A irrepetível vitória da Iugoslávia no Mundial Sub-20 de 1987
Um dos charmes das disputas de base é a capacidade de estimular a imaginação de quem as acompanha. Esquadrões juniores se transformarão em equipes profissionais de ponta? Quem pode dizer… O certo é que, no curso da história, poucos times transmitiram essa sensação tanto quanto a Iugoslávia. No Mundial Sub-20 de 1987, os eslavos apresentaram uma geração envolvente de prodígios. A história providenciou um desfecho que não foi, de todo, inesperado, mas que frustrou a expectativa causada por aquele grupo de jovens.
O cenário não era dos mais fáceis
O futebol iugoslavo não vinha em bom momento. Ausentes na Euro 1980, os Plavi fizeram campanha fraca na Copa do Mundo de 1982 e no Europeu de 1984, em ambos os casos caindo na fase de grupos. Para o Mundial de 1986, a equipe sequer se classificou. O alento foi a conquista do Bronze Olímpico, em 1984, com um time que contava com Dragan Stojkovic, Safet Susic e Srecko Katanec.
Na base, a situação era diferente, ainda que isso não se verificasse nas competições mundiais. A única participação da Iugoslávia no Mundial Sub-20 havia acontecido em 1979. Na oportunidade, a equipe caiu na fase de grupos, acompanhando o avanço da Polônia e da Argentina, liderada pela dupla Diego Armando Maradona e Ramón Díaz — a futura campeã.
A situação era mais favorável nas disputas europeias. Comandados pelo talento de Vahid Halilhodžić, em 1978, os Azuis venceram a Euro Sub-21. Além disso, nos certames de 1980 e 1984, a equipe avançaria até as semifinais. Já em 1979, foi o time sub-18 que conquistou a disputa continental de sua categoria.
A questão é que os sucessos das categorias de base não se materializavam em resultados para a equipe principal. Não havia dúvidas quanto ao fato de que havia qualidade sendo maturada. Mas faltavam resultados concretos.
É preciso ressaltar que a crise do futebol profissional iugoslavo não era um acontecimento isolado. Em maio de 1980, a supernação perdeu o líder responsável por inspirar um senso de unidade nacional. Marechal Tito faleceu e, a partir desse evento, a dissolução da Iugoslávia foi deixando de ser assunto comentado à boca pequena. Simultaneamente, o país entrou em colapso econômico. A Cortina de Ferro se esfarelava, o Partido Comunista perdia força e o desemprego avançava, galopante.
Levantes populares passaram a ser uma constante. Sem a mão pesada de Tito, o peso das diferenças étnico-religiosas foi se tornando insustentável para as populações locais, obrigadas a simular um senso de unidade que nunca existiu. Que a Iugoslávia tenha sido poderosa e imponente, o fato é que a Sérvia era a nação que habitava seu seio. Não poderia haver prova mais evidente disso do que o fato de o país ter em Belgrado a sua capital.
Um time incompleto e, ainda assim, excepcional
Ainda assim, de alguma forma, a UEFA avaliou que seria uma boa ideia entregar à Iugoslávia a honra de sediar o Europeu Sub-18, de 1986. E havia otimismo. Para chegar à fase final da disputa, foi preciso superar Espanha e França nas eliminatórias. E, além da relevância inerente à competição, havia vagas no Mundial Sub-20 do ano seguinte em jogo.
A bem da verdade, não era difícil conseguir a classificação, já que havia seis lugares em disputa e oito times os perseguindo. Com mais sorte do que juízo, a Iugoslávia acabou assegurando seu posto na competição do mundo, a ser disputada no Chile.
Após perder para a Alemanha Oriental — que seria campeã — nas quartas de finais, os Plavi enfrentaram a Romênia em uma repescagem. Com a classificação em jogo, não deram sopa para o azar. Mandaram os romenos para casa com uma sonora goleada na bagagem, 5 a 0. O curioso é que, embora a Iugoslávia fosse disputar um certame mundial, não havia empolgação. O compromisso não era visto como importante pelos gestores do futebol do país.
Algumas decisões deixaram sublinhado o fato de que o Mundial Sub-20 de 1987 não era uma prioridade para os iugoslavos. Apenas um jornalista foi enviado para acompanhar a campanha dos prodígios nacionais.
Toma Mihajlović viajou a Santiago, mas, a bem da verdade, sua verdadeira missão jornalística era buscar relatos junto à comunidade iugoslava expatriada no Chile. “Ninguém tinha quaisquer expectativas com o time. Pensávamos que ele ia jogar os três jogos da fase de grupos e voltar para casa. Mas quando chegaram no Chile, aqueles jogadores mostraram outra cara”, relatou Mihajlović ao também jornalista Jonathan Wilson, em texto publicado no Guardian.
Além disso, o elenco escolhido para a viagem à América do Sul não representava o melhor material humano local.
O capitão Aleksandar Djordjevic, suspenso por quatro jogos após uma expulsão em uma partida ante a Hungria, ficou fora. Também os lesionados Slaven Bilic, Igor Berecko, Dejan Vukicevic, Igor Pejovic e Seho Sabotic foram privados da excursão. Em disputa contratual com o Vardar Skopje, Boban Babunski foi mais um preterido. Porém, a situação mais dramática foi a que justificou as ausências de Sinisa Mihajlović, Vladimir Jugovic e Alen Boksic. No caso do trio, a Federação Iugoslava entendeu que eles teriam maiores benefícios permanecendo em seus clubes.
Ainda assim, havia talento de sobra. O treinador Mirko Jozić, homem certo para a missão, tendo passado por todas as equipes de base do país nos últimos 15 anos, pôde convocar nomes que, em pouco tempo, ganharam fama. Gente que ia do goleiro Dragoje Leković ao centroavante Davor Šuker, passando por Robert Jarni, Igor Štimac, Zvonimir Boban, Robert Prosinečki e Predrag Mijatović.
O interessante foi que Jozić conseguiu fazer o que os líderes políticos fracassavam retumbantemente. Apesar da aura independentista pairar pelo elenco, o ambiente entre os jogadores era ótimo. Sérvios, croatas, bósnios e montenegrinos se deram bem.
“Éramos um grupo de amigos, e tínhamos grandes jogadores, como Prosinecki, Mijatović, Savicevic, Suker [...] Mas, a Iugoslávia não poderia nunca estar no meu coração, porque sou croata. Eu dava tudo por causa dos meus companheiros. Não por causa da Iugoslávia”, diria Boban aos catalães do Sport, anos mais tarde.
Futebol que empolgou o povo chileno
Em 1987, haviam transcorrido 25 anos entre a derrota iugoslava contra o Chile, válida pela disputa do terceiro lugar da Copa do Mundo de 1962, e a estreia de sua geração mais talentosa no Mundial Sub-20. O palco foi o mesmo: o vivido estádio Nacional de Santiago. Em ambos os eventos houve lotação máxima: 67.000 pessoas. Porém, os desfechos acabariam sendo diferentes.
A derrota eslava e perda do terceiro lugar mundial, 1 a 0, deu lugar a uma vitória hipnotizante: 4 a 2. Em grande tarde-noite de Boban, Štimac e Šuker, os chilenos até marcaram dois tentos, mas não tiveram vez. Com contragolpes vertiginosos, aquele conjunto de individualidades começava a mostrar que era bem mais do que isso.
As duas rodas seguintes confirmariam isso: 4 a 0 na Austrália e 4 a 1 contra Togo. Šuker se candidatava a artilheiro do certame, somando mais três gols nessas partidas.
Com resultados tão expressivos, a Iugoslávia avançou com o primeiro lugar de seu grupo. Logo após a partida, já sabia quem enfrentaria na fase seguinte. Antes de a bola rolar, poderia enfrentar Itália ou Brasil. Porém, os italianos não deixaram a peteca cair. Consequentemente, os eslavos tiveram que enfrentar a Canarinho. Antes do confronto, o repórter da Placar, Milton Costa Carvalho, alertou que a Iugoslávia era “uma impiedosa máquina de golear”.
Ainda assim, era o time brasileiro que surgia como favorito. Treinado por Gílson Nunes, tinha Ronaldo no gol, André Cruz na zaga, César Sampaio fazendo as vezes de lateral direito, Bismarck e William na meia cancha, e Alcindo no ataque. Era visto como o melhor esquadrão do torneio. A derrota para a Itália havia sido um mero deslize. Porém, não se olvidava que era a equipe do Leste Europeu a que havia desempenhado o futebol mais envolvente até ali.
Apesar disso, voltaria a ficar registrado o desprestígio do torneio junto aos representantes do futebol da Iugoslávia. Às vésperas da decisão, o Estrela Vermelha teria um jogo importante contra o Club Brugge, válido pela Copa da Uefa. Diante disso, o time alvirrubro, com aval da federação local, pediu o retorno de Prosinečki. Porém, com apoio da Fifa, Jozić conseguiu manter seu craque.
Bola rolando. Aos 44 minutos da etapa inicial, no dia de seu aniversário, Alcindo abriu o marcador para os brasileiros. Porém, pouco depois do intervalo, Mijatović empatou de cabeça: “Foi o meu primeiro gol de cabeça, o primeiro da minha vida. Saltei e, quando estava vendo replays do gol, não acreditei que aquele era eu”, disse o atacante ao documentário The Last Yugoslav Football Team.
No final da partida, ele, Prosinečki, acertaria uma bela cobrança de falta, classificando os eslavos, para delírio dos chilenos que, naquela altura, já haviam adotado a envolvente Iugoslávia como seu segundo time.
Para Alcindo, ficou uma nota positiva, apesar da eliminação no dia de soprar velas. Hospedado no mesmo hotel que os brasileiros, Mirko Jozić o cumprimentaria pelos vinte anos, oferecendo palavras valorosas, conforme reportou a revista Placar: “Vocês mereciam vencer, são os melhores do mundo e só perderam porque no futebol nem sempre ganha o time superior”.
Alemanhas pelo caminho
Na semifinal, a Iugoslávia teve a chance de se vingar. Superada pela Alemanha Oriental no Europeu Sub-18 do ano anterior, podia devolver a gentileza à sua algoz. Liderada por Matthias Sammer, à época atacante no Dynamo Dresden e já convocado para a seleção principal, a equipe germânica era promissora. Mas não tanto quanto a Iugoslávia.
Aproveitando o bate e rebate na área rival, Štimac abriu a contagem. Sammer empataria, aparecendo no segundo pau, após escanteio. Contudo, fatal, Šuker acertaria um canhão de cabeça para garantir o avanço eslavo.
Finalista, a Iugoslávia já era, então, apontada como um dos melhores times da história dos Mundiais de juniores. Apesar disso, tinha de superar a tradicional Alemanha Ocidental. E acumulava problemas. Mijatović, Prosinečki e Štimac estavam suspensos. Houve até acusações de que o árbitro australiano Richard Lorenc havia garantido cartões para os atletas na semifinal propositalmente, após briga com Dragan Sekularsc, ídolo iugoslavo.
No dia 25 de outubro de 1987, na véspera do aniversário de Jarni, Jozić mandou a campo um time com Lekovic; Brnovic, Jankovic, Pavlicic, Skoric; Petric, Pavlovic, Jarni, Boban; Mijucic e Šuker. Por sua vez, o ídolo alemão Berti Vogts alinhou Brunn; Metz, Luginger, Strehmel e Schneider; Dammeier, Spyrka e Möller; Witeczek, Eichenauer, Reinhardt. Não havia dúvidas de que o homem a ser vigiado era o do craque Andreas Möller, embora Marcel Witeczek viesse em grande fase artilheira desde o Mundial Sub-16, dois anos antes.
Como se espera de uma final, o jogo foi tensão pura. Por isso, a sensação de título foi real quando Boban abriu o placar cinco minutos antes do final da partida. Acertando um petardo de perna direita, o meia saiu enlouquecido rumo a uma também exultante torcida chilena para comemorar. Eliminados pela Alemanha, os anfitriões definitivamente torciam pela Iugoslávia.
Contudo, um pênalti duvidoso seria anotado para a Mannschaft, dois minutos depois. Witeczek confirmaria a igualdade no placar, garantindo mais 30 minutos de futebol. Mantida a tensão, a partida superou a prorrogação e se adiantou aos pênaltis. Cruelmente para os alemães, na hora mais decisiva Witeczek perdeu sua penalidade. Todos os outros cobradores converteram. Ao final, fez-se justiça ao melhor em campo. Coube a Boban confirmar o título iugoslavo ao final.
Com a taça assegurada para o coletivo, foi a hora de celebrar a individualidade. Prosinečki ficou com a Bola de Ouro da competição e Boban com a Bola de Prata. Por sua vez, artilheiro do certame com seis gols, Šuker assegurou a Chuteira de Ouro. Era a hora de festejar: “Estamos mentalizados para ganhar. Acho que provamos isso. Antigamente, em meu país, o futebol não era levado tão a sério. Agora treinamos muito. Queremos títulos”, assegurou Prosinečki à reportagem da edição d’O Globo, de 26 de outubro.
Havia, ainda, parabéns a serem cantados: “O time ficou dois dias no Chile para celebrar. Era o aniversário de Robert Jarni então houve uma festa para ele. Na semifinal, Dubravko Pavlicic teve dois dentes arrancados por Mathias Sammer, então eles convidaram o dentista que os reparou para a festa e o presentearam com a bola da partida. Havia uma verdadeira atmosfera familiar com a comunidade iugoslava lá, e, quando eles retornaram para casa, após três semanas, todos estavam chorando”, contou Toma Mihajlović.
Novos sucessos e o desfecho fatal
Após a conquista, muita coisa mudaria nas vidas dos jogadores daquele time. Enquanto o enviado especial d’O Globo, Mário Jorge Guimarães, ainda registrava que a conquista iugoslava “foi a vitória do futebol alegre, ofensivo, cheio de toques e dribles requintados sobre a tática fria, defensivista e pouco criativa da Alemanha”, a Folha já estava atenta ao que acontecia na supernação eslava:
“Uma força especial da polícia iugoslava foi enviada ontem à província autônoma de Kosovo, sul da Iugoslávia, para tentar pôr fim aos recentes conflitos entre a maioria albanesa e a minoria sérvia que habitam a região”. Na altura, foi dito que o governo local não considerava que os “recentes distúrbios se assemelham às atividades ‘contrarrevolucionárias’ de 1981, mas está disposto a reprimir qualquer ‘tentativa de discriminação racial ou conflito entre etnias’ no país”. Um dos enviados foi Slobodan Milošević, que viria a ser presidente da Iugoslávia e acabaria condenado pela prática crimes de guerra, pelo Tribunal Penal Internacional.
Dentro dos gramados, o sucesso no Chile ofereceu chances na seleção iugoslava principal para Leković, Šuker, Prosinečki, Jarni, Boban, Mijatović, Brnović e Petrić. Os quatro primeiros estaria entre os selecionados à disputa da Copa do Mundo de 1990, sendo conveniente destacar que Boban só ficou fora devido aos famosos acontecimentos da Batalha de Maksimir.
No mesmo ano, aquela geração seria vice-campeã europeia sub-21, contando com as adições de Alen Boksic, Sinisa Mihajlovic e Dejan Savicevic, e sendo derrota pela União Soviética de Aleksandr Mostovoi e Andrei Kanchelskis.
O time promissor de 1987 estava vingando. Outra prova viria em 1991, quando o Estrela Vermelha venceu a Copa dos Campeões da Europa, alinhando Mihajlović, Jugović e Prosinečki. Também com a fácil classificação à Euro 1992, com apenas uma derrota em oito partidas. Até mesmo o treinador Jozić havia triunfado. Após impressionar os chilenos, foi contratado para liderar a base do Colo-Colo. Em pouco tempo, era o treinador do time principal, conduzindo-o ao título da Copa Libertadores da América.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
Porém, a tensão política não parava de escalar no país. O esfacelamento da Iugoslávia estava em marcha. Logo, Prosinečki, Boban, Jarni e Šuker trocaram o país pela Croácia. E, pouco depois, os Plavi seriam impedidos pelo Conselho de Segurança da ONU de disputar a Euro. A Dinamarca foi a substituta, conquistando um título que, em outras circunstâncias, poderia ter acabado em mãos iugoslavas. Dali em diante, não haveria volta.
Em pouco tempo, tudo estava acabado. No Mundial de 1994, quando aqueles jogadores estariam no auge de suas carreiras, a Iugoslávia estava em guerras que culminariam na separação de todas as nações que a compunham até então.
Coube à imaginação projetar qual teria sido o limite daquele destemido time de 1987, que, contrariando prognósticos e expectativas, reacendeu a chama do futebol eslavo.
Se não fosse a Iugoslávia, a final poderia ter sido 100% alemã: RFA x RDA
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