Quando a Internazionale apostou suas fichas nas virtudes alemãs
A partir da década de 1970, ganhou força a rivalidade futebolística entre Alemanha e Holanda. Em parte, foi o retrato de uma rejeição que os neerlandeses carregavam desde a invasão alemã durante a Segunda Guerra Mundial. Na altura, os países representavam as principais escolas de futebol no mundo; as virtudes germânicas personificadas por Franz Beckenbauer e as holandesas por Johan Cruyff. Essa realidade transbordou os países e, no final dos anos 1980, quando o Milan apostou nos melhores jogadores dos Países Baixos, a Inter alimentou a rivalidade local contratando alemães.
Rivalidade em Milão
Nos campos de futebol, foram muitos os motivos que justificaram o acirramento da disputa entre Alemanha e Holanda. Entre 1969 e 73, Feyenoord e Ajax dominaram a cena do futebol europeu, com vitórias consecutivas da Copa dos Campeões. Foram sucedidos pelo Bayern de Munique, vitorioso entre 1974 e 76. Nesse meio tempo, os germânicos venceram a Euro 1972 e o Mundial de 1974, em casa e superando justamente os holandeses, que encantaram o mundo com suas inovações táticas e com a riqueza de um repertório que seria lembrado como Carrossel Holandês.
“Eu não gosto de alemães. Toda vez que joguei contra jogadores alemães, tive problemas por causa da guerra. 80% da minha família morreu nessa guerra. Meu pai, minha irmã, dois irmãos. Todo jogo contra jogadores da Alemanha me deixa com raiva”, contou Willem van Hanegem, antes da final da Copa do Mundo de 1974.
Outros encontros importantes aconteceram nos anos que se seguiram. Na Copa de 1978, os países dividiram o grupo e, mais uma vez, viu-se equilíbrio: empate por 2 a 2. Na Euro 1980, a Alemanha voltaria a vencer, 3 a 2. Este confronto seria recordado por brigas entre Toni Schumacher e Huub Stevens, e René van de Kerkhof e Bernd Schuster. Oito anos mais tarde, mais gasolina seria colocada no fogo.
A Holanda superou a Alemanha nas semifinais da Euro 1988. Após o jogo, Ronald Koeman trocou camisas com Olaf Thon e zombou dos germânicos, ao fingir que se limpava com a camisa da Mannschaft. Na Copa de 1990, seria a vez de Frank Rijkaard cuspir em Rudi Völler, sendo os dois expulsos. Contudo, nessa altura, alemães e holandeses já estavam em conflito em um território completamente novo. Longe do contexto de seleções, Milão dividia craques das nações rivais.
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Em 1987, para dar forma ao seu trabalho de reconstrução no Milan, que não vencia a Serie A fazia quase uma década, período em que chegou a ser rebaixado por conta de seu envolvimento no escândalo do Totonero, o treinador Arrigo Sacchi escolheu criteriosamente os estrangeiros de que precisava. Alavancado pelo dinheiro de Silvio Berlusconi, do PSV, tirou Ruud Gullit; do Ajax, Marco van Basten. Com a dupla, conseguiu garantir imediatamente o título italiano. No ano seguinte, receberia o holandês que faltava: Rijkaard.
Para frear o renascimento milanista, o treinador Giovanni Trapattoni, discípulo de Nereo Rocco e adepto do catenaccio, foi à Alemanha buscar consistência. Após a Euro 1988, fechou com Lothar Matthaus e Andreas Brehme. Completando a lista de estrangeiros interistas estava o argentino Ramón Díaz.
Apesar disso, a Inter tinha que renovar sua relação com os germânicos. Se o primeiro de todos, Horst Szymaniak, contratado nos anos 1960, não tinha dado os melhores resultados aos Nerazzurri, Hansi Müller acabaria tendo passagem também apagada no princípio da década de 80. Nem mesmo o craque Karl-Heinz Rummenigge escaparia. Apesar de ter tido bom desempenho entre 1984 e 87, não conquistou títulos e sofreu com diversas lesões.
Trapattoni tinha razão
Fazia oito temporadas que a Inter não conquistava o Scudetto. Em uma época marcada pela profusão de craques internacionais pelas mais diversas equipes italianas, tal recorde não chegava a ser uma tragédia, mas incomodava. Enquanto Brehme chegou para completar uma retaguarda poderosa, que tinha Walter Zenga no gol, Giuseppe Bergomi pela direita, Andrea Mandorlini como líbero, e Riccardo Ferri na zaga (ocasionalmente substituído por Giuseppe Baresi), Matthäus acertou o meio-campo nerazzurri.
Brehme era um lateral completo. Eficiente em termos ofensivos e defensivos, excepcional com os dois pés. Não era dos mais velozes, mas tinha a perspicácia necessária para ler bem o jogo e compensar suas deficiências. Além disso, trazia uma pequena, mas valiosa, dose de imprevisibilidade, já que podia ir à linha de fundo cruzar com a perna canhota, ou caminhar pela faixa central, para arrematar de direita.
Por outro lado, Matthäus levou a Milão as qualidades de um atleta que sabia fazer tudo. Não por acaso, durante a carreira desempenharia quase todas as funções do meio-campo, encerrando sua trajetória como líbero. Na Inter, o alemão fo quem mais entregou técnica na meia-cancha. Se Gianfranco Matteoli era um volante com pegada e Nicola Berti trazia dinâmica ao time, com muito trabalho duro e chegada à frente, Matthäus conjugava essas qualidades e ainda era um líder.
O que a temporada revelou serviu de prova: Trapattoni estava certo, uma dose de Alemanha faria maravilhas àquela esquadra interista. Aliás, a Inter ainda evidenciou que não necessariamente um time organizado defensivamente adotaria uma postura negativa no campo de jogo. Ao mesmo tempo em que os nerazzurri apresentaram a melhor defesa da Serie A, em 1988-89, também tiveram o melhor ataque: foram 67 gols marcados e apenas 19 sofridos, contabilizando um impressionante saldo positivo de 48 tentos.
A Inter atropelou quase todos os times que entraram em seu caminho. Em 34 rodadas, venceu 26 vezes, empatou em seis ocasiões, e perdeu dois míseros jogos. Tão importante quanto esse recorte foi a invencibilidade nos clássicos. Na 9ª rodada, Aldo Serena garantiu a vitória da Inter ante o Milan, 1 a 0. Na rodada seguinte, os interistas empataram com a Juventus, 1 a 1. No segundo turno, a Inter empatou sem gols com o Milan; depois repetiu o 1 a 1 com os bianconeri.
O time ficou invicto até a 17ª rodada, quando enfim foi batido em um jogo maluco: 4 a 3, para a Fiorentina, de Roberto Baggio. O time só voltaria a ser superado na 33ª jornada, contra o Torino, com gol do brasileiro Müller. Na altura, já era campeão, marca consumada na 30ª rodada, contra o Napoli. Outra demonstração de força da Inter ficou por conta da artilharia da Serie A. Nunca antes tão prolífico, Serena fez 22 gols, ficando à frente de Van Basten e de Careca, como goleador máximo do certame.
“Trapattoni foi muito importante para nós, porque o que o grupo criou foi muito especial, não éramos apenas colegas, mas amigos e havia muita camaradagem dentro e fora do campo, o que nos ajudava a vencer”, comentou Brehme, ao site oficial da Inter.
Provando que Matthäus e Brehme não eram jogadores quaisquer, também seus registros artilheiros chamaram a atenção. Enquanto o meia fez nove gols no ano, o lateral anotou três bolas nas redes. Os alemães foram um bom remédio ao talento holandês do Milan. Seu ano de estreia só não foi melhor porque os Rossoneri acabaram vencendo a Copa dos Campeões da Europa, e as suas próprias campanhas na Coppa Italia e na Copa da Uefa deixaram a desejar.
Klinsmann, Mundial e Copa da Uefa
Ramón Díaz havia feito uma boa temporada pela Inter em 1988-89, mas Trap não se esforçou para segurá-lo quando o Monaco fez uma proposta. Tinha em mente uma nova contratação. O Stuttgart havia sido vice-campeão da Copa da Uefa. Perdera uma final movimentada para o Napoli, de Diego Maradona — contudo, exibindo ótimo futebol e evidenciando as qualidades de Jürgen Klinsmann. Logo, a Inter concluiu seu triunvirato.
Klinsi não demoraria a se tornar um dos jogadores mais populares junto aos torcedores nerazzurri. Ele não parecia adaptável àquela equipe, que primeiro se defendia. Tampouco mostrava um físico compatível com as exigências do duro futebol do Bel Paese. Ainda assim, triunfou, afinal contava com apurado faro de gol e não desistia das bolas. Chutava bem, cabeceava com qualidade e era muito rápido. Não teve dificuldades para se entrosar com seus compatriotas, nem com Serena. Foi também com rapidez que aprendeu a falar italiano.
“Lothar e Andy me explicaram muitas coisas, eles foram fundamentais quando cheguei a Milão. Sempre se diz que aquela foi a Inter dos alemães, mas não podemos nos esquecer de que a base do time era italiana: Bergomi, Berti, Ferri, Serena, Zenga. Muitos campeões que eram parte desse grupo. E isso foi empolgante, porque você se sentia mais italiano do que estrangeiro. Dividimos muitos sucessos com eles”, contou Klinsi, ao site oficial da Inter.
Entretanto, a Inter não renovou o título italiano, que ficou com o Napoli. Em termos de taças, aquela não seria uma grande temporada. A Inter decepcionaria na Copa dos Campeões, eliminada pelo Malmö, na primeira rodada. Venceria apenas a Supercoppa, superando a Sampdoria. Mas a vida continuou sorrindo para os alemães. Klinsmann foi o artilheiro interista na temporada, com 15 gols. Matthäus impressionou, com 11 tentos, assim como Brehme, ele próprio autor de seis.
A redenção do trio viria no Mundial de 1990. Titulares da Alemanha, teriam desempenho capital no tricampeonato alemão. Capitão, Matthäus acabaria sendo o artilheiro do time, com quatro gols. Klinsi registraria três, mesma marca de Brehme — o responsável pelo tento do título, frente à Argentina. Com o Mundial sendo disputado na Itália, a popularidade do trio explodiu, especialmente porque os italianos haviam sido eliminados justamente pela Albiceleste.
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Com todos os méritos, ao final do ano, Matthäus receberia o primeiro prêmio de melhor jogador do mundo entregue pela FIFA.
E os companheiros da Mannschaft manteriam o alto nível na temporada 1990-91. Outra vez terceira colocada na Serie A, a Inter conseguiu colocar um sorriso no rosto de seu torcedor através da Copa da Uefa. Depois de passar por Rapid Viena, Aston Villa, Partizan, Atalanta e Sporting, os nerazzurri combateram a Roma (que também tinha seus alemães, Völler e Thomas Berthold) na decisão. Na partida de ida, Matthäus e Berti marcaram para a Inter: 2 a 0. A volta teve vitória romanista, mas o solitário gol de Ruggiero Rizzitelli foi insuficiente para levar o título à capital italiana.
Dessa vez, Matthäus foi o artilheiro do time na temporada, com 16 gols. Klinsmann anotou 14 e Brehme apenas um. Em três anos com alemães, a Inter conquistou três títulos. Dava para reclamar?
O encanto acabou com Sammer
Contudo, toda festa tem hora para acabar. Após cinco anos no comando interista, Trap fechou com a Juventus. O time não tardou a degringolar. O treinador Corrado Orrico, o substituto, não durou sequer uma temporada, substituído pelo ídolo Luis Suárez no meio da campanha. A Inter terminaria o Campeonato Italiano na oitava colocação, sendo ainda obrigada a ver o Milan ser campeão outra vez. Klinsmann faria apenas sete gols, Matthäus quatro, e Brehme um.
Na Coppa Italia, o time caiu para a rival Juventus. Na Copa da Uefa, sequer superou a primeira fase, freado pelo Boavista. Assim, ao final do ano, o êxodo foi inevitável. Matthäus acertou seu retorno ao Bayern, Brehme partiu para o Zaragoza, e Klinsi se mudou para o Monaco. Não obstante, a Inter ainda apostaria em mais um germânico; justamente naquele que era, possivelmente, a figura mais semelhante a Lothar Matthäus.
Depois de conquistar a Bundesliga pelo Stuttgart, Matthias Sammer acertou com a Inter. A bem da verdade, a negociação já havia sido consumada antes, mas o limite de estrangeiros fez com que o polivalente talento alemão seguisse na Suábia. Porém, um dos motivos que levaram o Cabeça de Fósforo, como era conhecido, a fechar contrato com a Inter era a presença de seus compatriotas.
Em uma temporada em que o limite de estrangeiros subiu para quatro, Sammer não pôde ver sua adaptação ser facilitada pelas presenças de Matthäus, Brehme e Klinsmann. As chegadas do uruguaio Rubén Sosa, do russo Igor Shalimov, e do macedônio Darko Pancev, não ajudaram em nada. Vale lembrar: Sammer fora criado na Alemanha Oriental, iniciando sua carreira no Dynamo Dresden. Fazia pouco tempo que conhecia o mundo capitalista.
As qualidades de Matthias seriam reconhecidas, com quatro gols marcados em 12 jogos. Mas, no meio da temporada, ele pediu o boné. Foram apenas seis meses vestindo azul e preto. O entrosamento de dentro do campo não se refletia fora. Quando o Borussia Dortmund fez uma proposta de retorno à Alemanha, a Inter aceitou. Acabava ali a frutífera relação entre a Inter e o futebol alemão, desenvolvida a partir da metade final dos anos 1980.
Se as presenças de Matthäus, Brehme e Klinsmann não colocaram a Inter exatamente no mesmo patamar do Milan, ainda assim deram resultados concretos e motivos para os nerazzurri sorrirem. Emblemático, símbolo de uma era, o trio pode ter certeza de que sempre será bem recebido em Milão.
Apesar dos dos títulos, a Inter "alemã" foi ofuscada na época pelo Milan "holandês" e o Napoli "argentino".
ResponderExcluirTem razão, Stéphano!
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