Quando Deschamps voltou ao Olympique e Marselha sorriu outra vez

Em vários contextos, voltar para casa é sinônimo de encontrar conforto e segurança. Não por acaso, consolidou-se o ditado de que “o bom filho a casa torna”. Porém, esse não necessariamente é o caso do futebol. A pressão e a exigência constantes por resultados, muitas vezes, impedem bons reencontros, mesmo que existam grandes sentimentos em causa. Em 2009, Didier Deschamps decidiu se arriscar. Voltou ao clube que o colocou em evidência. Retornou a Marselha.

Didier Deschamps Marseille Olympique Manager
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


O jejum vinha desde a grande mancha


O rebaixamento do Olympique de Marselha, em 1993-94, e as circunstâncias que o rondam, são fatos notórios para quem acompanha o futebol. Dentro dos campos, o início da década de 1990 vinha sendo brilhante para os marselheses, que viram o OM se tornar o primeiro clube francês campeão da Liga dos Campeões. Contudo, os escândalos de manipulação de resultados fora das quatro linhas deram origem a uma mancha irreparável na trajetória do time e do futebol francês.

Um dos responsáveis pelos êxitos dos gramados foi o capitão daquele esquadrão, Didier Deschamps. O meio-campista, eficaz em termos defensivos e ofensivos, era um ponto de equilíbrio. Entretanto, após aqueles eventos, o clube não voltou a ser o mesmo. Seu líder seria um dos homens a o deixar naquela altura, assinando com a Juventus.

Deschamps Player Champions League Marseille
Foto: AFP/Getty/Arte: O Futebólogo
Após o retorno da Ligue 2, em 1995-96, haveria boas campanhas. Os vice-campeonatos de 1998-99, 2006-07 e 2008-09 não deixam mentir. Mas o clube também se veria envolto em turbulência, como o 15º lugar de 2000-01 evidencia. Mais importante do que tudo isso é o fato de que o maior vencedor do país não voltou a conquistar a Ligue 1.

Na altura do retorno do filho famoso, que substituiu o popular belga Eric Gerets, o OM via o Lyon ameaçar abocanhar seu reinado. Precisava dar uma resposta.

Deschamps foi anunciado como o novo treinador do Marseille antes do final da temporada 2008-09. Teve tempo para se preparar para o desafio que viria pela frente, e contou com uma base forte. Pôde apostar em Steve Mandanda para defender sua meta. Na frente, sabia que Mathieu Valbuena, Bakary Koné, e Hatem Ben Arfa lhe entregariam a dose certa de talento e imprevisibilidade — e confiava em Mamadou Niang e Brandão para marcar muitos gols. Mas precisava de mais.

Experiência e liderança


Consumadas as saídas de Djibril Cissé, Karim Ziani, Gael Givet e Lorik Cana, o Marseille foi atrás de reforços. E os escolheu sabiamente. Meio-campista que foi, e, acima de tudo, um vencedor por excelência, Deschamps sabia o que precisava para devolver o sorriso ao rosto dos torcedores do clube. Era necessário consolidar uma base forte. Como a que tinha nos anos 1990, sempre acompanhado por jogadores como Basile Boli ou Marcel Desailly.

“Meu passado como jogador advoga a meu favor, mas isso foi há 15 anos. As pessoas esperam muito de mim. Para mim, ter sucesso significa vencer. O OM tem buscado o título desde 1993. Vou fazer tudo o que puder, junto do staff, dos diretores e, mais importante, dos jogadores, para vencer títulos e manter o Marseille no topo, nacional e internacionalmente. Fui e sou um torcedor do Olympique, não importa o que aconteça”, disse o treinador ao site do clube, pouco após sua contratação.

Deschamps foi logo atrás de uma das referências do último campeão nacional, o Bordeaux. E também procurou experiência internacional no Real Madrid. Logo, passou a contar com Souleymane Diawara e Gabriel Heinze para a defesa. No Rennes, buscou um volante forte e jovem; disposto a correr bastante: Stéphane Mbia, que, a contragosto, também jogaria parte da temporada na zaga. Assim, Deschamps já tinha a proteção que buscava. Porém, faltava alguém para, como ele fizera no passado, comandar as coisas no meio-campo.

Lucho González Olympique Marseille
Foto: Twitter @OM_portugues/Arte: O Futebólogo
Foi ao Porto que Deschamps pagou o maior montante de seu clube na janela do verão europeu de 2009. Do Estádio do Dragão, veio El Comandante. Era o jogador necessário para aquela equipe. Um gestor de ritmo. Um líder. O conector entre defesa e ataque. Vivia seu auge técnico. Era Lucho González, o meio-campista de iniciais 17 milhões de euros. “Fui seduzido pelo interesse do Marselha e pela conversa com Didier Deschamps”, disse o argentino, em sua apresentação.

Outras contratações que tiveram impacto positivo foram as do volante Edouard Cissé, e do polivalente meia Fabrice Abriel, vindo do Lorient. Por outro lado, a aposta no veterano Fernando Morientes, velho conhecido do treinador nos tempos de Monaco, não rendeu os frutos esperados.

Regularidade do início ao fim


Talvez a grande marca do Olympique de Marseille de 2009-10 tenha sido sua regularidade na Ligue 1. Em que pese o mau desempenho nas competições internacionais, caindo na fase de grupos da Liga dos Campeões, e nas oitavas de finais da Liga Europa, o time arrancou bem no torneio doméstico, ficando invicto nas primeiras seis rodadas, com quatro vitórias e dois empates. Também é justo dizer que, continentalmente, o sorteio que colocou Real Madrid e Milan em seu grupo da Champions não lhe fez favor algum.

O pior momento dos Phocéens na Ligue 1 foi ainda no princípio da temporada. Quando acabou a invencibilidade, ela deu lugar a duas derrotas seguidas: primeiro, para o Valenciennes; depois, ante o Monaco, em casa. O Marseille perderia mais quatro vezes apenas, e em intervalos bem espaçados. Por outro lado, a campanha teria muitos pontos positivos, como foram as vitórias nos dois turnos contra o grande rival, o Paris Saint-Germain.

Entre a 23ª rodada e a 36ª, o time emplacou uma sequência de 14 jogos sem perder. Uma mudança tática do 4-4-2 para o 4-2-3-1 foi uma das grandes razões para esse crescimento, com Valbuena, Lucho e Ben Arfa em grande forma. Foi nesse momento que o OM passou por cima de seus competidores: Lyon, Lille, Auxerre e Montpellier.

O time assumiu a liderança na 26ª rodada — justamente após ganhar do PSG — e não mais deixou o posto. O título veio com duas rodadas de folga.

Ben Arfa Olympique Marseille
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
O curioso é notar que a partida mais empolgante do time na campanha tenha sido um empate.

No dia 8 de novembro de 2009, o Marseille, terceiro colocado, viajou para enfrentar o Lyon, vice-líder. E o Stade de Gerland presenciou uma tarde-noite completamente maluca. Com três minutos de jogo, os donos da casa já venciam, gol de um garoto bósnio, Miralem Pjanic. Aos 11’, o OM empatou, com Diawara. Mas, três minutos mais tarde, Sidney Govou voltou a colocar os Gones em vantagem, após bonita jogada individual. Os visitantes só foram resgatados, outra vez, no final do primeiro tempo, por Benoit Cheyrou — contando com falha de Hugo Lloris.

E se o Lyon precisou de três minutos para marcar no primeiro tempo, ao Marseille bastaram dois na segunda etapa. Bakary Koné logo virou o jogo para o OM, que aumentaria aos ‘74, com Brandão. Mas o Lyon foi à luta. Lisandro López marcou duas vezes. E Michel Bastos virou de novo, nos acréscimos: 5 a 4. Mas os anfitriões não contavam com uma infelicidade de Jérémy Toulalan, um minuto mais tarde. O volante marcou contra e deu números finais ao jogo mais incrível daquela temporada.


Também curioso é o fato de que o time contaria com outro gol contra em mais um momento importante da temporada. Em 27 de março de 2010, o time bateu o Bordeaux, campeão vigente, e conquistou a Copa da Liga. O 3 a 1 foi construído com gols de Diawara, Valbuena e de Matthieu Chalmé, contra. Ludovic Sané descontou para os girondinos.

O arqueiro, o arco e a flecha


Os sucessos do Marseille não teriam sido possíveis sem Deschamps, por certo. Entretanto, parte considerável desses êxitos deve ser creditada ao grande artilheiro e ao construtor do time. Capitão, o centroavante Mamadou Niang foi uma flecha fatal. Em 46 partidas, anotou 22 gols durante a temporada. Em partidas da Ligue 1, foram 18 tentos, que o consagraram como artilheiro do certame.

Mamadou Niang Olympique Marseille
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo
Deve-se ter em mente, ademais, que nenhuma flecha trabalha sem um arco. Lucho foi o maior assistente do Campeonato Francês, ofertando 11 assistências, mesmo perdendo parte da temporada, lesionado.

Deschamps, o arqueiro, mostrou-se extremamente afiado na hora de se posicionar no mercado de transferências e, após, para encaixar as peças nos seus melhores lugares. Aquele Marseille tinha um pouco de tudo. Força, experiência, criatividade, habilidade, juventude e poder de finalização. Não dominou o cenário nacional sem motivo.

O treinador francês não conseguiria repetir o título da Ligue 1 nas temporadas seguintes. Mas não passaria uma só temporada sem levantar uma taça. Nas duas campanhas seguintes, sairia vencedor da Copa da Liga, primeiro contra o Montpellier e, depois, ante o Lyon. Venceria, ademais, o Trophée des Champions, a Supercopa da França, nos mesmos anos. Desgastado, sairia ao final da campanha 2011-12, mesmo tendo contrato até 2014. Em comum acordo com a direção do clube. Mais do que nunca, como ídolo.

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