Tenerifazo: Quando o Tenerife assombrou o Real Madrid e ajudou o Barcelona
Acontecimentos importantes costumam receber nome próprio. Nos anos 1950, a vitória do Uruguai ante o Brasil, em um Maracanã abarrotado e preparado para o que foi a final do primeiro Mundial do pós-Guerra, ficou conhecido como Maracanazo. Quatro décadas mais tarde, a referência voltou a ser utilizada. As Ilhas Canárias tiveram papel importante no futebol espanhol, eternizando o que ficou conhecido como Tenerifazo.
Deixando o ostracismo
A história do Tenerife, clube fundado em 1912, pode ser dividida entre um antes e depois da chegada de Javier Pérez à sua presidência. Tal aconteceu em 1986, uma altura em que o time acabara de ser rebaixado à terceira divisão da Espanha. Vale dizer que os insulares só haviam estado na elite nacional uma vez, no já distante torneio de 1960-61. Não se pode dizer que se esperava grandes coisas do time que passara a ser liderado por um médico obstetra e professor de ginecologia.
Porém, tudo começou a mudar rapidamente. Anos mais tarde, Jorge Valdano recordaria o mandatário canário como alguém que “sempre pensava grande” e que levou o Tenerife “a lugares impensados”, arrematando ao garantir que Pérez “não fez bem ao futebol de Tenerife, mas a toda a ilha”, conforme reportou o Sport.
Entretanto, cabe questionar: por que Valdano teria tantas palavras elogiosas a dedicar a Javier? Tudo em seu tempo.
Para a campanha de 1986-87, o Tenerife escolheu um homem identificado com sua causa para ser seu guia. Martín Marrero havia sido defensor do clube nos anos 1960, antes de fazer sucesso no Las Palmas. Tratava-se de um homem santacrucero e que conhecia o clube. Com ele no leme, os Blanquiazules brilharam na terceirona. Tendo perdido apenas quatro de 42 encontros, logo retornaram ao segundo escalão, como campeões.
Foto: Tenerife/Arte: O Futebólogo |
A continuidade do sonho de retorno ao primeiro nível do futebol hispânico precisou aguardar uma temporada. Depois de um ano sem graça, em 1987-88, Benito Joanet assumiu o comando técnico e conseguiu elevar o Tenerife, na campanha de 1988-89. O terceiro lugar na Segunda División levou o time à disputa de um playoff contra o Betis, o antepenúltimo colocado de La Liga. Tal desafio foi, enfaticamente, superado, como evidencia o triunfo por um agregado de 4 gols a 1.
Na volta ao primeiro nível, os desafios iniciais foram duros. O 18º lugar obrigou o time a vencer um playoff de permanência, ante o Deportivo La Coruña. Mas as coisas estavam mudando, como as campanhas medianas que se seguiram deixaram claro.
Outro ponto de virada foram algumas contratações. Em 1990, chegaram Fernando Redondo e Tata Martino, convencidos pelo projeto de levar o clube à Copa da Uefa. Em 1991, o time que perdera seu goleador, Rommel Fernandez, para o Valencia, trouxe mais dois hermanos, Juan Antonio Pizzi (que se tornaria o maior artilheiro da história do clube) e Óscar Dertycia.
Foto: El Dorsal/Arte: O Futebólogo |
Tenerife foi se transformando em reduto de talento argentino. E dominador nos jogos em casa. Em 1991-92, o time venceu 12 de 38 partidas. 11 em casa. E as referências albicelestes também chegaram ao comando. A temporada referida começou com Jorge Solari (tio de Santiago, que faria história no Real Madrid) na casamata e terminou com ele, Jorge Valdano, auxiliado por ninguém menos que Ángel Cappa.
O primeiro ato
Chegar à última rodada de um campeonato de pontos corridos dependendo apenas de suas forças para conquistar o título é um privilégio. Especialmente quando seu perseguidor é o famoso Barcelona, treinado por um revolucionário de nome Johan Cruyff. Era este o cenário enfrentado pelo Real Madrid, no fechamento das cortinas de La Liga 1991-92. Bastava vencer o mediano Tenerife, independente do que acontecesse na partida do Barça.
Porém, os insulares haviam perdido apenas quatro de 18 partidas em seus domínios. Eles haviam superado, inclusive, Barcelona e Valencia, na luta contra o descenso.
É difícil imaginar o que se passou no íntimo de Valdano naquela noite. Símbolo do madridismo, o argentino viu um verdadeiro milagre acontecer. Com Fernando Hierro e Gheorghe Hagi, os madrilenhos abriram uma vantagem de 2 a 0. Paralelamente, o Barcelona empatava com o Athletic Bilbao, sem gols.
Então, o Camp Nou viu Hristo Stoichkov resgatar o orgulho catalão, anotando dois gols, antes do minuto 50, altura em que o Tenerife já reduzira sua desvantagem para 2 a 1, após belo gol de Quique Estebaranz.
Foto: El Dorsal/Arte: O Futebólogo |
Contudo, aquilo ainda era insuficiente. O Real Madrid pressionava; Luis Milla chegou a ter um gol anulado. Porém, os Merengues acabaram ficando com um a menos, depois da expulsão de Villarroya, aos 69'. Foi então que, oito minutos mais tarde, uma infelicidade do brasileiro Ricardo Rocha reanimou as coisas para os homens de Cruyff. O defensor colocou a bola em sua própria baliza, ao tentar cortar um cruzamento
Abatido, um minuto mais tarde, o Real Madrid foi outra vez surpreendido. Um recuo terrível de Manuel Sanchís para o goleiro Paco Buyo criou a oportunidade perfeita para Pier dar números finais à contenda: 3 a 2. Em Barcelona, o placar construído pelo craque búlgaro do Barça também não foi mais alterado. O título rumou para a Catalunha. Em bom catalão, o Mundo Deportivo agradeceu: “Gràcies, Tenerife!”
Mas o jogo não acabou com o apito final, já que torcedores madridistas do grupo Ultras Sur invadiram o gramado e protagonizaram cenas lamentáveis. Já Valdano, que teve seu nome muito vinculado a uma possível “entregada”, dado seu passado merengue, suspirou aliviado: “Viva o futebol limpo!”.
O segundo ato
Aqueles que acham que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar não se recordam do início dos anos 1990, no futebol espanhol. A rodada fatal da temporada 1992-93 contrapôs Tenerife e Real Madrid uma vez mais.
Semelhantemente, os homens da capital dependiam apenas de um triunfo próprio, sendo perseguidos pelo Barça. Contudo, dessa vez, não houve tanto drama, embora os madrilenhos tenham reclamado da arbitragem. O jogo também era importante para os insulares, que buscavam se classificar para a Copa da Uefa.
Logo aos 11', Dertycia inaugurou o marcador para o Tenerife. Na Catalunha, Stoichkov também balançou as redes para alegria dos Culés, aos 13'.
Se os catalães não viram mais o placar se alterar, os canários ainda comemoraram o gol de Chano, que confirmou o 2 a 0 contra o Real Madrid. Mais relaxado dessa vez, o Mundo Deportivo anunciou: “A aliança Barça-Tenerife”. Valdano se explicou: “Não sou carrasco do Real Madrid, sou patrono do Tenerife”. O argentino não tardaria a se reencontrar com os Merengues.
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo |
Encerrada a temporada 1993-94, mais uma vez mediana para o Tenerife, e outra vez pintada de azul e grená (dessa vez às custas do Deportivo La Coruña), Valdano foi cortejado pelo Real e aceitou retornar à capital, agora para treinar o time.
Ele não chegou de mãos vazias, levou consigo o talento de Redondo, que pediu a Pérez para encarar “a oportunidade de sua vida”, recebendo resposta positiva: “Tranquilo, Fernando, não me oporei”. O treinador permaneceria no posto até 1996 e, desde então, desempenharia várias e distintas funções na hierarquia madridista.
“Tenho certeza de que não há apenas uma explicação [para o sucesso do Tenerife], mas pode ser porque algumas circunstâncias coincidiram: bons jogadores e boas pessoas, uma ideia comum que coincidia com as características dos jogadores, primeiros resultados favoráveis [...] [Javier Pérez] Conseguiu colocar o Tenerife nos olhos de toda a Espanha e de boa parte do mundo. Também fez com que toda a ilha desfrutasse do futebol e vivesse um momento muito especial”, disse Ángel Cappa, ao DeporPress, em 2019.
Por sua vez, Javier Pérez e o Tenerife viveriam mais alguns dias de glória. Em 1993-94 e 1996-97, o clube disputaria a Copa da Uefa, alcançando as semifinais na segunda chance. Outros jogadores importantes passariam pela agremiação, como Diego Latorre, Slavisa Jokanovic, Meho Kodro, Oliver Neuville ou Roy Makaay. Ela também seria treinada por gente como Jupp Heynckes, Juanma Lillo e Rafa Benítez.
Mas o rebaixamento em 1998-99 seria inevitável. Desde então, o time retornou duas vezes à elite, apenas para cair imediatamente após.
Pérez presidiu o Tenerife até 2002, vindo a falecer dois anos mais tarde, aos 58 anos, vítima de câncer. Hoje, dá nome ao centro de treinamentos da equipe. Sem ele, os blanquiazules foram, rapidamente, retornando ao ostracismo. Mas nunca esquecidos. O fantasma do Tenerifazo sempre vai pairar por sobre o time mais famoso do planeta.
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