O inferno italiano de Falcão, Sócrates e Zico

O futebol europeu sempre admirou a qualidade do jogador brasileiro de alto nível. Com o passar dos anos, a mudança de regras referentes à contratação de estrangeiros, e o avanço dos processos inerentes à globalização, foi ficando cada vez mais comum ver os astros da Canarinho atuando no Velho Continente. A primeira grande geração exportada foi a dos anos de 1980. Grande parte dela partiu para a Itália, a antagonista do Mundial de 1982. Entretanto, para alguns expoentes a vida não foi fácil no Bel Paese: Falcão, Sócrates e Zico acabaram voltando ao Brasil antes da hora prevista; Toninho Cerezo foi a exceção.

Sócrates Fiorentina Falcão Roma Zico Udinese
Arte: O Futebólogo

Rei de Roma na justiça


Dentro dos gramados, não havia o que falar. Paulo Roberto Falcão era o símbolo de uma Roma que ganhava. Para um clube acostumado a ser lembrado por suas “quase conquistas”, o período entre 1980 e 1985 foi glorioso. Nele, a sala de troféus romanista ganhou um Scudetto e duas taças da Coppa Italia. Por pouco, não recebeu a maior honraria do continente, com os Giallorossi alcançando o vice-campeonato europeu em 1983-84. A derrota para o Liverpool foi consumada apenas nos pênaltis.

Falcão estrelava um grande time da Loba. Era o maior ícone de um elenco que tinha peças como Bruno Conti, Toninho Cerezo e Franco Tancredi. Não foi por acaso que acabou conhecido como “Rei de Roma”. Apesar disso, quando se desenhou a campanha de 1984-85, o astro brasileiro não vivia um momento feliz. Com problemas físicos, sobretudo nos joelhos, participou de apenas quatro partidas naquele ano, marcando um gol. A isso, seguiu-se uma batalha judicial.

Falcão Roma
Arte: O Futebólogo

Não se engane: o torcedor local o adorava, continuou o adorando e, provavelmente, adorará para sempre. Quem já não o apreciava tanto era o presidente da agremiação, Dino Viola, que também era senador da república. Ele alegou que Falcão não cumpriu sua parte no contrato que havia sido renovado antes da temporada e encerrou o vínculo do jogador, que iria até 1986. Deixou, no entanto, de pagar as verbas indenizatórias, que constavam no pacto firmado.

Ao que tudo indica, o problema com o brasileiro não era, propriamente, sua ausência dos campos, mas seus vultosos vencimentos. No fim das contas, em um julgamento que, segundo Placar, foi “sem precedentes” e “uma superprodução”, foi dada razão ao gestor giallorossi. Dino Viola ainda pretendeu que fosse aplicada uma lei recente que só permitiria que Falcão abandonasse a Roma mediante o pagamento de uma indenização, por parte do clube contratante. Isso não conseguiu.


Na sequência, Falcão negociou com a Fiorentina, mas seguiu para o São Paulo. O que justificou: “Em primeiro lugar, era difícil para mim voltar a jogar por outro clube que não a Roma, logo após aquela briga toda. A torcida da Roma me apoiou muito [...] Em segundo lugar, estamos num período de preparação para a Copa e eu gostaria de vivê-lo desde o início. Por fim, também a possibilidade de ficar perto dos negócios”

Depois, disputou a Copa do Mundo de 1986, pendurando as chuteiras a seguir. Anos mais tarde, recebeu um merecido e eterno lugar no Hall da Fama da Roma. No fim das contas, terá sido ele mesmo o perdedor daquela batalha?

Pague-me se for (moralmente) capaz


Sócrates chegou a Florença com toda a pompa que uma circunstância como essa pedia. “O novo time será construído em torno de Sócrates”, revelou, então, o presidente da Fiorentina, Ranieri Pontello. É preciso ressaltar, todavia, que a primeira opção era o alemão Karl-Heinz Rummenigge, que preferiu partir para a Internazionale. O ano do brasileiro foi ruim.

Sócrates Fiorentina
Arte: O Futebólogo

Em Doctor Sócrates: Footballer, Philosopher, Legend, o astro brasileiro revelou que o ambiente vivido no clube era péssimo: “O time estava dividido. Havia cinco caras de um lado, quatro do outro, o goleiro e eu”. Logo, o ambiente ficou pesado para o craque, que sofria com a frieza do povo local e passou a ser taxado como “inadequado” para o futebol italiano. Como era de se esperar, ao final da temporada, propostas chegaram — dentre as quais, uma, vinda da Ponte Preta, destacou-se.

O negócio empolgou o jogador e a torcida. Sócrates até vestiu a camisa da Macaca, mas, na hora H, deu tudo errado. O apresentador Luciano do Valle, que tentou viabilizar a contratação, não conseguiu angariar dinheiro suficiente e Sócrates teve de retornar à Itália. Todavia, o meia havia assinado um documento indicando que se absteria de cobrar quaisquer valores junto à equipe italiana. Assim, o caminho ficou livre para a Fiorentina se desfazer do Doutor.

Apesar disso, Sócrates sempre negou tal realidade: “Admito abrir mão dos 850.000 dólares que tenho a receber pela temporada que vem. Mas exijo o dinheiro do tempo já trabalhado e irei às últimas consequências”, revelou à Placar. Não havia mais nenhum clima para que o brasileiro permanecesse. Até mesmo grupos da torcida local o odiavam — em parte porque ele teria desaconselhado Falcão a assinar com a Viola.

A seguir, Sócrates tentou treinar, mas teve o acesso aos treinamentos negado. Depois, foi proibido de, junto ao restante dos jogadores, estrelar a tradicional foto do ano do time.


Sua sorte foi a aparição do empresário Rogério Steinberg, pouco antes do encerramento das inscrições. Com ele, veio uma proposta do Flamengo. O acerto foi rápido, diante do desespero para deixar a Fiorentina. Entretanto, ainda houve um ato final. Ficou acertado que o rubro-negro e a Fiorentina fariam um amistoso. Os cariocas estavam fazendo um tour pelo Oriente Médio e pararam na Itália.

O dinheiro da bilheteria da partida serviria de pagamento dos débitos da equipe italiana com Sócrates, que havia concordado em não ir à Justiça. Entretanto, o craque voltou a criticar o presidente da Viola, às vésperas da partida. Esta acabou sendo pouco divulgada e recebendo público escasso. Sócrates deixou o Bel Paese com seis mil dólares referentes ao pagamento de uma dívida que, segundo o craque, passava de 400 mil.

Injustiça em Udine


Quando o Flamengo viajou à Itália para algumas partidas — dentre as quais aquela contra a Fiorentina, como parte do negócio de Sócrates — Zico ficou no Brasil. “Quem me garante que um daqueles juízes não iria tentar segurar meu passaporte?”, questionou à Placar. Ninguém. O camisa 10 da Canarinho vinha sendo acusado de ter desviado dólares para a Suíça. 

Zico Udinese
Arte: O Futebólogo

Em que pese a negação absoluta em relação às acusações, elas formaram parte importante de seu desejo de retornar ao Brasil e, mais especificamente, ao Flamengo. Em 1985, uma decisão recorrível de um tribunal de Udine condenou Zico a oito meses de prisão e o pagamento de 830 mil dólares por evasão fiscal. Quatro anos mais tarde, seria absolvido. Entretanto, as marcas daquela acusação foram profundas.

Quando do veredito final, o Galinho falou à reportagem do periódico italiano la Reppublica: “Minha integridade foi comprovada”. Ainda assim, esse não foi o único problema vivido pelo meia na Udinese. 

Individualmente, sempre que jogou, Zico foi muito bem. Porém, algumas questões, ligadas ao futebol, mas extracampo, acabaram pesando na hora de decidir retornar ao seu país. 

Vice-artilheiro do Campeonato Italiano em sua primeira temporada (1983-84), com 19 gols, um a menos que o francês Michel Platini, Zico ficou muito tempo contundido na campanha seguinte. E não foi apenas isso que o desmotivou. A Udinese havia negociado dois de seus principais jogadores. Ambos foram para Milão. O veterano Franco Causio, jogador de mais de 300 jogos pela Juventus, partiu para a Inter; já Pietro Paolo Virdis foi para o Milan.


Tais negócios enfraqueceram o time. Para o brasileiro, deixou de haver sentido sua estada em Udine: “Eu cumpri com o meu papel. Mas não tinha mais sentido permanecer lá disputando um campeonato em que só lutaria para a Udinese não ser rebaixada”.

Cerezo esteve em apuros, mas superou as dificuldades


Outro que não teve vida fácil na Itália foi Cerezo. Segundo Falcão, teve dificuldades de adaptação: “Em seu primeiro ano, Cerezo correu muito e concluiu que, no final das contas, tinha rendido pouco. No segundo ano, ao contrário [...] foi o melhor do time”. Toninho permaneceu uma temporada a mais que Falcão na Roma, igualmente pressionado pelo presidente Dino Viola, que também o considerava caro. 

Cerezo na Roma
Arte: O Futebólogo
Em determinada ocasião, faltou a um treinamento para cuidar da esposa que estava doente. Foi multado e eventualmente afastado por um período. Antes, já havia sido internado com forte indisposição, depois de sofrer os efeitos de excessivos treinamentos. Homericamente, foi suportando as dificuldades.

Entretanto, pouco depois de um treino, o tranquilo mineiro voltou a ser provocado pelo mandatário romanista e respondeu: arremessou uma camisa imunda em sua direção, o dedo em riste. Ficou até o fim. Conquistou a Coppa Italia de 1986, marcando o gol decisivo

Não ficou para a temporada 1986-87, mas seguiu para a Sampdoria, substituindo Graeme Souness e sendo ainda mais bem-sucedido — como o Scudetto de 1990-91, as Coppa Italia 1988 e 1989, a Recopa Europeia de 1990, e o vice-campeonato da Copa dos Campeões da Europa não deixam mentir.

Comentários

  1. Artigo muito bom. Faltou apenas expandir a parte do Cerezo (incluindo um video mais longo e de melhor resolucao), que foi de longe o membro do quadrado de 1982 com mais sucesso fora do Brasil.

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    1. Cerezo com mais sucesso que Falcão, Rei de Roma? Se pegar 82 ainda tem outros jogadores como o contundido Careca ídolo no Napoli, dirceu e Junior que jogaram pacas lá fora.

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  2. É fora de questão o sucesso de Cerezo na Itália. Falcão, o único com quem poderia ser comparado, "reinou" um ou dois breves anos somente... Cerezo foi diferente, foram muitos anos com uma consistência impressionante... Sem dúvidas, foi o que teve mais sucesso.

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    1. O sucesso é mesmo inquestionável. Ninguém passa nove temporadas na Itália, conquistando títulos e chegando perto de outros sem méritos. De fato, a longevidade no país o credencia a esse posto de "mais bem-sucedido", mas, além disso, ser o brasileiro com mais títulos afirma ainda mais essa realidade.

      Pela Roma: Duas Coppa Italia (além de um vice da Copa dos Campeões);
      Pela Sampdoria: Duas Coppa Italia (um vice), um Campeonato Italiano, uma Recopa (um vice) e outro vice da Copa dos Campeões.

      Ainda teve tempo de voltar ao Brasil e se vingar do Barcelona, com a camisa do São Paulo.

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