Ocidente vs. Oriente: A louca disputa entre Bayer Uerdingen e Dynamo Dresden na Recopa de 1985-86

Em uma eliminatória de 180 minutos, decorridos 135 um dos disputantes vence por 5 a 1. A partida de volta é na casa do derrotado e as arquibancadas logo se esvaziam; a torcida local não espera por uma reviravolta do seu massacrado time. Então, milagrosa ou tragicamente, as bolas na rede se acumulam. É um vexame do Bayer Uerdingen, o outsider que vencera a Copa da Alemanha na temporada anterior? Na verdade, não. Trata-se de uma reviravolta que ninguém poderia prever. A eliminatória termina 7 a 5 para os homens que haviam fracassado em três quartos daquela contenda.

Bayer Uerdingen Dynamo Dresden UEFA Cup Winners Cup 1986
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo


Alemanha contra Alemanha


Faltava pouco para o Muro de Berlim cair. A União Soviética já cambaleava. A chegada de Mikhail Gorbatchev à liderança do Partido Comunista era ainda recente, mas os sinais de ruína estavam por toda parte. Logo, viriam à tona Perestroika e Glasnost, ações com sua chancela; tentativas de reestruturação de um sistema falido, ante a queda do desenvolvimento econômico desde o princípio dos anos 1970. A abertura política já era tratada como algo inevitável.

Contudo, em 1986 a Guerra Fria ainda era uma realidade. A Cortina de Ferro seguia dividindo a Europa. O Pacto de Varsóvia ainda estava vigente. E o mencionado muro se mantinha de pé. Isso fazia com que, em termos de futebol, as competições europeias contassem com a presença de representantes dos dois lados da Alemanha, Ocidental e Oriental. Foi assim que Bayer Uerdingen e Dynamo Dresden chegaram a se enfrentar continentalmente.

O primeiro vivia seus anos dourados. Desde os anos 1950, recebia aporte financeiro da farmacêutica Bayer, chegando à elite alemã duas décadas mais tarde. Assim, alcançou a grande conquista de sua história. Contrariando prognósticos, venceu, de virada, o Bayern de Munique na final da Copa da Alemanha, em 1984-85. Por sua vez, os representantes de Dresden vinham de sua sexta conquista da copa homóloga de seu país.

Bayer Uerdingen 80s
Foto: Desconhecido/ Arte: O Futebólogo
Antes de avançaram às quartas de finais da Recopa Europeia, os times tiveram caminhos com momentos de facilidade e dureza. Para os Aspirinas, a primeira parada foi tranquila: 12 a 0 no placar agregado, contra os malteses do Żurrieq. O desafio seguinte é que não foi tão folgado: 3 a 1, perante o Galatasaray. Já os saxões suaram a camisa para deixar o Cercle Brugge pelo caminho apenas na regra do gol marcado fora de casa, antes de massacrar o HJK Helsinki: 7 a 3, no agregado.

O início da batalha


No dia 5 de março de 1986, o Uerdingen viajou à Alemanha Oriental para disputar a primeira partida das quartas de finais. No Dynamo Stadion, entretanto, os anfitriões fizeram valer o fator casa. Frank Lippmann e Hans-Uwe Pilz marcaram os gols da vitória por 2 a 0. Os homens de Dresden, comandados por Klaus Sammer (cujo filho, Mattias, atuava na equipe ao lado de outro jovem que também ficaria famoso, Ulf Kirsten), cruzaram o muro com a vantagem.

Duas semanas mais tarde, no dia 19, foi a vez de o Grotenburg-Stadion sediar o confronto ocidente-oriente. Bastou um minuto para que a sensação geral fosse a de que o sonho do Bayer havia chegado ao fim. Ralf Minge, de cabeça, abriu o placar logo no princípio do encontro para os homens de Dresden. Porém, sem se abater, o Uerdingen combateu fogo com mais fogo. Aos ‘13, Wolfgang Funkel empatou, também em cabeceio.


Apesar disso, quando o árbitro húngaro, Lajos Németh, apitou pela última vez naquele tempo, decretando o fim dos 45 minutos, o Dynamo já havia marcado outros dois gols. Primeiro, com Lippmann, em jogada de contra-ataque; depois, por intermédio de Rudi Bommer, contra. O Dresden trocou bolas, até vir o cruzamento da ponta direita e a finalização, que desviou e morreu nas redes do arqueiro Werner Vollack.

O marcador indicava 3 a 1. A soma dos placares ditava o tom daquele encontro: 5 a 1. Estava tudo acabado. Diante daquela realidade, muitos torcedores desolados tomaram o rumo de casa. Não era sábio esperar um desfecho diferente do da eliminação do Uerdingen. Porém, o futebol, constantemente, desafia a lógica. Veio o segundo tempo.

Matthias Sammer Dresden Uerdingen 1986
Foto: pa/dpa/ZB/Ulrich Häßler/ Arte: O Futebólogo

Insanidade absoluta


Com o goleiro reserva em campo, substituindo o lesionado titular, Bernd Jakubowski, e estreando como profissional, o Dresden sabia que seu avanço era questão de tempo. Mas o Bayer foi à luta. Aos ‘57, diminuiu, quando Wolfgang Funkel converteu uma penalidade máxima sofrida por seu irmão, Friedhelm. Cinco minutos depois, Lárus Guðmundsson cabeceou a bola que veio de uma falta na ponta direita e contou com desvio na zaga saxã para empatar aquele embate. 

O time continuava a ser eliminado, mas fazia agora um papel honroso. Que ficou ainda mais respeitado quando, aos ‘66, Wolfgang Schäfer foi lançado nas costas da defesa do Dynamo e tocou por cima do goleiro para fazer o 4 a 3. E, quando eram decorridos 78 minutos, Dietmar Klinger assinou uma pintura. Partindo de seu próprio campo, foi fintando adversários até conseguir finalizar de perna direita, anotando o quinto gol dos anfitriões. Enfim, tudo poderia acontecer nos 12 minutos finais.

Bayer Uerdingen Dynamo Dresden 7-3
Foto: imago/Kicker/Eissner/ Arte: O Futebólogo
O Dynamo Dresden não teve tempo de respirar. Pouco depois do reinício da partida, sofreu outro golpe. De um lateral cobrado na área nasceu outro pênalti, já que a bola foi cabeceada e encontrou a mão do defensor vindo da Alemanha Oriental. Outra vez, Wolfgang Funkel foi para a marca da cal e converteu: 6 a 3. A partir daquele momento, faltava apenas um. O cenário de tragédia se transformara. A esperança tomou o estádio.

O Dynamo voltou à carga. Assustou. Mas não conseguiu marcar. O Bayer, sim. Faltando três minutos para o término do jogo, Wolfgang Schäfer se aproveitou do desespero adversário e encontrou o quadro perfeito para um contragolpe fatal. “Aquilo foi além da imaginação de todos”, falou Wolfgang Funkel ao Welt. “Queríamos, ao menos, machucar o Dresden”, asseverou Bommer.

Com quase todos os seus jogadores na área rival, o Dresden viu o atacante adversário recuperar a bola após uma tentativa de cobrança de lateral na marca do pênalti e sair em disparada, quase sozinho. Ao final, só teve de bater o goleiro e correr para o abraço e a consagração. Era o 7 a 3. O Uerdingen estava classificado às semifinais da Recopa. Enfrentaria o Atlético de Madrid.


Cabeças rolaram e o futuro foi terrível para os dois lados


Para o Uerdingen a celebração durou pouco, já que logo veio a eliminação ante os Colchoneros. Ainda assim, o time abandonou o certame satisfeito. Chegar entre os quatro melhores era muito bom para um estreante. O problema é o que veio depois. O futuro não foi bom para gregos nem troianos. Nesse caso, alemães ocidentais e orientais não tiveram muito o que comemorar.

De volta a Dresden, começou a caça às bruxas, que culminou na demissão do treinador Sammer. Segundo reporta o livro The Rough Guide to Cult Football, de acordo com a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, Sammer passou a ser visto como “alguém em quem não se podia mais confiar”. O comandante confirmou o peso daquele encontro em seu futuro: “Me recusei a continuar no trabalho, porque minha saída era apenas uma questão de forma”, falou ao Sport.de.

Na sequência, o Dynamo conquistaria mais dois títulos da Alemanha Oriental e seria um dos orientais contemplados com uma vaga na Bundesliga, após a queda do Muro de Berlim e a reunificação germânica. No entanto, descapitalizado, fez quatro campanhas medíocres, e foi rebaixado em 1995. Completamente endividado, teve a licença para a disputa da segunda divisão negada e desceu à terceirona. Em constante ioiô, nunca voltou à elite.

Klaus Sammer Dresden Dynamo
Foto: saechsische.de/ Arte: O Futebólogo
Além disso, o clube foi obrigado a conviver com um outro problema, já que Lippmann “desertou”. Após aquele encontro marcante, o atacante não retornou à Alemanha Oriental e foi taxado como traidor da pátria. Após um ano de suspensão, ele acabaria firmando com o Nuremberg.

Já o Bayer viveria mais um tempo de alegrias, disputando a Copa da Uefa da temporada seguinte, mas logo perderia relevância. Em 1991, o time foi rebaixado. Voltaria à elite para mais três campanhas, mas, em 1995, perderia seu grande suporte: a Bayer abandonou os investimentos no clube, que, em 1999, já estava na terceira divisão. 

Em menos de 10 anos, Dresden e Uerdingen deixaram os holofotes da Europa e rumaram à escuridão das divisões inferiores da Alemanha, sempre lembrados pela incrível disputa continental daquele 19 de março de 1986, que ficou conhecido como “O Milagre de Grotenburg”.

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