A briga que acabou com a Eslovênia em 2002

Um importante capítulo da fragmentação da Iugoslávia foi a Guerra dos Dez Dias. Embora não tenha sido sangrenta como os conflitos em Croácia e Bósnia, foi também armada. Sua consequência foi a Independência da Eslovênia. A partir de então, uma decorrência foi a possibilidade de o país disputar competições de futebol. A primeira foi a Euro 2000, mas as expectativas ficaram grandes mesmo com a Copa do Mundo de 2002.


Zlatko Zahovic Srečko Katanec Eslovênia Copa do Mundo 2002
Foto: Igor Zaplatil/Delo; Arte: O Futebólogo

Uma referência para comandar a Eslovênia


A primeira tentativa de classificação da Eslovênia para um Mundial — em 1998 — foi decepcionante. Lutando por uma vaga com Dinamarca, as vizinhas Croácia e Bósnia, e a Grécia, protagonizou um verdadeiro vexame. Em um total de oito partidas eliminatórias, saiu derrotada em sete ocasiões e, na outra, apenas empatou contra os croatas. Encerrou sua participação com a lanterna do Grupo 1. 

Para dirigir o time no ciclo que se iniciou após a Copa da França, foi escolhida uma referência, cujo rosto ainda estava fresco na memória do público. O ex-defensor Srečko Katanec, peça importante da Sampdoria no início dos anos 90, vinha trabalhando com o time nacional sub-21 e havia concluído seu curso de treinador. Estava preparado para liderar um time com sede de se superar.

Lembrado por sua ética de trabalho, resiliência e disciplina, o técnico viu ser confiada a si a missão de transformar a jovem nação em um time competitivo. O primeiro objetivo era a classificação para a Euro 2000. E a atribuição que lhe foi entregue foi pronta e bem-sucedidamente terminada.  

Srečko Katanec Eslovênia
Foto: Reuters/ Arte: O Futebólogo

Tudo bem, o Grupo 2 da fase classificatória, que opôs Noruega, Grécia, Letônia, Albânia e Geórgia à Eslovênia, não era propriamente desafiador. Não obstante, tendo terminado a dita fase na segunda colocação, os eslovenos tiveram que eliminar a Ucrânia, de Andriy Shevchenko e Serhiy Rebrov, nos play-offs, em um desafio mais pesado. O país havia ascendido à elite do futebol europeu.

Quando chegou a hora de viajar à Holanda e Bélgica, nações que sediaram a Euro, já se sabia que o passo mais difícil havia sido dado. Estar lá já era motivo para festa, de tal sorte que não causou crise alguma a última colocação do Grupo C. Na estreia, a Eslovênia mostrou que tinha os meios para enfrentar boas equipes. Abriu 3 a 0 contra sua histórica antagonista, a Iugoslávia, mas acabou sofrendo o empate. Depois perdeu por 2 a 1 para a Espanha e empatou com a Noruega. Nada mal para uma iniciante.


Um craque de espírito livre


Esse êxito, ao qual se seguiria a classificação para a Copa do Mundo de 2002 — com a segunda posição do Grupo 1 das eliminatórias, atrás da Rússia e à frente da Iugoslávia, e vencendo a Romênia nos play-offs — só foi possível porque os eslovenos podiam confiar no talento de um craque. Zlatko Zahovič foi, indiscutivelmente, o maior jogador nacional de sua geração

A despeito disso, nunca se deu bem com Katanec. Craque e comandante nunca se bicaram; representavam jeitos opostos. Se o treinador era todo seriedade, alguém que sempre colocou as necessidades coletivas em primeiro lugar, o meia-atacante era individualista, uma verdadeira primadonna. Era protagonista e gostava do estatuto que sua técnica e habilidade lhe concediam. 

O comprometimento de Zahovič com a Seleção Eslovena esteve sempre em dúvida. Apesar disso, Katanec não podia abrir mão de alguém tão diferente, tão talentoso. Ele era um virtuoso em meio a um time trabalhador. Tratava-se, justamente, da figura que fugia à regra. E, naquele momento, a ordem era procurar um jogo de doação mútua em prol do todo e não para potencializar um indivíduo.

Zlatko Zahovic Eslovênia
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo

Ademais, havia um outro problema em causa, este maior do que as figuras de Katanec e Zahovič. O primeiro era representante da capital nacional, Ljubljana, enquanto o segundo representava a região da Estíria, onde fica Maribor, a segunda maior cidade do país. 

Especialmente em razão do futebol, desenvolveu-se uma rivalidade entre as localidades. Isso porque abrigam os times mais bem-sucedidos da nação. O Maribor (14) é o time que mais vezes venceu no país, seguido pelo Olimpija Ljubljana (6). Além disso, dizia-se que a Seleção Eslovena trajava verde (hoje veste azul e branco) em alusão ao Olimpija e que jogadores deste (ou formados neste) teriam prevalência em relação àqueles criados no rival.

Choque, vexame e volta para casa


Foi com esse clima de tensão que a Eslovênia viajou ao Oriente, que, pela primeira vez, sediou uma Copa do Mundo (em Japão e Coreia do Sul). Ainda assim, a fervura não tinha entornado e havia um esforço das partes para sufocar os problemas em prol de um bom desempenho.

O Grupo B representava um grande desafio para a Eslovênia. Outra vez, a Espanha estava em seu caminho. Apesar disso, aquela Fúria era mais conhecida por prometer do que, propriamente, cumprir. Além dela, havia o Paraguai, de poderosa defesa (que se revelaria uma peneira), e a África do Sul, de quem ninguém sabia bem o que esperar. O desafio mais pesado, contra os espanhóis, foi o primeiro e tudo desandou já no primeiro momento.

Comandada por Raúl González, a Espanha fez valer seu favoritismo. Aos 44 minutos, abriu o placar justamente com gol da estrela do Real Madrid. Diante de tal margem, não havia razão para desespero: era a estreia, contra a equipe mais forte do grupo. Mas a discórdia era inevitável. O relógio marcava os 18 minutos da etapa final quando Katanec chamou Milenko Ačimovič. O atacante entrou na vaga de Zahovič, que, irritado, chutou uma garrafa na saída, dando o primeiro indício de que o mal viria a seguir. O placar final registrou três bolas a uma em favor dos hispânicos.


A gota d’água veio adiante, a partir de declarações públicas e problemas nos vestiários. Assim, após alguma deliberação entre membros dos corpos diretivo e técnico, foi tomada uma decisão drástica. O presidente da FAS (Associação Eslovena de Futebol), Rudi Zavrl, anunciou o corte do craque: “Zahovič continuou com sua atitude, que estava prejudicando a atmosfera do time [...] Ele repetiu declarações erradas publicamente, após o treino de 05 de junho, em que ele se fez de vítima”.

Os jogadores, por meio do capitão Ales Ceh, também se manifestaram: “Demos nosso suporte à permanência de Zahovič, apenas pelo melhor interesse do time, por interesses esportivos”. Na sequência, a Eslovênia perdeu para sul-africanos, 1 a 0, e paraguaios, 3 a 1. 

Palavras machucam


Quando informado de que deixaria a seleção, o craque ironizou: “Vou embora agora. Penso que não haverá mais problemas. Essa situação tem cozinhado por muito tempo. Qualquer tipo de diálogo é absolutamente impossível com Srečko Katanec. Ainda assim, penso que ele deve permanecer como treinador da seleção, pelo interesse do futebol esloveno”.

Os problemas também tiveram consequências para o treinador, que anunciou que deixaria o cargo após o certame mundial e não se absteve de tornar público o que acontecera nos vestiários após a derrota para a Espanha:

“Ele disse que eu estava substituindo apenas estírios e que eu deveria tirar mais um para que outro liubliano pudesse atuar. Depois do jogo, ouvi que eu era uma merda de treinador e que tinha sido um merda de um jogador, que ele podia comprar a mim, minha casa e minha família… Então, agora vocês sabem o que aconteceu”. 

De fato, Katanec deixou a equipe na volta para casa. Depois seguiu para o Olympiacos. Voltaria a comandar seu selecionado entre 2013 e 2017. Já Zahovic, maior artilheiro da história da Seleção Eslovena, representaria suas cores até 2004 e, depois se tornaria diretor do Maribor.

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