De Maradona à Libertadores: os anos vitoriosos do Argentinos Juniors
A identificação dos clubes bonaerenses com os bairros em que estão lotados é um fenômeno interessante e que marca, fortemente, o futebol argentino. Desse modo, antes de ser um clube de Buenos Aires, o Argentinos Juniors se faz uma marca de La Paternal. Em que pese o fato de, em termos nacionais, não ser possível comparar sua influência com a de outras equipes, o Bicho Colorado registrou páginas históricas nos anos 1970 e 1980. Naqueles anos, não foi um time qualquer, seja pelos resultados, o estilo de futebol praticado, ou pela revelação de talentos.
Colhendo frutos do Semillero de La Paternal
Incontáveis são as páginas já escritas — e por escrever — a respeito de Diego Armando Maradona. Ainda assim, há passagens que não podem ser contadas sem mencionar seu gênio. Dentro dos gramados ou na forma de compensação financeira, nada do que aconteceu na vida do Argentinos Juniors em meados dos anos 1980 teria sido possível, se, uma década antes, o Pibe de Oro não tivesse deixado o Semillero de La Paternal rumo ao estrelato.
Da estreia, em 1976, dias antes de completar 16 anos, até o início de 1981, Maradona foi o catalisador de um time que, historicamente, pouco aspirava. No limite, olhava para trás e via dois vice-campeonatos nacionais, um em 1926 e outro em 1960. Apesar disso, a magia que saia do pé esquerdo daquele garoto mudava, diariamente, a cena e o ânimo em La Paternal.
Mesmo sem ser atacante de área, Diego conseguiu o impressionante feito de ser o artilheiro de cinco campeonatos consecutivos, três metropolitanos e dois nacionais, entre 1978 e 1980. Analisando apenas os números dos torneios em que foi o goleador máximo, registra-se que o camisa 10 balançou as redes 90 vezes. Entretanto, mais importante do que seus tentos seria o efeito coletivo alcançado a partir deles. No Metropolitano de 1980, o Bicho foi o vice-campeão.
Poderia ser apenas mais uma fagulha de brilho para os torcedores se agarrarem? Sim, mas não foi. Maradona acabaria vendido ao Boca Juniors, mas seu clube formador não deu ponto sem nó. Conservou o direito de receber dois terços da arrecadação que os Xeneizes teriam quando da venda de Dieguito para o futebol europeu. Claro, não havia dúvidas de que, eventualmente, seria esse o destino do craque.
Depois da Copa do Mundo de 1982, o astro trocou La Boca por Barcelona; a Bombonera pelo Camp Nou. Quem de fato sorriu foi o Argentinos Juniors, ao receber seis milhões de dólares. Antes, tinha um time medíocre com o maior jogador de seu tempo. Com a injeção financeira, perdeu seu zênite, mas pôde, enfim, montar uma grande esquadra.
De Labruna a Yudica
Que a história comece em Maradona, ela não teria tido sucesso sem a intervenção de uma antiga glória do River Plate.
Em 1983, Ángel Labruna — parte integral da Máquina de River, o portentoso time dos Millionarios nos anos 1940 — foi o escolhido para treinar o time. Em um momento histórico em que o futebol argentino só parecia ver duas formas de jogar, divisão que tinha rostos e nomes nas figuras de César Menotti e Carlos Bilardo, e colocava a arte e o resultado em choque, Labruna se convenceu de que era possível vencer com arte.
Com uma mescla de garotos formados no Semillero e contratações importantes, moldou um time que seria lembrado pelo seu estilo.
“Havia uma forma de pensar em comum, com os técnicos que haviam passado anteriormente [Ángel Labruna e Roberto Saporiti]. Ainda que pudéssemos ter algumas nuances, a essência era a mesma: tratar bem a bola. Mas só podíamos fazer isso porque foram juntados dez, doze caras que sabiam de que isso se tratava”, diria, anos mais tarde, o treinador José Yudica.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
Por força de circunstâncias alheias ao que está ao controle do ser humano, aquela obra também não seria finalizada por seu líder espiritual. Labruna faleceu em setembro de 1983. Depois de uma cirurgia na vesícula, enquanto se levantava para ir ao banheiro, sofreu uma parada cardíaca e faleceu ali mesmo, nos braços de Ubaldo Fillol, o famoso goleiro que havia sido uma de suas contratações para o Bicho e que lhe fazia uma visita. Labruna foi substituído por Roberto Saporiti, o que resultou em pouca mudança dentro das quatro linhas.
No período, além de Fillol, que permaneceria por pouco tempo, também chegariam mais doses de experiência. Glórias do River Plate, Emilio Commisso e José Luis Pavoni traziam vários títulos na mala. Assim como Jorge Olguín, antiga referência de San Lorenzo e Independiente e jogador de duas Copas do Mundo. Eles se juntaram a meninos com o potencial de Adrián Domenech, Sergio Batista e Claudio Borghi.
Os bons negócios seguiriam acontecendo. Exemplo foi o do veterano goleiro Enrique Vidallé, o substituto de Fillol, quando este partiu para o Flamengo. Mal sabia o arqueiro que ele desempenharia papel decisivo no que viria a ocorrer. Aliás, ele era alguém com a cara do Argentinos Juniors: havia passado por clubes importantes, como o Boca Juniors, mas, aos 32 anos, não trazia nenhuma conquista de peso no currículo.
E, antes da glória libertadora, o Bicho extirpou velhos fantasmas. Primeiro, disputando e vencendo o Metropolitano de 1984, superando na conta do chá o campeão vigente, o Ferro Carril. E não se pode dizer que sem surpresa, já que o Argentinos seguia sendo um time de pouca expressão e que, apesar disso, marcara inigualáveis 69 gols em 36 partidas.
Na sequência, superaria o Vélez Sarsfield no Nacional de 1985, alcançando o bicampeonato argentino, altura em que já era treinado por Yudica — um mês e meio antes da corrida para a mais expressiva de suas vitórias.
Superando um grupo mortal
Historicamente os maiores vencedores da Copa Libertadores da América, os clubes argentinos sempre ingressam na competição continental com algum favoritismo. Entretanto, quando avançou à competição de 1985, o Bicho Colorado não carregava o peso de um Boca Juniors ou um Independiente, grandes campeões da época.
Além disso, o time de La Paternal teve que lidar com a dureza de um grupo que não poderia ser conhecido de outra forma senão como “da morte”. O Grupo A tinha, além do Argentinos Juniors, o já citado Ferro Carril e os cariocas de Fluminense e Vasco. Pedreira certa, confirmada na primeira rodada: derrota para os Verdolagas. Pior, em casa. E foi longe de seus domínios que o time começou a entrar nos eixos.
Em São Januário, Mauricinho até chegou a abrir o placar para o Vasco, mas Carlos Ereros e José Antonio Castro anotaram os tentos da vitória do Bicho. Triunfo que poderia ter sido mais tranquilo, como contou O Globo, no dia seguinte: “O Argentinos Juniors continuou pressionando e não aumentou porque Acácio estava grande noite, fazendo defesas oportunas”. Três dias mais tarde, outro triunfo, agora 1 a 0 ante o Flu, no Maracanã.
Então, o time empataria contra o Cruzmaltino em seus domínios, 2 a 2, venceria o Ferro Carril fora de casa, 3 a 1, e ganharia de novo do Tricolor Carioca. Empatados em pontos com seus compatriotas, os homens de La Paternal precisaram de um jogo extra para determinar quem avançaria. No desempate, outro 3 a 1 ante o Ferro colocou o Bicho Colorado na fase seguinte. Nela, encontraria mais um adversário pesadíssimo.
As santas luvas de Vidallé
Na segunda fase da Libertadores, o Argentinos Juniors teve o desgosto de se ver frente a frente com o campeão vigente. Dada essa condição vitoriosa, o Independiente de Avellaneda havia sido poupado da fase inicial.
Além os Diablos Rojos, o time de Yudica teve que superar os bolivianos do Blooming. E não houve vida fácil, a disputa foi parelha.
Os dois argentinos empataram em sua estreia e, após, voltaram de suas viagens a Santa Cruz de la Sierra também com empates. Quando receberam o Blooming, ambos venceram, o que fez com que o encontro entre Independiente e Argentinos Juniors da rodada final, em Avellaneda, fosse decisivo. E, quando o relógio apontava o último minuto da partida, o Bicho vencia por 2 a 1. Porém, o árbitro apontou para a marca da cal: pênalti para os donos da casa.
Um placar em igualdade forçaria um jogo de desempate que, se também terminasse equalizado, classificaria o Rey de Copas, de campanha superior nos critérios de desempate. Mas nada disso foi necessário. Vidallé parou Claudio Marangoni. Festa em La Paternal, mas não muita, já que a final seria disputada contra um grande adversário.
Os colombianos do América de Cali entraram na rota dos alvirrubros, com uma grande geração, que ficaria evidente chegando também às finais de 1986 e 1987. Certo é que, qualquer que fosse o campeão, seria inédito.
Equilíbrio e confusão fora das quatro linhas
Complicada, a decisão precisou de uma terceira partida, após triunfos por 1 a 0 distribuídos entre os finalistas, cada um superior em sua própria fortaleza. O derradeiro encontro, dois dias depois do segundo, foi marcado para Assunção. Então, entrou em campo a polêmica — no vestiário e entre cartolas.
Olguín não gostou de saber que seria escalado no meio-campo, mas Yudica considerava as outras alternativas jovens demais, como recordou a revista El Gráfico. Pior mesmo foi a confusão a respeito dos voos à capital paraguaia. A opção regular partia de Bogotá, parava em Lima e Santiago, e desembarcava em Buenos Aires. Assim, os times dormiriam na capital argentina e seguiram cedo para o Paraguai, já no dia do jogo.
Porém, os colombianos conseguiram uma alternativa: viagem também desde Bogotá junto à delegação da seleção colombiana, que, igualmente, atuaria em Assunção. Esse voo teria como destino a cidade do Rio de Janeiro e uma parada, que não fazia parte do seu trajeto habitual, em Assunção.
Pressionado pela direção do Bicho, León Londoño, então presidente da Federação Colombiana de Futebol, garantiu que era possível incluir os argentinos naquele voo. Entretanto, na chegada ao aeroporto de Bogotá, onde estavam as passagens dos hermanos? O voo estava cheio, foram informados. A alternativa era aquela opção tradicional com várias paradas.
Inconformada, a direção do time argentino foi atrás do presidente da Conmebol, o peruano Teófilo Salinas Fuller, dizendo que, daquele jeito, não haveria terceiro jogo. Como que por milagre, as passagens apareceram, em um enredo que sugere a popular frase: “Se vocês soubessem o que aconteceu, ficariam enojados”. Ao final, viajaram todos juntos, times e seleção.
Enfim, quando a bola rolou, o equilíbrio recuperou seu lugar. O 1 a 1, consagrado por Commisso, para os Argentinos, e Ricardo Gareca, para os colombianos, levou às penalidades máximas. Até a quarta rodada de batidas, tudo andava perfeito, mas Vidallé tinha um plano. Ao parar Anthony de Ávila, garantiu o título e um lugar eterno na história do Bicho Colorado, o mais novo campeão continental:
“Un equipo que cambió el concepto que se tenía sobre cómo ganar la Libertadores”, pontuou El Gráfico.
Ainda assim, a primeira capa da mencionada revista após o título, deu pouco destaque a ele. Consta apenas uma nota de canto de página: “La epopeya de Argentinos”. No fim das contas, o Bicho seguia sendo um clube pequeno na cena de seu país.
Um quase que provocou muito orgulho
Aquele time destemido, que, habitualmente, levava uma retaguarda com Olguín, Villalba, Pavoni e Domenech, um único volante de marcação em Batista, meias que faziam de tudo um pouco com Videla e Commisso, e um trio de ataque feroz nas figuras de Pepe Castro, Ereros e Borghi, o mais talentoso deles, viveu mais um dia de sonho ao final do ano.
Foto: Masahide Tomikoshi/Arte: O Futebólogo |
No dia 08 de dezembro, em Tóquio, os representantes de La Paternal subiram ao gramado do estádio Nacional com uma missão impossível, vencer uma verdadeira seleção italiana azeitada pelas presenças de Michael Laudrup e Michel Platini. A campeã europeia Juventus era, seguramente, um dos melhores times do mundo. Sua grandeza contrastava com a modéstia dos argentinos. A questão é que, quando o que separa dois universos é uma bola, tudo é possível, com o perdão do clichê.
Até os ‘37 da etapa final, era o Argentinos Juniors que se colocava em condições de ser coroado campeão do mundo. Até que Laudrup anotasse o 2 a 2 (Ereros abrira a contagem, Platini empatara e Castro marcara o segundo dos hermanos). Foram eles, os pênaltis, que decidiram a partida. Dessa vez, nada pôde fazer Vidallé. A taça foi para Turim. Porém, o mundo entendeu que não poderia subestimar o azarão da vez. Derrota de lado, aquele foi mais um grande dia da história do Bicho.
“O jogo é lembrado assim porque foi uma grande partida de todo o time. Também porque o rival era o máximo no mundo e porque nos encontramos todos em um dia em que havíamos levantado muito bem. Por isso, ainda que tenhamos tido várias partidas em grande nível, pode-se dizer que a final do mundo foi nossa melhor”, falou Domenech à revista El Gráfico.
“Perdemos por não nos cuidarmos mais, mas isso não foi um erro. Erro teria sido trair nosso estilo”, acrescentou Borghi.
Agora, a mais famosa revista argentina não conseguiu ignorar a grandiosidade dos feitos do time de La Paternal. Com uma foto de página inteira, El Gráfico destacou: “Juventus-Argentinos, un partido inolvidable”.
Foto: El Gráfico |
Campeão nacional, continental e mundialmente reconhecido, o Argentinos Juniors viveu dias de sonho em meados da década de 1980. Aos poucos, eles foram caindo por terra, com o clube voltando a ser lembrado quase exclusivamente pelos talentos feitos em sua casa, gente como Fernando Redondo, Juan Roman Riquelme e Juan Pablo Sorín. Tal, é claro, não traz de volta as emoções daqueles anos, mas está longe de diminuir o orgulho nutrido em La Paternal pelo time de seu bairro.
Comentários
Postar um comentário
Agradecemos a sua contribuição! ⚽