Happel, Goethals, títulos e escândalo no Standard de Liège
Foram dois os pontos que separaram Standard de Liège e Anderlecht, ao final do Campeonato Belga de 1981-82. Les Rouches asseguraram a taça tendo somado dois empates a mais do que os Mauves et Blancs. Em um torneio tão renhido, qualquer fator poderia levar a conquista a pender para um, ou outro, lado. Além disso, os homens de Liège tinham uma final europeia por jogar, e um elenco bom, mas não muito numeroso. Medidas foram tomadas.
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Reaprendendo a vencer
Em que pese sua tradição, o Standard de Liège viveu os anos 1970 completamente sufocado pela sombra dos maiores clubes da Bélgica: Club Brugge e Anderlecht. Apesar de começarem o decênio muito bem, vencendo o campeonato nacional de 1970-71, os Rouches foram subjugados nos anos que se seguiram.
Até a temporada 1981-82, foram cinco taças para o Brugge, e três para o Anderlecht. Também o já dissolvido Molenbeek e o Beveren subiram ao lugar mais alto do pódio no período, uma vez cada.
O Standard olhava de perto seus adversários vencerem, mas não conseguia lhes tomar a frente. Até a chegada de Ernst Happel, em 1979.
O mítico treinador austríaco, responsável pelo primeiro título de um clube holandês na Copa dos Campeões da Europa, foi contratado em 1980 para comandar os homens de vermelho. Trazia na bagagem, além de vasto conhecimento, três campeonatos belgas e uma Copa da Bélgica conquistados pelo Brugge, também tendo conduzido os belgas às finais da Copa da Uefa, em 1974-75, e da Copa dos Campeões, em 1977-78.
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Os times de Happel tinham em seu DNA a marca da vitória. Não que fossem deslumbrantes em estilo, mas também não praticavam um jogo limitado à defesa. Eram sólidos, pressionavam o adversário ferozmente, tinham forte apelo pelo lado físico do jogo, mas não mitigavam a individualidade dos jogadores mais habilidosos e criativos.
Além disso, o austríaco não acreditava no pagamento de salários exorbitantes. Preferia oferecer prêmios vultosos por objetivos alcançados. Ele era ainda conhecido por uma famosa fala: “Não é importante o porquê da vitória. É preciso saber o porquê da derrota”, como lembrou o site da ESPN.
Foi esse o know-how que Ernst levou ao Liège. Um time com a sua importância não poderia passar uma década longe das conquistas — embora tivesse vencido a menos relevante e extinta Copa da Liga Belga, em 1975.
De Happel a Goethals
Ernst Happel cumpriu as expectativas e moldou um time vencedor. Quando chegou, o Standard já contava com pelo menos quatro referências importantes. Debaixo dos paus, guardando a meta, estava Michel Preud’homme. Na defesa, tinha Eric Gerets e Gerard Plessers, e, no meio-campo, apostava muitas fichas nas qualidades técnicas do islandês Ásgeir Sigurvinsson, que mais tarde seria vendido ao Bayern de Munique, e se tornaria bandeira do Stuttgart.
A primeira temporada do austríaco em seu retorno à Bélgica não terminaria com taças. Os homens de Liège foram vice-campeões do torneio nacional, somando quatro pontos a menos do que o Club Brugge. Porém, em 1980-81, houve o que comemorar.
Conquanto tenha sido o terceiro colocado do Campeonato Belga, já contando com as qualidades do ponta esquerda Simon Tahamata, ex-Ajax, o Standard venceu o Lokeren, do dinamarquês Preben Elkjaer, e conquistou a Copa da Bélgica — também se classificando para a disputa da Recopa Europeia. Apesar disso, esse título sinalizou o adeus de Happel, seduzido pelo Hamburgo. A continuação da retomada dependeria da escolha de um bom substituto.
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A resposta veio do Brasil, mas não de um brasileiro. O belga Raymond Goethals já havia treinado a Seleção Belga, o Anderlecht, e o Bordeaux, quando foi convidado a prestar uma espécie de consultoria no São Paulo. Porém, a experiência com o treinador Carlos Alberto Silva durou apenas dois meses.
“Queriam que eu trabalhasse com ele, falei ‘não, de jeito nenhum’. Eu disse que não trabalharia com ninguém, que era pra que ele fosse para o campo comigo e mostraríamos quem era melhor”, disse mais tarde o brasileiro, ao UOL.
Assim, o Liège não teve muita oposição para fechar a contratação de outro nome famoso no futebol belga.
Um trabalho de continuidade
Raymond-La-Science, como era conhecido por seu refino tático, não levou ao clube algo muito diferente do que vinha sendo construído desde 1979. A pressão intensa também fazia parte de seu repertório, assim como uma defesa alta e o uso da linha de impedimento. Assim, foi possível dar sequência ao trabalho iniciado por Happel.
Se por um lado Sigurvinsson havia partido para a Baviera, também saindo os internacionais belga Michel Renquin, sueco Ralf Edström, e português Norton de Matos, o holandês Arie Haan desembarcara em Liège — além de seu compatriota e ex-companheiro de Anderlecht, Johnny Dusbaba, do zagueiro Walter Meeuws, e do prolífico goleador sueco Benny Wendt.
O time estava mais forte e preparado para os seus desafios. Assim, viveu uma acirrada luta pelo retorno ao pódio.
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Paralelamente, o time de Liège fez campanha notável na Recopa Europeia. Depois de superar os malteses do Floriana e os húngaros do Vasas, o Standard eliminou Porto e Dinamo Tbilisi, representante soviético naquela ocasião. Tudo isso para, ao final, enfrentar o Barcelona, que tinha no dinamarquês Allan Simonsen um dos melhores jogadores do mundo e, em Udo Latek, um técnico mais que acostumado às vitórias.
Vencer. Custe o que custar
A final europeia estava marcada para o dia 12 de maio de 1982, sendo disputada no Camp Nou, justamente na capital catalã. No dia 8, o título nacional já estava encaminhado, mas ainda eram necessários pontos. Os Rouches enfrentariam o Waterschei (atual Genk). O adversário não era um bicho de sete cabeças, mas, ainda assim, era um rival respeitável. Terminaria a liga em nono, tendo, entretanto, vencido a Copa da Bélgica.
Isso levou Goethals e o diretor Roger Petit a tomar medidas extremas. Dois anos mais tarde, em 1984, ficou provado que o treinador convenceu seus jogadores a oferecer o bicho daquele jogo para os rivais, de modo a assegurar a vitória e garantir que seus jogadores deixassem o encontro sem lesões.
Gerets teria sido o encarregado de conversar com os jogadores adversários. No fim das contas, o título belga veio, mas a conquista europeia não. Com gols de Simonsen e Quini, o Barça virou o jogo, e venceu por 2 a 1 a decisão — Guy Vandersmissen havia aberto o placar.
Antes de o escândalo vir à tona, Raymond Goethals ainda conduziu o Standard à renovação do título belga, na temporada 1982-83. Contudo, o castelo de cartas ruiu e as punições foram severas. Apesar de a multa de £75 mil libras não parecer demasiada, o treinador foi banido do futebol belga para sempre. Outros vários jogadores tiveram penas duras.
Inicialmente, Gerets foi suspenso por três anos, e nomes como os de Preud’homme e Meeuws por um. As penas foram reduzidas em sede recursal, para dois anos e seis meses, respectivamente. A despeito disso, o título conspurcado foi mantido, iniciando uma longa seca. O time só voltaria a conquistar o título belga em 2007-08, com a geração de Axel Witsel e Marouane Fellaini.
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Por sua vez, Goethals ainda faria mais história no futebol. Em 1992-93, o belga liderou o Olympique de Marseille ao título da Liga dos Campeões, sendo o primeiro clube francês a conseguir tal feito. Porém, ficaria provado pouco depois que os marselheses subornaram jogadores do Valenciennes, o último adversário no nacional antes da final europeia, para facilitar as coisas. Após os julgamentos, o time foi rebaixado, perdeu o título francês de 1992-93, e o direito de disputar o Intercontinental daquele ano.
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