A briga inexistente que levou o Barcelona a vender seu primeiro Luis Suárez
Na Europa, o futebol dos anos 1950 é recordado pelo poderio que o Real Madrid revelou na recém-fundada Copa dos Campeões. O pentacampeonato consecutivo dos Blancos ajudou a forjar a falsa noção de que o futebol espanhol foi dominado por eles na década. Foram superiores? Sim, levantando quatro canecos nacionais de 10 possíveis, mas o Barcelona ficou pouco atrás. O time Blaugrana fez frente ao clube da capital, vencendo a liga três vezes. Para isso, além de outros grandes atletas, contava com duas estrelas proeminentes, László Kubala e Luis Suárez. Um deles acabaria deixando a Catalunha pela porta dos fundos, muito em função de uma briga que nunca existiu.
Encerrando a década com chave de ouro
Aqueles anos 50 terminaram com uma nota positiva para o Barcelona. Com três vitórias a mais que seu histórico rival, o clube conquistou o Campeonato Espanhol de 1958-59. O feito demonstrou uma tremenda evolução. Isso porque, um ano antes, os catalães sequer chegaram a ser vice, terminando na terceira colocação, atrás do Madrid e de seu rival local, o Atlético. Há fatores que podem ser apontados para justificar o crescimento do Barça, mas um deles foi crucial: a incorporação do treinador Helenio Herrera.
Elevado pelo jornalista Jonathan Wilson ao posto de “primeiro técnico moderno”, o que se justifica no fato de que “para ele [Herrera], tudo era controlável, tudo era passível de melhora”, conforme referiu em seu livro A Pirâmide Invertida. Em sua chegada à Catalunha, o comandante teria dito que os triunfos do Real Madrid haviam intimidado sua equipe. Assim, além de entregar melhoras táticas, Herrera lutou para ressuscitar o espírito da equipe que, segundo ele, se trataria de um “extraordinário grupo de jogadores”.
Foto: El Periódico / Arte: O Futebólogo |
Engana-se quem pensa que, por ter sido um famoso adepto do Catenaccio, Herrera era um técnico de veia defensiva. Sua crença era na vitória, que tentaria obter a todo custo. E, como o Barça dispunha de muito talento, acabou optando por um sistema bem estruturado, mas que não matava a criatividade de seus craques. Isso levou ao absurdo feito que foi marcar 96 gols em 30 jogos.
Contando com a perícia técnica dos húngaros Zoltan Czibor, Sandor Kocsis e da estrela maior László Kubala, quem mais se beneficiou foi o brasileiro Evaristo de Macedo, o artilheiro catalão naquela temporada, com 20 gols, três a menos que Alfredo Di Stéfano, o melhor marcador do ano. E não está faltando alguém? Claro, aquele que, talvez, tenha sido o craque que mais influência técnico-tática exercia naquele time: Luis Suárez Miramontes, El Arquitecto.
Querido pelo técnico, não pela torcida
Enquanto Luisito se transformou quase em braço direito do treinador, desfrutando de grande confiança, Kubala foi se perdendo. Já veterano, ultrapassados os 30 anos, o magiar não impressionou seu treinador com suas atitudes. Ainda que Herrera tenha declarado que nunca tinha visto alguém tão talentoso em sua vida, a vida boêmia do húngaro não se encaixava em sua ideia de comando, que abrangia até mesmo a dieta de seus atletas. “Não tenho diferenças com nenhum jogador, incluindo Kubala… Claro, sempre e quando faça o que digo”, teria dito, conforme informa o site oficial da FIFA.
Foto: FC Barcelona / Arte: O Futebólogo |
Aos poucos, foi nascendo a ideia de que existia ali um antagonismo flagrante entre os grandes craques da equipe — não por questões esportivas, sim por favoritismo. Espalhou-se a ideia de que Herrera estava tentando colocar fim ao kubalismo, privilegiando Luis Suárez em detrimento do húngaro. O reflexo começou a ser notado nas arquibancadas. De nada adiantava que treinador e craque tivessem conquistado um nacional contra o Real Madrid, não estavam acima do bem e do mal. Essa condição caberia apenas ao ídolo máximo do clube, Kubala. As virtudes de Luisito foram completamente esquecidas.
“A torcida criou uma rivalidade entre o Kubala e eu [...] Todos os partidários de Kubala, que eram toda a arquibancada, como é natural, iam contra mim. Me vaiavam em todos os jogos, era inacreditável [...] Talvez por isso eu marcasse mais fora de casa”, disse Suárez em entrevista ao El País, no final de 2018.
Também em 2018, mas desta vez ao Mundo Deportivo, esclareceu que nunca houve sombra de problema com o craque húngaro. “Com Laszi não houve rivalidade pessoal [...] A prova é que anos depois Kubala me procurou para comandar a Seleção Espanhola Sub-21”. Assim, um jogador que, segundo o próprio Suárez, em uma comparação atual combinaria a técnica de Andrés Iniesta e a leitura de jogo de Andrea Pirlo, acabou na berlinda. Detalhe: no ano em que recebeu o Ballon d’Or, algo que, até os dias atuais, nenhum jogador nascido na Espanha voltou a conseguir.
Melhor do mundo na berlinda? Sim, a peso de ouro
O clima para a permanência do elegante meia-atacante espanhol no Barcelona foi se tornando insustentável. Sobretudo porque Herrera, a personalidade que assumia as responsabilidades no clube, havia sido demitido em 1960. Ainda que tivesse alcançado feitos enormes, o treinador foi mais uma vítima do resultadismo — que existe no meio do futebol desde sempre. Com duas derrotas por 3 a 1 para o Real Madrid na semifinal da Copa dos Campeões de 1959-60, não resistiu (ainda que tivesse levado o clube a outro título espanhol).
O que se seguiu foi uma grande crise, financeira e técnica. Em 1960-61, o time acabaria o campeonato nacional 20 pontos atrás do Real Madrid. Ainda assim, conseguira chegar outra vez à final da competição continental, apenas para, novamente, perder — agora para o Benfica. Apesar disso, naquela altura, Herrera estava na Internazionale e havia dito ao presidente do clube, Angelo Moratti, que se quisesse ganhar contratasse Suárez. O destino do atleta já estava selado.
No entanto, aquela saída nunca representou o verdadeiro desejo do Arquitecto. “Bastava colocar algumas coisas em seus lugares e eu teria ficado. Mas não podia entrar em campo a cada dia e ouvir 100.000 pessoas me vaiando [...] Eu teria ficado em Barcelona, com os companheiros e a cidade. Era perfeito. E eu jogava bem”, disse também ao El País.
Foto: Reprodução/Mundo Deportivo |
Ainda assim, além da enorme pressão que tinha de carregar, Luis Suárez sofreu com as necessidades do próprio clube. No final da década, o Barça havia inaugurado o estádio Camp Nou, abandonando o Camp de Les Corts. E a nova casa acabara custando muito mais do que as previsões iniciais indicavam. Vender Suárez era uma alternativa que calhava — menos esportivamente falando.
Em 27 de maio de 1961, o Mundo Deportivo anunciou: “Suárez já é jogador da Inter”. No corpo da matéria, indicou-se que, a princípio, o craque era tido como inegociável, mas que sua vontade prevalecera. A junta diretiva do clube, com o presidente interino, Antoni Julià de Capmany, consultou os dois candidatos à presidência, tendo ambos dado parecer positivo para a transferência. Assim, a negociação foi selada por “aproximadamente 40 milhões de pesetas em números redondos”, no que foi a maior venda da história do futebol até então.
Suárez reencontrou Herrera na Inter, assumiu a condição de cérebro da equipe e seguiu ganhando. Foram três títulos italianos, duas Copa dos Campeões e dois torneios Intercontinentais.
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