Quando o Mechelen ressurgiu na Bélgica e brilhou na Europa
A história do futebol belga registra a presença de três forças dominantes: Anderlecht, Club Brugge e Standard Liège. Unido, o trio soma mais da metade de todos os campeonatos nacionais disputados, desde a temporada 1895-96. No entanto, de tempos em tempos o inesperado se apresenta, levando a glória belga para destinos imprevistos. A partir da segunda metade dos anos 1980, foi o que aconteceu em Mechelen, na Antuérpia.
Assume John Cordier
A década de 1980 deixou marcas indeléveis no curso da humanidade. Aquele foi um decênio marcado por avanços tecnológicos, com o começo da afirmação de famosos conglomerados do campo da tecnologia. Foi neste momento em que foi lançado o primeiro sistema operacional Windows, pela Microsoft. Os primeiros Macintosh, da Apple, também surgiram nessa época. Esse é o contexto em que a Telindus expandiu.
Fundada em 1969 pelo belga John Cordier, a empresa de TI vivia tempos agitados e promissores. Conforme a companhia crescia, também progredia a fortuna de seu principal representante. Eventualmente, o homem nascido na cidade de Oudenburg decidiu investir em futebol. Em 1982, três anos antes de a Telindus abrir seu capital no mercado de ações, Cordier assumiu a presidência do KV Mechelen. Substituiu Herman Candries, no clube desde 1977.
Eram tempos difíceis para os Malinois. Em 1981-82, o time, que chegara à elite pela primeira vez nos anos 1920 e que havia conquistado três títulos belgas na década de 1940, fora rebaixado à segunda divisão — incontestavelmente: com a lanterna e dez pontos a menos do que o penúltimo colocado. Aquilo era apenas o reflexo de anos 1960 e 70 vividos em um vertiginoso sobe e desce.
Já na primeira campanha sob a liderança de Cordier, o Mechelen retornou à elite. Treinado por Leo Canjels, o time amarelo e vermelho foi o campeão da segundona. E voltou ao primeiro escalão fazendo barulho. Em 1983-84, emplacou logo um sexto lugar, ficando dois pontos abaixo da zona de classificação à Copa da Uefa. Era um time que perdia pouco, mas empatava demais.
Contudo, na campanha seguinte, a zaga viraria uma peneira e o ataque perderia eficiência. O resultado foi um insípido 12º lugar. Até mesmo os dois rebaixados marcaram mais tentos do que o Mechelen. Era a hora de mudar de nível e Canjels não parecia ser o homem certo para a missão. Durante meia temporada, o alemão Ernst-August Künnecke conduziu o time, igualmente sem sucesso. Então, na virada de 1985 para 86, os Malinois estavam perigosamente próximos da zona de descenso, em um conhecido roteiro.
Desembarca Aad de Mos
A solução para as dificuldades do Mechelen estava aproximadamente 120 km distante de Mechelen. Desempregado desde a conflituosa demissão do Ajax, Aad de Mos se reuniu com Cordier em Roterdã e, rapidamente, ficou decidido que ele comandaria o ambicioso projeto do empresário.
Apesar de jovem, 38 anos, o comandante já havia trabalhado com Leo Beenhakker e Kurt Linder, tendo também liderado os Ajacied às conquistas da Eredivisie em 1982-83 e 1984-85, além da Copa da Holanda de 1982-83.
“Em uma manhã de domingo, estava sentado em frente a Cordier em uma cervejaria de Roterdã. Ele me deixou uma impressão excepcional, me deu a garantia de que eu teria controle total no Mechelen. Ele disse: ‘Confio em seus olhos’. Assinei meu contrato ali mesmo”, revelou o treinador à revista Sport.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
O impacto do trabalho do holandês chegou logo. Se o Ajax via em sua predileção por defesas fortes um impasse, quase uma ofensa à ideia de jogo ofensivo que viria a ser implementada por Johan Cruyff, seu substituto em Amsterdã, para Cordier aquilo era exatamente o desejado. Também porque De Mos era um disciplinador nato. Estabelecia regras rígidas e exigia seu estrito cumprimento.
Alguns jogadores foram importantes no começo do trabalho do treinador. O veterano defensor Walter Meeuws, antigo internacional belga, havia sido contratado um ano antes junto ao Ajax e compunha a espinha dorsal do time. Costumava ser acompanhado pelo holandês Graeme Rutjes. No meio-campo, quem dava as cartas era Erwin Koeman, o irmão de Ronald, vindo do Groningen. Já no ataque, o grandalhão Piet Den Boer era referência.
“A primeira coisa que ele fez depois de chegar foi nos tornar duros de enfrentar. Para alcançar isso, tivemos que treinar intensivamente, por longas horas. Aad literalmente conduzia os jogadores através de muitos exercícios e treinos. Sempre queria estar 100% certo de que, na estrutura do time, cada jogador sabia exatamente seu papel individual e coletivo. Ele realmente vivia pelo futebol, e, devo dizer, assistia muitos jogos, sempre observando os oponentes e contratações em potencial”, disse Koeman ao portal Beyond The Last Man.
Foto: Photo News/Arte: O Futebólogo |
Logo na chegada, De Mos apenas trabalhou para livrar o Mechelen do rebaixamento. Terminou o Campeonato Belga no 11º lugar. Foi em 1986-87 que começou a imprimir sua marca no time.
Hora de voltar a vencer
Antes do início da campanha, já tendo diagnosticado os pontos que entendia falhos no elenco do Mechelen, o técnico holandês foi às compras: “Dirigi de Haia a Bosuil, na Antuérpia, por seis meses. Visitei times como Standard, RWDM e Waterschei, e foi assim que descobri jogadores como Clijsters, Emmers e De Nil e os levei ao Mechelen. Quando adicionamos Preud’homme, de repente, tínhamos um time do mundo”, comentou o treinador à citada entrevista ao Sport.
Sem perder nenhum atleta importante, o holandês encontrou soluções para a equipe. A mais relevante seria o goleiro Michel Preud'homme. Desprestigiado após o envolvimento no escândalo de manipulação de resultados que envolveu o Standard Liège, em 1984, o arqueiro precisava recuperar seu status. Efetivamente, todas as contratações feitas trariam impacto positivo. Lei Clijsters, por exemplo, teria uma temporada para se adaptar, mas logo substituiria Meeuws, aposentado em 1987.
Na primeira campanha completa de De Mos, o Mechelen brilhou. Foi o vice-campeão belga. Ficou somente dois pontos atrás do campeão Anderlecht e concedeu míseros 18 gols, em 34 partidas. Um recorde defensivo absoluto naquela campanha. Isso sem perder eficiência ofensiva. Tudo bem: os Malinois tiveram o ataque menos prolífico dentre os quatro primeiros times. Ainda assim, somaram mais bolas nas redes adversárias que todos os demais clubes.
“Quando ele estava completamente satisfeito com a defesa, lentamente, construiu o meio-campo e o ataque. A principal coisa que tínhamos era sermos um time de verdade, muito forte junto. Aad tinha a habilidade de conhecer seus jogadores por completo e os tornar melhores taticamente”, disse Rutjes, também ao Beyond The Last Man.
E o time não parou no vice-campeonato nacional. Na Copa da Bélgica, eliminou Seraing, Beveren e Winterslag (hoje, Genk), no caminho até a decisão. Na final, enfrentou o RFC Liège, que havia deixado pelo caminho Anderlecht, Club Brugge e Cercle Brugge. Em Bruxelas, no estádio Constant Vanden Stock, o Mechelen fez o suficiente para levantar uma taça inédita. De Boer marcou o solitário tento da libertação, assegurando o título e a vaga à primeira competição continental da história dos homens de amarelo e vermelho.
Na Europa, um sonho...
Em 1987-88, mais uma vez, o Mechelen ficou no quase no Campeonato Belga. Foi o segundo colocado, outra vez com a melhor defesa do certame e ficando dois pontos atrás do vencedor, agora o Club Brugge. Paralelamente, o time viveu um sonho na Recopa Europeia.
Se por um lado sofreu com as perdas de Meeuws, ao pendurar as chuteiras, e com a saída do atacante Ronny Martens, que rumou ao Gent, novas contratações acabariam completando o time. Para o meio-campo chegou Marc Emmers, jogador que exercia uma diversidade de funções. O ataque recebeu Pascal de Wilde e a chispa de talento que parecia faltar veio de Israel. Craque do Beitar Jerusalem e de sua seleção nacional, o habilidoso Eli Ohana foi instalado na ponta esquerda do time. Quase intransponível, a defesa já estava pronta.
A corrida pelo triunfo europeu começou na Romênia. Desde o princípio, a confiança esteve em alta, como registrou o colunista Jacques Sys. Na Bélgica, era costume que os clubes convidassem membros da imprensa para jantar, antes de estreias em competições continentais. O Mechelen não fugiu à regra. Às vésperas do início, Cordier teria profetizado: “O clube triunfará. O clube de vermelho e amarelo”, garantiu.
Contra o defensivo Dinamo, o Mechelen teve de se aplicar, mas não passou apuros. Em casa, no estádio Achter de Kazerne, venceu por 1 a 0. Fora, por 2 a 0. O adversário seguinte foi o escocês St. Mirren. Na ida, a trave impediu, algumas vezes, que o placar fosse movimentado. Ainda assim, na volta, como visitantes, os Malinois deram conta do recado, alcançando outro 2 a 0, com dois tentos bem conseguidos por Ohana.
Na sequência, a neve assustou, mas não freou o ímpeto dos belgas. Depois de alcançar uma magra vitória em casa, o Mechelen viajou a Minsk, para enfrentar o Dinamo local, de Sergei Aleinikov. Na União Soviética, o time precisou de toda a sua consistência para avançar. Ohana abriu o placar para o time amarelo e vermelho. Aleksandr Kisten empatou e houve pressão dos anfitriões até o fim. No apito final, o marcador ainda registrava 1 a 1.
Nas semifinais, os Malinois enfrentaram um time de segunda divisão. Como? Isso mesmo. A Atalanta não era campeã da Coppa Italia. Porém, o vice-campeonato havia sido alcançado ante o Napoli, que também triunfou na Serie A e, assim, disputaria a Copa dos Campeões. Por isso, a esquadra bergamasca herdou a vaga na Recopa. E o time tinha seus destaques, o principal sendo o sueco Glenn Strömberg. Duas vitórias apertadas levaram os belgas adiante, ambas por 2 a 1 (a segunda delas em uma inspirada virada, buscada aos 35 minutos do segundo tempo).
… e uma vingança
O Mechelen chegou à final da Recopa moralizado. Não era um azarão, mas também não podia ser considerado favorito. Isso porque, do outro lado, estava um gigante europeu: o Ajax. Que não fosse o melhor time dos Godenzonen da década, tendo Cruyff se mudado para o Barcelona, ainda era um adversário pesado. Carregava nomes como os de Danny Blind, Aron Winter, Arnold Mühren, John van't Schip e Rob Witschge. No banco, um garotão: Dennis Bergkamp.
A decisão aconteceu em Estrasburgo, no Stade de la Meinau. 12 mil torcedores do Mechelen viajaram à França para acompanhar o desenlace.
Aquele encontro ainda tinha um componente a mais: o desejo de vingança de Aad de Mos, que não havia engolido sua demissão pelos holandeses, lá em 1985: “Três anos antes, esses mesmos senhores me expulsaram, três jogos antes do final da competição [Eredivisie 1984-85], enquanto estávamos uma rua à frente do segundo colocado. Eles me tiraram o título, e ainda os culpo por isso”, falou ao Sport.
No dia 11 de maio de 1988, as coisas não demoraram a se desenhar favoráveis aos belgas. Aos 16 minutos do primeiro tempo, desesperado, Blind deu um carrinho por trás, desclassificante, em Emmers. Sem titubear, o árbitro alemão, Dieter Pauly, mandou o defensor do Ajax para o chuveiro mais cedo.
Aos 53’, Ohana recebeu uma cobrança lateral na ponta canhota. Com habilidade, superou a marcação de Frank Verlaat e cruzou na cabeça de Den Boer, no que foi o único gol da decisão. De Mos conseguira: transformara o time, que regulava entre acessos e descensos, em forte competidor na Bélgica e campeão europeu. E a boa fase persistiria.
No começo da temporada 1988-89, já com as adições de Bosman, curiosamente ex-Ajax, e de um jovem Marc Wilmots, o Mechelen superaria outro holandês. Na Supercopa Europeia, o adversário foi o PSV Eindhoven. De nada adiantou contar com a qualidade do treinador Guus Hiddink, e com o talento de gente como Ronald Koeman e Romário. Os belgas triunfaram impositivamente. Na ida, vitória por 3 a 0. Na volta, derrota por 1 a 0. No agregado: 3 a 1 para os comandados de Aad de Mos.
E então chegou o Anderlecht
Naquela temporada, o Mechelen ainda faria outra boa aparição na Recopa Europeia, eliminado nas semifinais pela Sampdoria, de Roberto Mancini, Gianluca Vialli e Toninho Cerezo. Ademais, enfim conquistaria o Campeonato Belga: à sua maneira, com a melhor defesa.
O time vivia seu auge, que seria ainda mais desfrutado em 1989-90, com a primeira participação na Copa dos Campeões (avançou até as quartas de finais, caindo perante o Milan). Além disso, entre 1987 e 1989, consecutivamente, a Bélgica elegeria jogadores do Mechelen os melhores do ano: Preud’homme, em 1987 e 89, Clijsters, em 88. Contudo, ainda que seguisse fazendo boas campanhas, com um terceiro lugar no Campeonato Belga e outro vice-campeonato, em 1990-91, os problemas se acumularam.
Em 1989, o Anderlecht se cansou de ver os sucessos daquele intruso e convenceu De Mos a mudar-se a Bruxelas. Nos anos seguintes, o treinador também persuadiria alguns ex-comandados a segui-lo, caso do zagueiro Rutjes, do meio-campo Emmers e dos atacantes Bosman e Bruno Versavel. Em um primeiro momento, o Mechelen até conseguiu manter um bom elenco, trazendo peças de reposição de qualidade — gente como os suecos Klas Ingesson e Kennet Andersson. Mas isso não durou muito.
A Telindus, empresa de John Cordier, entrou em crise e, em 1992, o mandatário deixou o clube. Até 2018-19, quando conquistaram outra vez a Copa da Bélgica, os Malinois não voltaram a sentir o gosto da vitória. Pior: em 1996-97, a tradicional camisa amarela e vermelha não foi forte o suficiente para evitar o ocaso do time, que voltou à sua rotina mais tradicional, caindo para a segunda divisão.
Os dias de Cordier e Aad de Mos ficaram no passado, mas não é possível esquecer os feitos incríveis do clube na parte final dos anos 1980 e início dos 90. O Mechelen esteve nos grandes palcos europeus. Mais que competindo, obtendo vitórias históricas.
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