusaka, os donos da casa impuseram uma goleada, 4 a 1. Na volta, em Yaounde, os Leões Indomáveis não tiveram força para reverter a desvantagem, ficando apenas com um empate, 1 a 1. De fato, Zâmbia não tinha muito poder na cena africana. Na fase seguinte, cairia perante a Argélia — no agregado, 3 a 0. Camarões falharia um Mundial.
Como ficaria evidente, a ausência no México não abalou os camaroneses. Depois do vice-campeonato africano em 1986, o time voltaria logo ao pódio continental, em 88. Na fase de grupos, enfrentaria Nigéria, Egito e Quênia. Avançaria às semifinais com a segunda colocação. Então, enquanto os nigerianos superavam os argelinos, apenas após a disputa de penalidades, Camarões subjugava outra nação saariana, o Marrocos. Na final, que reeditou o confronto da fase de grupos, um solitário tento de pênalti — cortesia de Emmanuel Kundé — bastaria para Camarões.
Ali, Milla, aos 36 anos, despedia-se da seleção. Outro a sair seria o treinador Le Roy, ao aceitar o desafio de comandar Senegal. Sem dois de seus principais líderes, Camarões não passaria sequer da fase de grupos da Copa Africana de Nações de 1990, observando, amargamente, Zâmbia, a algoz de 85, e Senegal, chefiado por seu antigo treinador, avançarem. Todavia, aquele time camaronês, agora sob a direção do soviético Valeri Nepomniachi, havia se classificado para o Mundial da Itália, a ser disputado meses mais tarde. Nas fases decisivas das eliminatórias, Camarões deixara Nigéria e Tunísia pelo caminho.
Algo precisava acontecer, entretanto. Justamente por ter tido desempenho infeliz na CAF, às vésperas da Copa, o presidente camaronês, Paul Biya, fez um apelo a Roger Milla. Pediu que considerasse sua decisão e voltasse a representar os Leões, que, sem ele, não eram tão indomáveis assim. O atacante topou. “Ele ficou muito triste ao ver a derrota de Camarões na CAF, porque viu nosso talento. Ele não esteve lá para as eliminatórias, mas, graças ao chefe de estado, ele se juntou a nós e veio para o Mundial”, pontuou o atacante Emmanuel Maboang, em entrevista à ESPN.
Consagração na Itália
A viagem para o Bel Paese seria inesquecível. Em uma Copa do Mundo marcada pela utilização, em massa, de esquemas táticos conservadores, primazes nas artes defensivas, Camarões acabaria sendo um colírio para os olhos. Seus desafios iniciais não eram nada fáceis. De cara, os africanos teriam pela frente a campeã vigente, a Argentina. “Dissemos que, além de Maradona, o resto da equipe era derrotável”, prosseguiu Maboang.
O placar final da estreia camaronesa provaria o acerto do atacante: Camarões 1, Argentina 0. Uma cobrança da falta, até certo ponto despretensiosa, originou um bate rebate na defesa argentina e a bola sobrou para o atacante François Omam-Biyik. Ele cabeceou para o gol e contou com um frangaço do goleiro Nery Pumpido. Aquele seria o único gol da partida, para incredulidade total no San Siro, em Milão, mesmo porque Camarões tinha um jogador a menos — e antes do fim da partida teria mais um. Outro destaque do confronto seria o goleiro N’Kono.
“O jeito que ele se move, o jeito que ele está alto, o bigode fantástico. Ele cativa seu coração de uma maneira inexplicável. Ele é o cara mais legal que você já viu [...] É neste momento que você percebe o que você quer fazer da sua vida. Você não quer ser simplesmente um goleiro - você quer ser esse tipo de goleiro. Você quer ser selvagem, corajoso, livre [...] É por isso que você se tornou um jogador de futebol. Não por dinheiro ou fama. Por causa da arte e do estilo desse homem, Thomas N'Kono. Por causa de sua alma”. Essas foram as palavras que o histórico goleiro italiano, Gianluigi Buffon, dedicou ao seu ídolo de infância, consagrado naquela partida contra a Argentina, diante daquele que era apenas um menino de 12 anos.
Depois de superar o time de Maradona, Camarões continuaria fazendo história. Com dois gols de Milla, bateu a forte seleção romena, que já contava com Gheorghe Hagi, 2 a 1. Esse seria outro jogo marcante, porque eternizaria a comemoração famosa de Roger, dançando junto à bandeirinha de escanteio. Com o triunfo, os Leões Indomáveis asseguraram avanço às oitavas de finais da competição. A goleada sofrida diante da União Soviética, na última rodada, 4 a 0, não interferiria em nada.
Adiante, os camaroneses enfrentariam uma Colômbia perigosa. Além de contar com a base do Atlético Nacional, campeão da Copa Libertadores de 1989, apresentava grandes jogadores como Carlos Valderrama e Freddy Rincón. Na casamata, estava Francisco Maturana, o campeão continental com os Verdolagas. Nada disso seria empecilho para Milla brilhar. Veteraníssimo, começou a partida no banco, o que seria determinante para seu sucesso. O jogo se encaminhou para a prorrogação. Em três minutos, Milla, que tinha as pernas frescas, decidiu, fazendo dois gols. Um deles histórico.
“Tive sorte, porque joguei com Carlos Valderrama, o capitão da Colômbia, no Montpellier. Tínhamos uma grande equipe, que incluía o Júlio César, o zagueiro brasileiro, e um jovem Laurent Blanc, que havia subido aos profissionais. Através de Valderrama, vi vídeos de Higuita driblando fora de sua área. Eu sabia que se fosse rápido o suficiente, poderia tirar vantagem de um erro. Funcionou”, contou Milla, à publicação inglesa FourFourTwo.
Quando René Higuita, o goleiro colombiano, saiu jogando, o atacante capitalizou a partir de seu erro. De nada adiantaria o tento tardio do cafetero Bernardo Redín. Pela primeira vez, um país africano chegara às quartas de finais da Copa do Mundo. O próximo desafio seria a Inglaterra. Então, o sonho acabou. Ou será que não? “A Inglaterra nos eliminou, mas estávamos felizes porque tínhamos feito um torneio muito bom e ido tão longe. 1990 foi uma experiência inesquecível”, comentou Milla.
De fato, a eliminação veio. Mas não faltou estilo e destemor. David Platt abriu o placar para os ingleses. Kundé empatou de pênalti. Eugene Ekeke virou. Sete minutos antes do fim, Gary Lineker voltou a igualar o placar e, na prorrogação, fez mais um, consumando o triunfo dos Three Lions. Naquela altura, o Stadio San Paolo, em Nápoles, já pulsava pelos africanos. Não era para menos. “Continuamos atacando porque queríamos divertir as pessoas. Para nós, antes de mais nada, o futebol era entretenimento, por isso queríamos ganhar de forma espetacular. Mas não era para ser”, acrescentou Roger Milla.
Na volta para casa, uma carreata esperava os jogadores, festejadíssimos. Haviam feito história. Já não se podia falar do futebol africano a partir de estigmas preconceituosos, como problemas para manter a atenção durante o jogo, ou ingenuidade na abordagem tática. Camarões havia provado que seu continente podia sonhar com coisas grandes. Astro daquele ano, Milla ainda seria escolhido para o time ideal da competição.
“Honestamente, não pensávamos realmente que estávamos escrevendo a história. Pensávamos no momento presente, que tínhamos uma partida para vencer e queríamos vencê-la. Só depois dissemos: ‘Isso nunca foi feito antes’”, relatou o goleiro reserva, Joseph-Antoine Bell, também à ESPN.
No Brasil, a campanha camaronesa também foi notada. “A alegria vai embora”, professou O Globo. “O futebol ‘moleque’ dos africanos caiu diante de uma equipe aplicada, que jogou de forma burocrática, mas que soube aproveitar melhor os erros adversários”, destacou o jornal.
Fim da linha para os precursores, não para o legado
Em 1990, Camarões tinha jogadores muito jovens, mas outros tantos já estavam no crepúsculo de suas carreiras. Alguns não estariam no time que se classificou à Copa do Mundo de 1994, nos EUA.
Mas, entre os viajantes, seguia presente Roger Milla, afinal ainda tinha outros negócios a concretizar. Em solo ianque, tornou-se o jogador mais velho a atuar em mundiais, aos 42 anos. Também se consagrou o mais idoso a marcar um gol. O primeiro recorde viria a ser batido pelo colombiano Faryd Mondragón, em 2014, e, depois, pelo egípcio Essam El Hadary, em 2018. O segundo persiste.
A campanha de 1994 não seria boa. O país terminaria o Grupo B, dividido com Brasil, Suécia e Rússia, na última posição. Apesar disso, Camarões se consolidaria um habitué em Copas do Mundo. E, além disso, serviria de inspiração para o continente. Mais tarde, Senegal e Gana seriam países a repetir os feitos de Camarões. Porém, eles já sabiam que era possível para os africanos ir longe. Os Leões Indomáveis já haviam esclarecido isso; o som de seu rugido ecoara por todo o continente, levando essa mensagem.
1 pena a eliminação de Camarões pra Inglaterra. Vacilou.
ResponderExcluirAh.. ouvi a narração de Camarões x Romênia entendi algo de romeno.